“7 Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo.
8 Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo.
9 e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé;
10 para o conhecer, e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte;
11 para, de algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos.
12 Não que eu o tenha já recebido ou tenha já obtido a perfeição; mas prossigo para conquistar aquilo para o que também fui conquistado por Cristo Jesus.” (Filipenses 3.7-12)
“Mas o que, para mim era lucro”. Paulo diz que essas coisas eram lucro para ele, porque a ignorância de Cristo é a única razão pela qual ficamos inchados com uma vã confiança. Assim, onde vemos uma falsa estimativa de alguém quanto à sua própria excelência, onde vemos a arrogância, onde vemos o orgulho, podemos ter a certeza de que Cristo não é conhecido. Por outro lado, tão logo Cristo resplandeça, todas aquelas coisas que antes deslumbravam nossos olhos com um esplendor falso, instantaneamente desaparecem, ou pelo menos não são mais estimadas. Essas coisas, portanto, que tinham sido lucro para Paulo quando ele era ainda cego, ou melhor, que impunham sobre ele uma aparência de ganho, ele reconhece ter sido perda para ele, quando ele foi iluminado. Por que perda? Porque elas eram tropeços no caminho da sua vinda a Cristo. O que é mais doloroso do que qualquer coisa que nos impeça de nos aproximarmos de Cristo? Agora ele fala principalmente de sua justiça própria, porque não somos recebidos por Cristo, a não ser estando nus e vazios de nossa própria justiça. Paulo, por conseguinte, reconhece que nada era tão prejudicial a ele como sua própria justiça, na medida em que ele era por meio dela excluído de Cristo.
“Sim, deveras considero tudo como perda”. Ele quer dizer, que ele continua a ser da mesma opinião, porque muitas vezes acontece, que, transportados com prazer em coisas novas, vamos esquecer tudo o mais, e depois a gente se arrepende. Daí Paulo, tendo dito que ele renunciou a todos os impedimentos, para que pudesse ganhar a Cristo, agora acrescenta, que ele continua a ser da mesma mente.
“Por causa da excelência do conhecimento”. Ele exalta o evangelho em oposição a todas as noções que tendem a nos seduzir. Porque há muitas coisas que têm uma aparência de excelência, mas o conhecimento de Cristo supera a um tal grau tudo o mais por sua sublimidade, que, em comparação com ele, não há nada que não seja desprezível. Vamos, portanto, aprender com isso, qual o valor que devemos dar ao conhecimento de Cristo. Quanto a chamá-lo de “meu Senhor”, ele faz isso para expressar a intensidade de seu sentimento.
“Por quem sofri a perda de todas as coisas”. Ele expressa mais do que ele havia feito anteriormente; pelo menos ele se expressa com maior clareza. É uma comparação tirada de marinheiros, que, quando instigados por perigo de naufrágio, jogam tudo ao mar, para que, ficando o navio menos pesado, eles possam chegar ao porto em segurança. Paulo, então, estava preparado para perder tudo o que tinha, ao invés de ser privado de Cristo.
Mas pergunta-se, se isto é necessário para nós, renunciar a riquezas e honras, e nobreza de descendência, e até mesmo à justiça externa, para que nos tornemos participantes de Cristo (Hebreus 3.14), porque todas estas coisas são dons de Deus, os quais, em si mesmos, não devem ser desprezados? Respondo que o Apóstolo não fala aqui tanto das coisas em si mesmas, tanto quanto da qualidade das mesmas.
Isto é de fato verdade, que o reino dos céus é semelhante a uma pérola preciosa, para a compra da qual ninguém deve hesitar em vender tudo o que tem (Mateus 13.46). Há, porém, uma diferença entre a substância das coisas e a qualidade. Paulo não achou ser necessário repudiar a conexão com sua própria tribo e com a raça de Abraão, e tornar-se um estrangeiro, para que pudesse se tornar um cristão, mas renunciar à dependência de sua descendência. Não convinha, que sendo casto ele devesse se tornar impuro; que sendo sóbrio, devesse se tornar imoderado; e que sendo honrado e respeitado, se tornasse dissoluto; senão que ele deveria se despojar de uma falsa estimativa de sua própria justiça, e tratá-la com desprezo.
Nós, também, ao tratar da justiça da fé, não discutimos a substância das obras, mas contra a qualidade que os sofistas lhe atribuem, na medida em que afirmam que os homens são justificados por elas. Paulo, portanto, se despojou – não das obras, mas daquela confiança equivocada em obras, com a qual ele havia sido inchado.
