Tendo explanado nos capítulos anteriores a doutrina do evangelho em relação à obra realizada por Cristo e qual é a posição que os cristãos obtiveram diante de Deus por causa dEle, Paulo passou a descrever agora neste capítulo quais são as implicações práticas nas vidas dos cristãos, por causa da salvação pelo evangelho.
O propósito do evangelho não é simplesmente o de nos trazer informações sobre a vida celestial que está em Jesus Cristo, mas de transformar nossos corações e modificar efetivamente todo o nosso comportamento.
A fé cristã não é um mero sistema de crenças, mas um poder, um princípio espiritual vivo e eficaz que opera principalmente pelo amor.
Assim, as exortações práticas deste capítulo resumem em que consiste a vida do cristão.
Paulo começou o décimo segundo capítulo de Romanos, rogando aos cristãos, por causa da misericórdia que foi demonstrada a eles por Deus, em Cristo, oferecendo-O como oferta pelos pecados deles, que também apresentassem os seus próprios corpos a Deus como um sacrifício vivo, santo e agradável.
Este sacrifício do cristão não tem em vista completar algo da obra perfeita de salvação que foi plenamente consumada por nosso Senhor Jesus Cristo, senão, que diz respeito exclusivamente à sua consagração pessoal a Deus.
E não se entenda este sacrifício como alguma forma de ações penitenciais que visem flagelar o nosso corpo físico, ofertas pecuniárias além de nossas posses, ou mesmo aquelas que não nos forem requeridas diretamente pelo próprio Deus, ou qualquer tipo de flagelação pessoal.
O que está sendo dito pelo apóstolo está relacionado ao ensino de Jesus sobre a negação do nosso ego carnal, visando-se à renovação da nossa mente naturalmente carnal em mente espiritual – a mente do próprio Cristo.
Mas para que isto seja possível é necessário que não estejamos conformados ao modo de ser e agir deste mundo, pensando e agindo segundo o mundo, de maneira que é necessária uma transformação de vida pela renovação da mente, para que se possa experimentar de fato a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus, como se lê no verso 2.
A palavra usada por Paulo no original grego para transformação é metamorféu, de onde é vertida a nossa palavra metamorfose, que explica, por exemplo, a transformação de uma lagarta numa borboleta.
É portanto uma referência a uma transformação de essência de vida. De uma vida natural e carnal, para uma vida espiritual. E o modo desta nossa transformação é afirmado pelo apóstolo como sendo resultante da renovação da nossa mente.
É importante que saibamos que temos uma mente habituada aos padrões de pensamentos mundanos, terrenos e pecaminosos, e ainda por cima corrompida pelo pecado, e por isso ela precisa ser renovada pelo Espírito Santo e pela Palavra de Deus, para que possamos substituir estes padrões de pensamentos terrenos, mundanos e pecaminosos, pelos padrões celestiais, divinos e santos.
Para exemplificar este modo de pensar segundo o mundo e não segundo Deus, podemos citar o conceito que comumente é atribuído à palavra santificação, que pouco ou nada tem a ver com o reto ensino bíblico sobre santificação.
Quando a Bíblia fala da santificação sem a qual ninguém verá a Deus, e que para obtê-la necessitamos nascer de novo do Espírito e sermos submetidos à disciplina de Deus para que sejamos feitos coparticipantes da Sua própria santidade, geralmente isto que é apresentado de modo claro, firme e absoluto é interpretado por muitos como algo que se refira tão somente à própria escolha que fazemos de evitar determinados hábitos nocivos e incorporar alguns outros que sejam moralmente aprovados.
Todavia, o ensino bíblico sobre a santificação que é requerida por Deus aponta para uma mortificação real da natureza terrena – de um revestimento real da vida de Cristo, e isto por progressivas provações da fé que visam ao seu refinamento e crescimento, de modo que o apóstolo Paulo afirma que importa entrarmos no reino de Deus por meio de muitas tribulações.
É por meio destas operações progressivas e graduais do processo de santificação pelo Espírito Santo, mediante aplicação da Palavra de Deus às nossas vidas, que o velho homem vai ficando cada vez mais fraco, e com ele o pecado; e a graça de Jesus cada vez mais forte em nossas vidas, e com ela, o crescimento em nós de Suas virtudes celestiais, espirituais e divinas.
De modo que sendo confirmados na fé, cheguemos a dizer com Paulo que não temos permanecido na prática do pecado, e com João que disse que havia escrito a sua primeira epístola para que não pequemos.
A pergunta portanto, que deve ser respondida à luz de todo o ensino bíblico, e particularmente pela exposição feita por Paulo sobre o evangelho na epístola aos Romanos, deve ser a seguinte:
É isto o que temos visto sendo pregado e praticado de modo geral por aqueles que dizem estar a serviço de Cristo?
