“13 Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão,
14 prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.
15 Todos, pois, que somos perfeitos, tenhamos este sentimento; e, se, porventura, pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá.”
16 Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos.
17 Irmãos, sede imitadores meus e observai os que andam segundo o modelo que tendes em nós.” (Filipenses 3.13-17)
“Eu não julgo havê-lo alcançado”. Paulo não coloca em causa aqui a certeza da sua salvação, como se ele ainda estivesse em suspense, mas repete o que havia dito antes – que ele ainda visava a um progresso maior, porque ele ainda não tinha atingido o fim da sua vocação. Ele mostra isso imediatamente depois, dizendo que ele estava intentando apenas uma coisa, deixando de fora tudo o mais. Agora, ele compara a nossa vida a uma pista de corridas, e os limites que Deus traçou para nós, para percorrê-la. Porque, assim como nada aproveitaria ao corredor ter deixado o ponto de partida, a menos que ele fosse para a frente para o alvo, por isso devemos também prosseguir o curso da nossa vocação até a morte, e não devemos parar até que tenhamos obtido o que buscamos.
Mais ainda, como o caminho está marcado para o corredor, para que ele não venha a se cansar sem qualquer propósito vagando nesta ou naquela direção, então há também um objetivo diante de nós, para o qual devemos dirigir o nosso curso sem desvios; e Deus não nos permite vagar descuidadamente. Em terceiro lugar, como se requer do corredor que esteja livre de impedimentos, e não parar o seu curso por conta de qualquer obstáculo, assim devemos tomar cuidado para que não apliquemos a nossa mente ou coração a tudo o que possa desviar a atenção, senão que devemos, pelo contrário, empenhar o nosso esforço, livres de qualquer distração, de modo que possamos aplicar toda a inclinação da nossa mente exclusivamente ao chamado de Deus. Estas três coisas Paulo apresenta, numa só similitude. Quando ele diz que ele faz uma coisa, e esquece todas as coisas que estão para trás, dá a entender a sua assiduidade, e exclui tudo que possa distrair.
Quando ele diz que ele se apressa para o alvo, ele dá a entender que ele não está se desviando do caminho.
“Esquecendo-me das coisas que para trás ficam”. Ele alude aos corredores, que não voltam seus olhares para o lado em qualquer direção, para que não afrouxem a velocidade do seu curso, e, mais especialmente, não olham para trás para ver quanto terreno já avançaram, mas se apressam à frente incessantemente em direção à meta, Assim, Paulo nos ensina, que ele não pensava no que ele foi, ou no que ele fez, senão simplesmente corria para a frente em direção ao objetivo determinado, e que, também, com tal ardor, que ele corria para a frente, por assim dizer, com os braços estendidos. Porque uma metáfora dessa natureza está implícita no particípio que ele emprega.
Caso houvesse qualquer observação, por meio de oposição, que a lembrança de nossa vida passada é de uso para nos mover, tanto porque os favores que já nos foram conferidos nos dão o incentivo para entreter a esperança, e porque somos admoestados pelos nossos pecados a alterar o nosso curso de vida, eu respondo, que os pensamentos dessa natureza não desviam a nossa visão do que está diante de nós para o que está atrás, mas sim ajudam a nossa visão, para que possamos discernir mais claramente o objetivo. Paulo, no entanto, condena aqui como olhar para trás, aquilo quer destrói ou danifica o entusiasmo.
Assim, por exemplo, qualquer um deveria persuadir a si mesmo que ele tem feito suficiente progresso, reconhecendo que tem feito o bastante, ele se tornará indolente, e se sentirá inclinado a entregar o bastão para os outros; ou, se alguém olhar para trás com um sentimento de pesar pela situação que ele tem abandonado, ele pode não se aplicar com toda a inclinação de sua mente àquilo em que está envolvido. Tal seria a natureza dos pensamentos da mente de Paulo para que ele voltasse atrás, se ele não seguisse com seriedade a vocação de Cristo. Como, no entanto, não foi feito menção aqui de esforço e perseverança, para que ninguém imagine que a salvação consiste nessas coisas, ou mesmo atribuída à industriosidade humana que vem de outra parte, com a visão de apontar a causa de todas essas coisas, ele acrescenta – em Cristo Jesus.