Quanto a riqueza e honras, quando temos nos despojado do apego a elas, estaremos preparados, também, a renunciar às próprias coisas, sempre que o Senhor exigir isso de nós, e assim deve ser. Não é expressamente necessário que você seja um homem pobre, a fim de que possa ser cristão; mas se for do agrado do Senhor que deve ser assim, você deve estar preparado para suportar a pobreza. Em suma, não é lícito que os cristãos nada tenham além de Cristo. Eu considero como separado de Cristo tudo o que é um empecilho no caminho de Cristo ser o nosso único motivo de nos gloriarmos, e de ter uma completa influência sobre nós.
“E eu considero como refugo”. Aqui ele não apenas por palavras, mas também em realidade, amplia enormemente o que havia antes declarado. Porque aqueles que lançam suas mercadorias e outras coisas ao mar, para que possam escapar em segurança, não o fazem, portanto, por desprezarem as riquezas, mas agem como pessoas preparadas, porque é melhor de viver na miséria e necessidade, do que ser afogado junto com suas riquezas . Eles se separam delas, de fato, mas é com pesar e com um suspiro; e quando eles escapam, eles lamentam a perda delas. Paulo, no entanto, declara, por outro lado, que ele tinha não apenas abandonado tudo o que anteriormente considerava precioso, mas que lhe era como esterco, ofensivo para ele, ou perderam a sua estima como coisas que são jogadas fora com desprezo. Crisóstomo usa a palavra – palha. Os gramáticos, porém, são de opinião, que σκύβαλον é empregado como se fosse κυσίβαλον – o que é jogado para cães. E, certamente, há uma boa razão por que tudo o que se opõe a Cristo deva ser ofensivo para nós, na medida em que é uma abominação, aos olhos de Deus (Lucas 16.15). Há uma boa razão por que deve ser ofensivo para nós também, em razão de ser uma imaginação sem fundamento.
“ Para que eu possa ganhar a Cristo”. Por esta expressão dá a entender que não podemos ganhar a Cristo, exceto por perder tudo o que temos. Porque ele nos queria ricos pela sua graça somente: ele sozinho teria que ser nossa completa bem-aventurança. Agora, de que maneira devemos sofrer a perda de todas as coisas, já foi dito – de tal maneira que nada vai nos desviar da confiança em Cristo. Mas se Paulo, com tal inocência e integridade de vida, não hesitou em contar sua própria justiça como perda e esterco, o que significam aqueles fariseus dos dias de hoje, que, embora cobertos com todos os tipos de maldade, no entanto, não sentem vergonha em exaltar seus próprios méritos em oposição a Cristo?
“E ser achado nele”. O verbo está na voz passiva, e, portanto, outros o traduzem como “eu possa ser encontrado”. Eles passam sobre o contexto, embora, de uma maneira muito indiferente, como se ele não tivesse nenhuma força peculiar.
Se você lê-lo na voz passiva, uma antítese será entendida – que Paulo estava perdido antes de ser encontrado em Cristo, como um rico comerciante é como um perdido, enquanto ele tem seu navio carregado de riquezas; mas quando elas foram lançadas ao mar, como ele é encontrado? O que ele quer dizer aqui nos conduz admiravelmente ao ponto – “Eu estaria perdido, se eu não tivesse sido perdido.” Mas como o verbo εὐρίσκομαι, enquanto ele tem uma terminação passiva, tem uma significação ativa, e os meios – para recuperar aquilo que você voluntariamente renunciou (como Budaeus mostra por vários exemplos). Eu não hesito em ser diferente da opinião dos outros.
Pois, desta forma, o significado será mais completo, e a doutrina mais ampla – que Paulo renunciou a tudo o que tinha, para que ele pudesse recuperá-lo em Cristo; o que corresponde melhor à palavra ganho, pois isso significa que isto não era um ganho trivial ou comum, na medida em que Cristo contém tudo em si mesmo. E, sem dúvida, não perdemos nada quando chegamos a Cristo nus e vazios de tudo, porque aquelas coisas que nós previamente imaginávamos, por motivos falsos, que possuíamos, começamos então realmente a adquirir. Ele, portanto, mostra mais plenamente, quão grandes são as riquezas de Cristo, porque obtemos e encontramos todas as coisas nele.