Se a resposta é negativa para a grande maioria, então isto pode ser entendido facilmente com o que nos ensina a própria Bíblia, uma vez que a vida que é segundo Deus é fruto de muito esforço, de empenho diligente, de muita disciplina, no cumprimento dos deveres ordenados, como por exemplo, estes que são destacados pelo apóstolo no décimo segundo capítulo de Romanos.
Acrescente-se a isto que o exercício destas graças e deveres demanda um coração sincero na busca de uma vida consagrada ao Senhor e aos interesses do Seu reino, uma vez que existe a impossibilidade de se servir a dois senhores.
A salvação (eleição, justificação e regeneração) nos veio inteiramente pela graça e mediante a fé, mas deve ser desenvolvida mediante a nossa aplicação e esforço em todos os deveres espirituais que nos são ordenados na Palavra de Deus, ou seja, através da santificação.
Não importa qual seja a nossa medida de fé, ou o grau de importância e responsabilidade do nosso ministério, porque em todos os casos, o que se requer é completa fidelidade ao Senhor e à Sua Palavra.
De modo que se dissermos que o alvo do evangelho é o de que tenhamos uma vida em que o pecado seja algo eventual, como resultado de falta de vigilância, de oração, de meditação e prática da Palavra ocasionada por alguma negligência ou fraqueza decorrente de um descuido ocasional no uso do escudo da fé, e de todos os componentes da armadura de Deus, é quase certo que isto causará um espanto geral, porque os crentes se acostumaram à ideia de que haja da parte de Deus para eles, uma abertura de concessões para permanecerem na prática de determinados pecados.
Releia o estudo relativo ao sexto capítulo de Romanos, e veja se há ali alguma instrução desta natureza?
Porventura não são afirmadas verdades absolutas como as seguintes?
“Rom 6:1 Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante?
Rom 6:2 De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?”
“Rom 6:12 Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões;
Rom 6:13 nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado, como instrumentos de iniquidade; mas oferecei-vos a Deus, como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros, a Deus, como instrumentos de justiça.”
Multiplicam-se as causas para que não se veja na maioria das igrejas de nossos dias sendo pregado o tipo de santificação bíblica, que é o único que pode agradar efetivamente a Deus e nos tornar úteis para a obra do evangelho; mas, talvez, a maior delas é o temor de não se ver os templos sendo esvaziados, pela fuga de supostos crentes, todavia este temor não existia na Igreja Primitiva, nem nas congregações dos puritanos, nem nas de Wesley em seus dias, e nem nas de todos aqueles que sabiam que o alvo do evangelho não é o de ajuntar pessoas, mas de produzir convertidos para Cristo.
Jesus disse que o reino dos céus é tomado por esforço, e a uma sociedade pós-moderna não agrada a ideia de esforço. Isto pode ser visto principalmente na falta de diligência em se ler textos bíblicos ou comentários bíblicos que possuam mais do que uma página. Como é possível conhecer a verdade revelada com este tipo de conduta?
Por isso necessitamos nos exortar mutuamente à diligência na prática do amor e das boas obras.
Devemos interceder uns pelos outros para que possamos ser achados de pé naquela condição que nos é imposta pelo evangelho.
Por isso, quando cremos, somos feitos parte de um corpo formado por muitos membros, exatamente para que haja auxílio e cooperação mútuos entre os diversos membros, pelo desempenho das respectivas funções e dons recebidos de Deus.
Assim, o amor não fingido que os cristãos devem ter é o amor cristão conforme está definido em I Cor 13.
O cristão deve aborrecer toda forma de mal, e apegar-se somente ao bem.
Além do amor a Deus e a todos os homens referido no verso 9, é dever do cristão amar seus irmãos em Cristo, de coração, preferindo-se em honra mutuamente como se afirma no verso 10.
Nenhum cristão deve ser lento, vagaroso na execução do zelo pelas coisas de Deus, e deve servi-lo fervorosamente em espírito como se vê no verso 11.
Devem ser alegres na esperança da sua salvação, e sabendo que esta é certa e segura, devem ser pacientes em suas tribulações, e conseguirão isto perseverando em oração, como se afirma no verso 12.
A vida cristã é pontilhada por muitas lutas contra os poderes das trevas, especialmente quando o cristão aumenta em graus a sua consagração ao Senhor.
Isto lhe traz muitas aflições e tristezas, produzidas pelos ataques que recebe dos espíritos opositores ao evangelho, e por isso deve permanecer firme na alegria da esperança da vida completamente resgatada das dores e aflições que sofre neste mundo, que desfrutará por ocasião da volta do Senhor, sabendo também que Ele não lhe deixará nem desamparará, ao contrário, lhe proverá força e consolo em suas provações presentes.
Paulo diz no verso 13 deste décimo segundo capítulo de Romanos: “Comunicai com os santos nas suas necessidades, segui a hospitalidade;”, a palavra no original grego para o verbo comunicai é koinoneo, de onde vem a palavra koinonia, que significa comunhão.
