“24 Permaneça em vós o que ouvistes desde o princípio. Se em vós permanecer o que desde o princípio ouvistes, também permanecereis vós no Filho e no Pai.
25 E esta é a promessa que ele mesmo nos fez, a vida eterna.
26 Isto que vos acabo de escrever é acerca dos que vos procuram enganar.
27 Quanto a vós outros, a unção que dele recebestes permanece em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina a respeito de todas as coisas, e é verdadeira, e não é falsa, permanecei nele, como também ela vos ensina todas as cousas, e é verdadeira, e não é falsa, permanecei nele, como também ela vos ensinou.
28 Filhinhos, agora, pois, permanecei nele, para que, quando ele se manifestar, tenhamos confiança e dele não nos afastemos envergonhados na sua vinda.
29 Se sabeis que ele é justo, reconhecei também que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele.” (I João 2.24,25)
24. “Que permaneça em vós”. João acrescenta uma exortação à doutrina anterior; e para que isto pudesse ter mais peso, ele aponta os frutos que receberiam da obediência. Ele, então, exorta-os à perseverança na fé, para que pudessem reter fixamente em seus corações o que tinham aprendido.
Mas, quando ele diz, desde o início, ele não quer dizer que a antiguidade era suficiente para provar qualquer doutrina verdadeira; mas assim como ele já tem mostrado que eles haviam sido corretamente instruídos no puro evangelho de Cristo, ele conclui que eles deveriam continuar no mesmo. E esta ordem deveria ser especialmente observada; porque somos dispostos a divergir daquela doutrina que temos uma vez abraçado, seja ela qual for, e isso não seria perseverança, mas obstinação perversa. Assim, a distinção deveria ser exercida, de modo que a razão da nossa fé possa ser evidenciada a partir da palavra de Deus; então devemos seguir uma perseverança inflexível.
“Desde o princípio ouvistes”. Aqui está o fruto da perseverança – que aqueles em quem a verdade de Deus permanece, permaneçam em Deus.
Nós, portanto, aprendemos o que devemos procurar em cada verdade relativa à religião. Faz, portanto, a maior proficiência, quem faz tal progresso estando completamente apegado a Deus. Mas em quem o Pai não habita através de seu Filho, é completamente fútil e vazio, qualquer conhecimento que ele possa possuir sobre religião. Além disso, esta é a mais alta comenda da sã doutrina, a qual nos une a Deus, e que nela se encontra tudo o que diz respeito à verdadeira fruição de Deus.
Em último lugar, João nos lembra que isto é a verdadeira felicidade, quando Deus habita em nós. As palavras que ele usa são ambíguas. Elas podem ser interpretadas: “Esta é a promessa que ele nos prometeu a vida eterna.” Você pode, no entanto, adotar qualquer uma destas interpretações, porque o significado ainda é o mesmo. A suma do que é dito é que não podemos viver, exceto em nutrir até o fim a semente da vida semeada em nossos corações. João insiste muito sobre este ponto, que não somente o começo de uma vida abençoada deve ser encontrada no conhecimento de Cristo, mas também a sua perfeição. Mas nenhuma repetição disto será demais, desde que é sabido que isto tem sido sempre a causa de ruína para os homens, que estando, não contentes com Cristo, eles têm tido um desejo para vaguear além da simples doutrina do evangelho.
26. “Estas coisas vos escrevi”. O próprio apóstolo se desculpa novamente por ter admoestado aqueles que eram bem dotados de conhecimento e julgamento. Mas ele fez isso, para que eles pudessem se aplicar à orientação do Espírito Santo, para que sua admoestação não fosse em vão; como se ele tivesse dito: “Eu, na verdade faço a minha parte, mas ainda é necessário que o Espírito de Deus deve encaminhá-los em todas as coisas; em vão seria até o som da minha voz, batendo nos seus ouvidos, ou melhor, o ar, a menos que ele fale dentro de vocês.”
Quando ouvimos que ele escreveu a respeito de sedutores, devemos ter sempre em mente, que é o dever de um bom e diligente pastor, não somente reunir um rebanho, mas também afugentar os lobos; porque do que adiantaria proclamar o evangelho puro, se formos coniventes com as imposturas de Satanás? Ninguém, então, pode ensinar fielmente à Igreja, a não ser que ele seja diligente em banir erros, sempre que encontrá-los espalhados por sedutores. O que ele diz sobre a “unção que dele recebestes”, eu o aplico a Cristo.
27. “E não tendes necessidade de que alguém vos ensine”. Deve ter sido o propósito de João, como eu já disse, se ele pretendia apresentar o ensino como sendo inútil. Ele não lhes atribui tanta sabedoria, como para negar que eles fossem estudiosos de Cristo. Ele só quis dizer que eles não eram de nenhuma forma tão ignorantes como se precisassem que as coisas desconhecidas lhes fossem ensinadas, porque ele não colocou diante deles qualquer coisa, que o Espírito de Deus não pudesse lhes sugerir de si mesmo.