“Não tendo justiça própria”. Aqui temos uma passagem notável, se alguém está desejoso de ter uma descrição específica da justiça da fé, e compreender a sua verdadeira natureza. Porque Paulo faz aqui uma comparação entre dois tipos de justiça. A que ele fala de como pertencendo ao homem, enquanto ele a chama, ao mesmo tempo, de a justiça da Lei; e a outra, que ele nos diz, ser de Deus, que é obtida por meio da fé, e repousa sobre a fé em Cristo. Ele as representa como tão diretamente opostas uma à outra, que não podem ficar juntas. Portanto, há duas coisas que devem ser observadas aqui. Em primeiro lugar, que a justiça da Lei deve ser abandonada e renunciada, que você pode ser justo por meio da fé; e em segundo lugar, que a justiça da fé procede da parte de Deus, e não pertence ao indivíduo. Quanto a esses dois tipos de justiça é que temos nos dias de hoje uma grande controvérsia com os papistas; porque, por um lado, eles não admitem que a justiça da fé é totalmente de Deus, mas atribuem isso em parte ao homem; e, por outro lado, eles as misturam em conjunto, como se uma não destruísse a outra. Por isso, devemos examinar cuidadosamente as diversas palavras das quais Paulo fez uso, pois não há uma só que não seja muito enfática.
Ele diz que os crentes não têm justiça própria. Agora, não se pode negar que, se houvesse alguma justiça de obras, poderia ser dito com propriedade que seria nossa. Por isso, ele não deixa qualquer espaço que seja para a justiça de obras. Por que ele a chama de justiça da lei, ele mostra em Romanos 10.5; porque esta é a sentença da lei, aquele que faz estas coisas viverá por elas. A lei, portanto, pronuncia o homem justo por meio de obras. Também não há qualquer fundamento para o sofisma de papistas, que tudo isso deve ser restrito às cerimônias. Porque em primeiro lugar, é uma frivolidade desprezível afirmar que Paulo era justo apenas através de cerimônias; e em segundo lugar, ele traça desta forma um contraste entre esses dois tipos de justiça – uma do homem, e outra, de Deus. Ele sugere, portanto, que uma é a recompensa de obras, enquanto a outra é um dom gratuito de Deus. Ele, assim, de um modo geral, coloca o mérito do homem em oposição à graça de Cristo; porque enquanto a lei traz obras, a fé apresenta o homem diante de Deus como nu, para que possa ser vestido com a justiça de Cristo. Quando, portanto, ele declara que a justiça da fé é de Deus, não é simplesmente porque a fé é um dom de Deus, mas porque Deus nos justifica por sua bondade, ou porque recebemos pela fé a justiça que ele nos tem conferido.
“Para que eu possa conhecê-lo”. Ele ressalta a eficácia e a natureza da fé – que é o conhecimento de Cristo, e que, também, não de forma despida ou indistinta, senão de tal forma que o poder da sua ressurreição é sentido. Ele se refere à ressurreição com o sentido de conclusão da redenção, assim que isto engloba ao mesmo tempo a ideia da morte. Mas como não é o suficiente conhecer a Cristo como crucificado e ressuscitado dentre os mortos, a menos que você experimente, também, o fruto disto, ele fala expressamente de eficácia. Cristo, portanto, é justamente conhecido, quando sentimos quão poderosa é a sua morte e ressurreição, e como são eficazes em nós. Agora todas as coisas são fornecidas a nós – expiação e destruição do pecado, a liberdade da condenação, a satisfação da justiça de Deus, a vitória sobre a morte, a realização da justiça e da esperança de uma bendita imortalidade.
“E a comunhão dos seus sofrimentos”. Tendo falado da justiça que é livremente conferida, que foi adquirida por nós através da ressurreição de Cristo, e é obtida por nós através da fé, ele passa a tratar dos exercícios dos piedosos, e para que não parecesse como se ele tivesse apresentado uma fé inativa, que não produz efeitos na vida. Ele também sugere, indiretamente, que estes são os exercícios em que o Senhor deseja que seu povo se empenhe; enquanto os falsos apóstolos apresentavam os elementos inúteis de cerimônias. Que cada um, portanto, que se tornou, pela fé, participante de todos os benefícios de Cristo, reconheça que uma condição deve ser apresentada a ele – que toda a sua vida seja conformada com a sua morte.
