“23 Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome;
24 mas o próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos.
25 E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana.”
23. “Muitos acreditaram”. O evangelista liga adequadamente esta narrativa com a anterior. Cristo não tinha dado o sinal que os judeus lhe solicitaram; e agora, quando ele não produziu qualquer bom efeito sobre eles por muitos milagres – exceto que eles entretiveram uma fé fria, que era apenas a sombra da fé – este evento prova suficientemente que não mereciam que ele atendesse aos seus desejos. Isto foi, de fato, alguns frutos dos milagres, que muitos viessem a acreditar em Cristo e em seu nome, assim como professar que desejavam seguir a sua doutrina; porque a palavra “nome” é usada aqui em lugar de “autoridade”. Este aspecto da fé, que até então era inútil, poderia vir a ser transformado em verdadeira fé, e poderia ser uma útil preparação para celebrar o nome de Cristo; e ainda o que temos aqui escrito, é verdade, pois eles estavam longe de ter bons sentimentos, de modo a serem beneficiados com as obras de Deus, como deveriam ter feito.
No entanto, esta não era uma fé fingida pela qual eles desejavam ganhar reputação entre os homens; pois eles estavam convencidos de que Cristo era algum grande Profeta, e talvez até mesmo atribuíram-lhe a honra de ser o Messias, em relação a quem havia naquela época uma forte e geral expectativa. Mas, como eles não entenderam o ofício peculiar do Messias, sua fé era um absurdo, porque estava exclusivamente direcionada para o mundo e as coisas terrenas. Foi também uma crença fria, e desacompanhada dos verdadeiros sentimentos do coração. Porque hipócritas não aderem ao Evangelho, para que possam se dedicar em obediência a Cristo, nem com aquela sincera piedade para que possam seguir a Cristo quando ele lhes chama, mas porque não se aventuram a rejeitar totalmente a verdade que eles conhecem, e especialmente quando não encontram razão para se oporem a ele. Porque, assim como eles voluntariamente, ou de comum acordo, fazem guerra contra Deus, por isso, quando percebem que sua doutrina é contrária à carne e aos seus desejos ímpios, eles ficam imediatamente ofendidos, ou, pelo menos, retiram-se da fé que já tinham abraçado.
Quando o evangelista diz, portanto, que aqueles homens “creram”, eu não entendo isto como se eles tivessem uma fé que não existia, mas que foram, de alguma forma constrangidos a se alistarem como seguidores de Cristo; e, no entanto, parece que a sua fé não era verdadeira e genuína, porque Cristo os excluiu do número daqueles cujos sentimentos eram verdadeiros. Além disso, aquela fé dependia apenas de milagres, e não tinha raízes no Evangelho e, portanto, não poderia ser estável ou permanente. Os milagres, ajudam de fato, os filhos de Deus a chegarem à verdade; mas não correspondem à crença real, quando eles admiram o poder de Deus, a fim de crer meramente que isto é verdade, mas não para se submeterem inteiramente a ele, e, portanto, quando falamos genericamente sobre a fé, saibamos que há um tipo de fé que é percebida pelo entendimento apenas, e depois desaparece rapidamente, porque ela não é fixada no coração; e é a fé a que Tiago chama de morta; mas a verdadeira fé sempre depende do Espírito de regeneração (Tiago 2.17, 20, 26). Observe-se, que nem todos obtêm um igual benefício com as obras de Deus; porque alguns são conduzidos por elas a Deus, e os outros só são movidos por um impulso cego, assim que, embora eles percebam realmente o poder de Deus, ainda não deixam de vaguear em suas próprias imaginações.
24. “Mas Jesus não se confiava a eles”. Aqueles que explicam o significado como sendo que Cristo estava em guarda contra eles, porque sabia que eles não estavam na posição reta e fiel, não me parece que expressem suficientemente bem o significado do Evangelista. Concordo ainda menos com o que Agostinho diz sobre recém-convertidos. O evangelista afirma, em minha opinião, que Cristo não achou que eles fossem genuínos discípulos, e os rejeitou por serem tão voláteis e instáveis. Esta é uma passagem que deve ser cuidadosamente observada, que nem todos os que professam ser seguidores de Cristo o são de fato em Sua estimativa. Mas nós também devemos adicionar a razão que imediatamente se segue:
“Porque ele conhecia todos eles”. Nada é mais perigoso do que a hipocrisia, por esta razão entre outras, a qual é um erro extremamente comum. Raramente há algum homem que não esteja feliz consigo mesmo; e enquanto nos iludimos com lisonjas vazias, imaginamos que Deus é cego como nós. Mas aqui somos lembrados de quão amplamente seu julgamento é diferente do nosso; pois ele vê claramente as coisas que não podemos perceber, porque elas estão ocultas por algum disfarce; e ele avalia de acordo com a fonte escondida deles, isto é, de acordo com o mais secreto sentimento do coração, essas coisas que deslumbram os olhos por um falso brilho. Isto é o que diz Salomão:
“Deus pesa em sua balança o coração dos homens, enquanto eles se lisonjeiam em seus caminhos” (Provérbios 21.2).
Lembremo-nos, portanto, que ninguém é verdadeiro discípulo de Cristo senão aqueles que Ele aprova, porque em tal assunto só Ele é competente para decidir e julgar.
A questão agora é: quando o evangelista diz que Cristo conhecia a todos, ele quer se referir apenas àqueles de quem ele havia falado ultimamente, ou faz a expressão referir-se a toda a raça humana? Alguns o entendem como sendo a natureza universal do homem, e acho que o mundo inteiro é aqui condenado por hipocrisia perversa e pérfida. E, certamente, é uma afirmação verdadeira, de que Cristo pode encontrar nos homens nenhuma razão pela qual deveria se dignar a colocá-los no número de seus seguidores; mas eu não vejo que isso esteja de acordo com o contexto e, portanto, eu o restrinjo aos que haviam sido anteriormente mencionados.
25. “Pois ele sabia o que havia no homem”. Como pode ser posto em dúvida de onde Cristo tinha obtido este conhecimento, o Evangelista antecipa essa questão, e responde que Cristo percebia cada coisa nos homens que está oculta de nossa vista, assim que ele podia, por sua própria autoridade, fazer uma distinção entre os homens. Cristo, portanto, que conhece os corações, não tinha necessidade de qualquer um para informá-lo que tipo de homens eram. Ele os conhecia por terem tal disposição e tais sentimentos, que ele considerava como sendo justo tais pessoas não pertencerem a ele.
A questão colocada por alguns – que se nós também somos autorizados pelo exemplo de Cristo a manter pessoas como suspeitas que não nos deram provas de sua sinceridade – não tem nada a ver com a presente passagem. Existe uma grande diferença entre ele e nós; porque Cristo conhece as raízes das árvores, mas, com exceção dos frutas que aparecem exteriormente, não podemos descobrir qual é a natureza de qualquer árvore. Além disso, como Paulo nos diz, que o amor não suspeita (1 Coríntios 13.5), não temos o direito de entreter suspeitas desfavoráveis sobre os homens que são desconhecidos a nós. Mas, para que não sejamos sempre enganados por hipócritas, e para que a Igreja não esteja muito exposta às suas imposturas perversas, pertence a Cristo dar-nos Espírito de discernimento.
Texto de João Calvino, traduzido e adaptado por Silvio Dutra.