Não é fácil definir ou conceituar a espiritualidade. Embora seja uma expressão religiosa que, a princípio, tenha a ver com o relacionamento de Deus com o ser humano, tornou-se, na cultura moderna, um termo abstrato, vago e presente em quase todos os segmentos da vida: da religião à economia, da ecologia ao mundo dos negócios.
Para entender melhor o que significa espiritualidade nos dias atuais, precisamos associá-la a outras duas expressões que se encontram intimamente conectadas: subjetividade e pós-modernidade. Juntas, elas formam o tripé para a compreensão da cultura contemporânea.
O mundo moderno era racional, científico, positivo. Acreditava na bondade natural do ser humano. Era um mundo de certezas e de sólidas convicções. Porém, após duas guerras mundiais e uma infinidade de conflitos étnicos, políticos e econômicos, esta era de certezas deu lugar a um espírito cínico e desiludido. O mundo pós-moderno é o mundo do desencanto, da decepção, da desilusão, das incertezas. Emocionalmente, a modernidade refletiu o progresso, o otimismo, a confiança na tecnologia. O pós-moderno é o oposto — é negativo, irracional e subjetivo. O rápido processo de secularização, o avanço tecnológico, o rompimento com as tradições, a relativização dos valores e dos costumes, o fortalecimento do individualismo e a quebra do consenso social apresentaram uma nova agenda para a sociedade.
A reação contra a objetividade e a mentalidade cartesiana, racional e científica do mundo moderno gerou um novo espírito, mais subjetivo e individualista. A relativização moral criou uma nova forma de ateísmo: o da irrelevância de Deus e uma forma de espiritualidade subjetiva sem nenhum fundamento bíblico ou histórico. A realidade vem se tornando mais abstrata e virtual, e a estética é a nova base da identidade e da afirmação pessoal. Uma vez que a tradição foi descartada e vivemos a falência das estruturas familiares e a burocratização das instituições, não temos mais um juiz para julgar os valores, mas um espírito individualista, cínico e altamente indulgente. Se, no passado, levávamos nossas questões para serem julgadas no tribunal da razão e da sã doutrina, hoje elas são arbitradas na jurisdição das emoções e dos sentimentos. O critério que valida a experiência é o bem-estar pessoal. É dentro deste cenário que surge o termo “espiritualidade”, estabelecendo uma nova agenda para a Igreja. Espiritualidade tem a ver com o novo estado de espírito do mundo pós-moderno. Falar em espiritualidade, segundo James Houston, é falar sobre a revolta do espírito humano ao aprisionamento que a cultura racional impôs sobre a civilização ocidental, levando-a a olhar para a vida apenas na perspectiva superficial da ótica científica. O ser pós-moderno não aceita mais viver sob esta ótica estreita e limitada da cultura racional, mas, paradoxalmente, sua luta contra o aprisionamento da superficialidade racional o levou a um novo estado de alienação e superficialidade, fruto do subjetivismo e do individualismo impessoal.
Espiritualidade é o tema da agenda religiosa do século xxi. Está presente em todos os encontros, debates e discussões. Não apenas no universo evangélico, mas também nos âmbitos cultural, empresarial, econômico, político etc. Todos conversam sobre o assunto, falam de suas experiências, descrevem seu momento espiritual. Empresas preocupam-se com o estado espiritual de seus executivos, oferecendo cursos e palestras para elevar o espírito e melhorar o rendimento profissional. Livros e revistas especializados no assunto surgem a cada dia. Entretanto, como afirma Eugene Peterson, quando todos seus amigos começam a conversar sobre colesterol, comparando taxas, trocando conselhos, sugerindo remédios e chás, você logo percebe que este é um mau sinal. Alguma coisa não vai bem. Da mesma forma, quando vemos e ouvimos muita gente conversando e lendo sobre espiritualidade, isto nos leva a pensar que a alma de nosso povo não anda bem; está enferma.
Quando pensamos em um tema como “Espiritualidade Cristocêntrica”, precisamos pautar valores e formas na relação do espírito humano com Deus. Isso devido às múltiplas ofertas de “espiritualidade” que encontramos no mercado religioso, principalmente nas prateleiras evangélicas.
De um lado, existe no caldeirão sincrético brasileiro um tipo de espiritualidade que podemos denominar corporativa: são mantras, velas, correntes e orações como meios de alcançar sucesso nos negócios ou criar uma atmosfera zen no ambiente profissional. Sem falar no misticismo das cartas, búzios e cristais, superstições voltadas principalmente para a área emocional.