Há, no entanto, uma dupla participação e comunhão na morte de Cristo. A primeira é interior – que a Escritura costuma chamar de mortificação da carne, ou a crucificação do velho homem, do qual Paulo trata no sexto capítulo de Romanos; a outra é exterior – que é chamada de mortificação do homem exterior. É a perseverança da Cruz, da qual ele trata, no oitavo capítulo da mesma epístola, e aqui também, se eu não me engano. Porque depois de introduzir junto com esta o poder da sua ressurreição, Cristo crucificado é colocado diante de nós, para que possamos segui-lo através de tribulações e angústias; e, portanto, é feita expressamente menção à ressurreição dos mortos, para que saibamos que temos de morrer antes de viver. Este é um assunto contínuo de meditação para os crentes, enquanto estiverem peregrinando neste mundo.
Isso, no entanto, é uma consolação especial, que em todas as nossas misérias somos participantes da Cruz de Cristo, se nós somos seus membros; assim que, através de aflições o caminho está aberto para nós à bem-aventurança eterna, como lemos em outros lugares,
“Se morrermos com ele, também viveremos com ele; se sofremos com Ele, também reinaremos com ele.” (2 Timóteo 2.11).
Todos nós devemos, portanto, estar preparados para isso – de que toda a nossa vida deve representar nada mais do que a imagem da morte, até produzir a própria morte, como a vida de Cristo não é nada mais do que um prelúdio da morte. Nós desfrutamos, no entanto, nesse meio tempo, desta consolação – que o fim é a eterna bem-aventurança. Porque a morte de Cristo está ligada com a ressurreição. Por isso Paulo diz que ele está conformado com sua morte, para que ele possa alcançar a glória da ressurreição. A frase, “se, por qualquer meio”, não indica dúvida, mas expressa a dificuldade, com vista a estimular o nosso esforço sincero, na medida em que devemos lutar contra tantos e tão sérios impedimentos.
“Não que eu o tenha já recebido”. Paulo insiste sobre isto, para que ele possa convencer aos filipenses que ele não pensava em nada além de Cristo – nada mais conhecia – não desejava nada mais – não estava ocupado com nenhum outro objeto de meditação. Em conexão com isso, há muito peso no que ele acrescenta agora – que ele próprio, enquanto tinha desistido de todos os tropeços, no entanto, não tinha alcançado o objetivo final, e que, por esse motivo, ele sempre visou e aspirava ansiosamente por algo mais. Quanto mais isto competia aos Filipenses, que ainda estavam muito atrás dele?
É perguntado, no entanto, o que é que Paulo diz que ele ainda não alcançou? Porque inquestionavelmente, tão logo que somos enxertados pela fé no corpo de Cristo, já temos entrado no reino de Deus, e, como se afirma em Efésios 2.6, já estamos, na esperança, assentados nos lugares celestiais. Eu respondo, que a nossa salvação, nesse meio tempo, é na esperança, porque a herança de fato é segura; mas temos algumas coisas em cuja posse ainda não nos encontramos. Ao mesmo tempo, Paulo aqui olha para outra coisa – o avanço da fé, e aquela mortificação à qual tinha feito menção antes. Ele havia dito que ele visava ansiosamente e aspirava à ressurreição dos mortos pela participação na Cruz de Cristo. Ele acrescenta, que ele ainda não chegou a isso. Em quê? Na consecução de ter comunhão inteira nos sofrimentos de Cristo, tendo um desfrutar completo do poder da sua ressurreição, e conhecê-lo perfeitamente.
Ele ensina, portanto, pelo seu próprio exemplo, que devemos fazer progressos, e que o conhecimento de Cristo é uma realização de tal dificuldade, que mesmo aqueles que se aplicam exclusivamente a isso, no entanto, não alcançam a perfeição nisto, enquanto aqui viverem. Isso, no entanto, não diminui em qualquer grau a autoridade da doutrina de Paulo, na medida em que ele tinha adquirido, o tanto quanto era suficiente para cumprir o ofício que lhe foi designado. Nesse meio tempo, era necessário que ele fizesse progressos, para que o instrutor divinamente equipado com tudo possa ser treinado para a humildade.
“Para o que também fui conquistado por Cristo”.
Esta cláusula ele inseriu a título de correção, para que pudesse atribuir todos os seus esforços à graça de Deus. Não é de muita importância a forma como você leia, porque em ambos os casos o significado é o mesmo – que Paulo foi conquistado por Cristo, para que pudesse conquistar a Cristo; isto é, que ele não fez nada, exceto sob influência e orientação de Cristo.
Texto de João Calvino, traduzido e adaptado por Silvio Dutra.