Então se trata de um compartilhar as necessidades dos irmãos em comunhão com eles, no Espírito, daí ser seguido este mandamento pelo de se praticar a hospitalidade; não apenas em nossas casas, mas em nossos corações.
O verso 14 contém uma repetição do mandamento que nos foi dado por Jesus em Seu ministério terreno de abençoarmos os que nos maldizem e perseguem, a ponto de até mesmo amarmos os nossos inimigos.
Todo cristão faz parte de um corpo do qual Jesus é a cabeça.
Desta forma se algum membro deste corpo está triste, ele fica também triste.
Se algum membro está alegre ele também se alegra, de maneira que é, neste modo de vida sentindo simpatia no espírito pela condição dos demais membros do corpo de Cristo, que cada cristão deve ser encontrado, por andar no Espírito e ter aprendido dEle a ter um coração como o de Cristo que simpatiza tanto com as nossas alegrias quanto com as nossas tristezas, daí ter o apóstolo dito no verso 15: “Alegrai-vos com os que se alegram; e chorai com os que choram;”.
Se é deste modo que os cristãos devem viver na comunhão mútua, então devem se esforçar para que tenham o mesmo sentir e pensar de uns para com os outros; não ambicionando as coisas que o mundo considera elevadas, mas se acomodando com as que são humildes; mas isto só será possível se não andarem segundo a sua própria sabedoria terrena, mas somente pelo ato de se autonegarem para poderem andar e viver em conformidade com a mente de Cristo, e não segundo o modo de pensar e agir deste mundo, como se lê no verso 16.
Desta forma é um dever de todo cristão, no que depender dele, ter paz com todos os homens.
Na verdade a paz de Jesus é um juiz que dirá ao nosso coração se estamos agindo contra este mandamento, porque quando estamos em plena comunhão com o Senhor, todo espírito de vingança, amargura, contenda, ira, vai embora, e o que reina é o espírito de paz como fruto do Espírito Santo.
Não é dado ao cristão o direito de se vingar – ainda que seja tratando com frieza e amargura – daqueles que julga que devem pagar por lhe terem aborrecido.
Nem mesmo no caso de uma breve ira justificada por causa de algum pecado real praticado contra ele deve abrigar qualquer sentimento de vingança, mas deixar que Deus seja o juiz da sua causa.
Ele prometeu julgar todo o mal que for praticado no mundo e certamente o fará no dia do juízo, e muitas vezes intervém com juízos, mesmo neste mundo, para defender os seus, então o cristão deve aprender a confiar totalmente nesta justiça divina que nunca falha e guardar o seu coração sossegado e em paz em meio às injustiças que possa vir a sofrer, como se vê no verso 19.
Então em vez de se vingar, deve amar seus inimigos, e caso eles tenham fome e não tenham quem possa lhes dar de comer, o cristão bem fará se o alimentar; do mesmo modo deve agir caso ele tenha sede, porque estará amontoando brasas de fogo sobre a sua cabeça, isto é, dando-lhe a oportunidade de examinar a sua consciência e ver se é justa a inimizade que tem alimentado contra os cristãos, como se lê no verso 20.
Seguindo todas estas ordenanças o cristão não se deixará vencer pelo mal, antes vencerá o mal com o bem; e nunca é demais lembrar que Satanás está sempre procurando brechas em nosso comportamento, através das quais possa entrar com suas tentações para neutralizar-nos em nossa caminhada espiritual, como se vê no verso 21.
Agora, como temos aprendido até aqui, pelo exame das Escrituras, nada disso é possível de ser vivido à parte de Cristo. Por isso necessitamos manter a nossa comunhão diariamente em espírito com Ele, através da vigilância, da oração, e do exercício de todos demais meios de graça (oração, confissão, meditação etc) que nos foram providos por Deus com vistas a mantermos a referida comunhão, pois sem Ele nada podemos fazer.
E acima de tudo devemos cuidar em manter o nosso coração puro, porque é dele que procedem todas as veredas desta vida divina.
Sem atender a tais requisitos bíblicos seria possível viver a ordenança de Cristo e dos Seus apóstolos de que os crentes devem ser fraternalmente amigos, amando-se uns aos outros com o mesmo amor com que são amados por Cristo?
Não será esta a razão de não se ver este efeito em tantas congregações ditas cristãs? Eles priorizam muitas coisas, e negligenciando o amor, a fé e a justiça, adquirem uma disposição que pouco ou nada tem a ver com aquela disposição que havia na Igreja Primitiva, porque deles se dá o seguinte testemunho:
“E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações.
Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos.
Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum.
Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.
Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração,
louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.” (Atos 2.42-47)
“Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum.
Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça.” (Atos 4.32,33)
Pr Silvio Dutra