“Todos, pois, que somos perfeitos”. Para que ninguém viesse a entender isso como se referindo à humanidade em geral, como se estivesse explicando os elementos simples para aqueles que são meras crianças em Cristo, ele declara que isto é uma regra que todos os que são perfeitos deveriam seguir. Agora, a regra é esta – que devemos renunciar à confiança em todas as coisas, para que possamos nos gloriar somente na justiça de Cristo, e preferindo-a a tudo o mais, aspirar por uma participação em seus sofrimentos, que pode ser o meio de conduzir-nos a uma abençoada ressurreição.
“E, se, porventura, pensais doutro modo”. Pelos mesmos meios ele tanto os humilha, e os inspira com boa esperança, porque os adverte para não se exaltarem em sua ignorância e, ao mesmo tempo, ele lhes ordena que tenham bom ânimo, quando diz que devemos aguardar a revelação de Deus. Porque sabemos quão grande obstáculo à verdade é a obstinação.
Este, “porventura”, é a melhor preparação para a docilidade – quando não temos prazer no erro. Paulo, portanto, ensina indiretamente, que devemos abrir caminho para a revelação de Deus, se nós ainda não alcançamos aquilo que buscamos. Mais adiante, quando ele ensina que devemos avançar por graus, ele lhes incentiva para não recuarem no meio da jornada. Ao mesmo tempo, ele mantém para além de toda controvérsia o que já havia ensinado previamente, quando ele ensina que outros que discordam dele terão uma revelação dada a eles do que ainda não sabem. Porque isto é como se tivesse dito: “O Senhor, um dia, vos dirá que a própria palavra que tenho afirmado é uma regra perfeita de conhecimento verdadeiro e do viver justo.”
Ninguém poderia falar desta maneira, se não estivesse totalmente assegurado da razoabilidade e precisão de sua doutrina. Vamos nesse meio tempo aprender também a partir desta passagem, que devemos topar por um tempo com a ignorância em nossos irmãos fracos, e perdoá-los, se não lhes é dado imediatamente serem de uma mente conosco. Paulo se sentia seguro da sua doutrina, e ele ainda acolhe àqueles que ainda não puderam chegar à hora de fazer progressos, e não deixa por conta disso de considerá-los como irmãos; somente os adverte contra ficarem inchados em si mesmos, em sua ignorância.
v. 16 – “Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos”. Mesmo os manuscritos gregos divergem quanto à divisão dos períodos, pois em alguns deles há duas frases completas. Se alguém, no entanto, prefere dividir o verso, o significado será como Erasmo o tomou. Da minha parte, eu preferiria uma leitura diferente, o que implica que Paulo exorta os Filipenses a imitá-lo, para que possam finalmente alcançar o mesmo objetivo, de modo a pensar a mesma coisa, e caminhar pela mesma regra.
Porque onde o afeto sincero existe, assim como reinou em Paulo, o caminho é fácil para uma concórdia santa e piedosa, como, portanto, ainda não tinham aprendido o que a perfeição verdadeira era, a fim de que pudessem alcançar isso ele deseja que eles sejam seus imitadores; ou seja, buscarem a Deus com uma consciência pura (2 Timóteo 1.3), para nada arrogarem para si, e com calma submeter seu entendimento a Cristo. Porque na imitação de Paulo todas estas excelências estão incluídas – zelo puro, temor do Senhor, modéstia, auto-renúncia, docilidade, amor e desejo de concórdia. Ele lhes ordena, no entanto, a serem um e ao mesmo tempo imitadores dele; isto é, todos com o mesmo espírito, e com uma só mente.
Observe, que a meta da perfeição para a qual ele convida os Filipenses, pelo seu exemplo, é que eles pensem a mesma coisa, e caminhem pela mesma regra que ele tem, embora, tenha atribuído o primeiro lugar à doutrina em que eles deveriam se harmonizar, e à regra à qual deveriam se conformar.
v. 17 – “Observai os que”. Por essa expressão ele quer dizer, que isto é tudo o que as pessoas devem fazer individualmente para si mesmas, para a imitação, conformando-se com a pureza da qual ele era um modelo. Por este meio toda suspeita de ambição é removida, porque o homem que se dedica a seus próprios interesses não deseja ter qualquer rival. Ao mesmo tempo, ele lhes avisa que todos não devem ser imitados de forma indiscriminada, como ele explica mais detalhadamente depois.
Texto de João Calvino, traduzido e adaptado por Silvio Dutra.