Do outro lado está a espiritualidade “gospel”, que mais se identifica com uma cultura de consumo do que com a ética derivada dos ensinos de Cristo. Tal cultura favorece os mercadores da religião, que lucram com um tipo de fé burra e impulsiva. Os produtos oferecidos vão desde liturgias de massa, até amuletos da fé, como chaveiros, caixinhas de promessas, bíblias nos mais diversos formatos, modelos suficientemente irreconhecíveis ou disfarçáveis. O problema não é a forma das bíblias e da liturgia, mas a indiferença ao seu conteúdo, principalmente, o esquecimento da essência registrada em suas páginas e da prática exigida na vida do leitor.
Tais “espiritualidades” apóiam-se na fé inflamada pelos símbolos, ou seja, precisam do visível para crer no invisível É a idéia do ver para crer, uma forma de ceticismo revestida de prudência, onde a segurança dos sentidos é defendida em detrimento da fé. No entanto, não podemos negar que a espiritualidade possui seu lado visível. Pois a comunhão do nosso ser com Deus, evidenciam-se em ações, práticas e palavras coerentes com o modelo que Jesus nos deixou. Como a Lei que gere o cristianismo não pode ser cumprida na individualidade, a espiritualidade cristã deve primar pela experiência em comunidade e por uma relação amorosa com o mundo sem Deus. Assim sendo, a saúde de nosso espírito se mostra quando satisfaz a vontade de Deus na prática do bem ao próximo. É um princípio presente em toda a Revelação, especialmente nos escritos do Novo Testamento.
O apóstolo João, por exemplo, fala da impossibilidade de amar ao Deus Invisível sem amar ao irmão a quem vê: “Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar o seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ora, temos, da parte dele, este mandamento: que aquele que ama a Deus ame também a seu irmão” (I Jo. 4:20, 21).
Já Tiago critica a inutilidade de palavras “abençoadoras” não acompanhadas de gestos de amor. O seu ensino nos desafia a mostrar a fé invisível através da visibilidade das obras. “Mas alguém diz: Tu tens fé e eu tenho obras; mostra-me essa tua fé sem as obras, e eu, com as minhas obras, te mostrarei a minha fé” (Tg. 2:18).
Jesus também mostrou perfeitamente equilíbrio na relação invisível-visível. Ele cultivou momentos reservados de devoção a Deus (Mt.14:23) e também revelou seu amor ao Pai em suas atitudes (Jo.14:31). A característica marcante do relacionamento de Jesus era sua contínua submissão, o prazer em fazer a vontade de Deus.
Portanto, perceba que não há como separar espiritualidade de vida prática. O relacionamento invisível do nosso ser com Deus evidencia-se através do bem que praticamos por meio do corpo (2ª Cor. 5:10). O propósito da espiritualidade cristocêntrica é nosso crescimento em direção a Cristo — em outras palavras, ser conformados à imagem de Jesus Cristo.
Não se trata de ajustamento sociológico ou psicológico, de sentir-se bem emocional ou socialmente, mas de um processo de crescimento e transformação. A espiritualidade da cultura moderna, por ser mais individualista e, conseqüentemente, mais narcisista, mudou o foco da espiritualidade cristã; ao invés de sermos convertidos a Cristo, é Cristo que se tem convertido a nós. Perdemos o significado da doutrina da imago Dei a consciência de que fomos criados por Deus e para Deus, e que somente nele encontramos significado para nossa humanidade corrompida.
Para Paulo, isto significa caminhar em direção à perfeita varonilidade, à medida de estatura de Cristo. Encontramos em Cristo a expressão plena de nossa humanidade. Converter-nos a ele significa ter nossos pensamentos e caminhos transformados, nossa humanidade restaurada, nossa dignidade redimida para viver a nova vida em Cristo. Paulo nos afirma que a verdadeira vida encontra-se oculta em Jesus e, por esta razão, devemos buscar e pensar nas coisas do alto, onde Cristo vive. O fim da espiritualidade cristã está numa humanidade madura e completa em Cristo.
Outra preocupação é o risco da cultura espiritualista tirar a divindade de Cristo, reduzindo-o à categoria de Ghandi, de Buda ou de outro personagem da humanidade. A globalização resiste à idéia do sacerdócio único de Cristo. O ser pós-moderno não aceita viver sob a verdade de que Cristo é “o caminho, a verdade e a vida”, e que ninguém vai ao Pai a não ser por meio dele. Esta realidade única de Cristo é inaceitável na cultura pós-moderna. Desta forma, Jesus passa a ser apenas uma boa pessoa, que nos deu exemplo de como ser pessoas igualmente boas, mas nada muito além do que outros também fizeram.
Contudo, uma espiritualidade cristocêntrica requer a afirmativa da mediação única de Cristo: sem ele, ninguém conhece o Pai, nem pode ser salvo. Precisa da mesma forma, afirmar a centralidade da cruz e da ressurreição na experiência cristã de reconciliação, perdão e comunhão com Deus.
Fonte utilizadas:O melhor da espiritualidade brasileira – Ricardo Barbosa de Souza
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