Absurdamente, então, agem os homens fanáticos leigos que usam essa passagem, com o fim de excluir da Igreja o uso do ministério externo (que chamam de leigo). Ele diz que o fiéis, ensinados pelo Espírito, já entenderam o que ele lhes entregou, porque eles não tinham necessidade de aprender coisas desconhecidas para eles. Ele disse isso, para que pudesse acrescentar mais autoridade à sua doutrina, enquanto cada um a recebendo em seu coração, a gravasse como se fosse pelo dedo de Deus. Mas, como cada um tinha conhecimento de acordo com a medida de sua fé, e como a fé em alguns era pequena, e em outros mais forte, e em nenhum era perfeita, portanto, segue-se que ninguém sabia tanto, que não houvesse espaço para o progresso.
Há também um outro uso para ser feito desta doutrina, – que quando os homens realmente entendem o que é necessário para eles, ainda devemos adverti-los e despertá-los, para que possam ser mais confirmados. Por que o que João diz que eles foram ensinados sobre todas as coisas pelo Espírito, não deve ser tomado genericamente, mas deve ser limitado ao que está contido nessa passagem. Ele tinha, em suma, nenhuma outra coisa em vista senão fortalecer a fé deles, enquanto ele lhes lembrou do exame do Espírito, que é o único corretor e aprovador de doutrina, que a sela em nossos corações, para que possamos conhecer com certeza o que Deus fala. Por enquanto a fé deve olhar para Deus, somente ele pode ser um testemunho de si mesmo, de modo a convencer os nossos corações que o que nossos ouvidos recebem tem vindo dele.
E o mesmo é o significado dessas palavras, “como a sua unção ensina todas as coisas”, e é verdade; isto é, o Espírito é como um selo, pelo qual a verdade de Deus é testificada a você. Quando ele acrescenta, “e não é falsa”, ele aponta outro ofício do Espírito, pois ele nos reveste com julgamento e discernimento, para que não sejamos enganados por falsidades, para que não hesitemos e fiquemos perplexos, para que não vacilemos em coisas duvidosas.
“Permanecei nele, como também ela vos ensinou”. Ele tinha dito, que o Espírito habitava neles; agora ele os exorta a permanecerem na revelação feita por ele, e especifica que revelação era, “permanecei”, diz ele, “em Cristo, conforme o Espírito Santo vos ensinou.” Outra explicação, eu sei, é comumente dada: “Permanecei nela”, isto é, na unção. Mas, como a repetição que se segue imediatamente, não pode ser aplicada a qualquer outro, senão a Cristo, eu não tenho nenhuma dúvida de que ele fala aqui também de Cristo; e isso é exigido pelo contexto; porque o Apóstolo discorre muito sobre este ponto, que os fiéis devem reter o verdadeiro conhecimento de Cristo, e que eles não devem ir a Deus de qualquer outra forma.
Ele, ao mesmo tempo mostra, que os filhos de Deus são iluminados pelo Espírito, para nenhum outro fim, senão para que possam conhecer a Cristo. Providenciando para que eles não se desviassem dele, ele lhes prometeu o fruto da perseverança, mesmo da confiança, de modo a não terem vergonha na sua presença. Pois a fé não é uma nua e fria apreensão de Cristo, mas um sentimento vivo e real do seu poder, que produz confiança. De fato, a fé não pode permanecer, enquanto jogada diariamente por tantas ondas, senão somente por se esperar a vinda de Cristo, e, apoiado por seu poder, isto traz tranquilidade à consciência. Mas a natureza da confiança é bem expressada, quando ele diz que ela pode corajosamente sustentar a presença de Cristo. Pois aqueles que se entregam de forma segura aos seus vícios, viram as costas para Deus; e nem podem de outra forma obter a paz do que por esquecê-lo.
Esta é a segurança da carne, que entorpece os homens; para que se afastando de Deus, nunca tenham medo do pecado, nem da morte; enquanto evitam o tribunal de Cristo. Mas uma piedosa confiança encanta o olhar para Deus. Por isso, é que os santos calmamente esperam por Cristo, nem temem a sua vinda.
29. “Se sabeis que ele é justo”. Ele passa novamente às exortações, para que ele as misture continuamente com a doutrina em toda a Epístola; mas ele prova por muitos argumentos que a fé é necessariamente conectada com uma vida santa e pura. O primeiro argumento é que somos gerados espiritualmente à semelhança de Cristo; que daí resulta, que ninguém nasce de Cristo, senão aquele que vive em retidão. É ao mesmo tempo incerto se ele quer dizer Cristo ou Deus, quando ele diz que os que nascem dele praticam a justiça. É um modo de falar certamente utilizado nas Escrituras, que nascemos de Deus em Cristo; mas não há nada inconsistente em dizer também, que aqueles que são nascidos de Cristo, são aqueles que são renovados por seu Espírito.
Texto de João Calvino, traduzido e adaptado por Silvio Dutra.