“Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus.” (João 3.1)
“Ora, havia um homem dos fariseus”. Na pessoa de Nicodemos o Evangelista exibe agora, a nosso ver, quão vã e passageira era a fé daqueles que, tendo sido animados por milagres, de repente, professavam ser discípulos de Cristo. Pois desde que este homem era da ordem dos fariseus, e ocupava o posto de um governante em seu país, ele deve ter sido muito mais excelente do que outros.
As pessoas comuns, em sua maior parte, são superficiais e instáveis; mas quem não teria pensado que aquele que era letrado e experiente era também um homem sábio e prudente? No entanto, da resposta de Cristo é evidente, que nada estava mais distante do seu propósito em ter vindo a este mundo, do que uma pretensão de aprender os primeiros princípios da religião. Se ele, que era um príncipe entre os homens é menos do que uma criança, o que deveríamos pensar da multidão em geral? Agora, embora o desígnio do Evangelista tenha sido o de exibir, como em um espelho, quão poucos houve em Jerusalém que estavam corretamente dispostos para receber o Evangelho, ainda, por outras razões, esta narrativa é muito útil para nós; e especialmente porque nos instrui sobre a natureza depravada do homem, sobre o que é a entrada correta na escola de Cristo, e qual deve ser o início do nosso treinamento para fazer progressos na doutrina celeste. Porque a suma do discurso de Cristo é, que, a fim de que possamos ser seus verdadeiros discípulos, devemos nos tornar homens novos.
Mas, antes de prosseguir mais adiante, temos de confirmar pelas circunstâncias que são aqui descritas pelo Evangelista, quais foram os obstáculos que impediram Nicodemos de entregar-se sem reservas a Cristo.
“Dos fariseus”. Esta designação era, sem dúvida, estimada por seus conterrâneos como honrosa para Nicodemos; mas não é por uma questão de honra que isto lhe é atribuído pelo evangelista, que, ao contrário, chama a nossa atenção, para o que o impediu de vir voluntária e alegremente a Cristo.
Por isso, somos lembrados que os que ocupam uma posição elevada no mundo são, em sua maioria, envolvidos por muitas armadilhas perigosas; não, vemos muitos deles tão firmemente empenhados, e nem mesmo o menor desejo ou oração surge a partir deles para o céu ao longo de toda sua vida. Por que eles foram chamados fariseus temos explicado em outra parte; porque se gabavam de serem os únicos expositores da Lei, como se estivessem na posse, do cerne e do sentido escondido da Escritura; e por essa razão eles se chamavam phrvsym (Perushim). Embora os essênios levassem uma vida mais austera, que granjeou-lhes uma grande reputação de santidade; ainda porque, como eremitas, abandonaram a vida cotidiana e os costumes dos homens, a seita dos fariseus era tida em estima mais elevada. Além disso, o Evangelista menciona não somente que Nicodemos era da ordem dos fariseus, mas que ele era um dos governantes de sua nação.
“Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse: Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.” (João 3.2)
“Ele veio a Jesus à noite”. A partir da circunstância de sua vinda à noite inferimos que sua timidez era excessiva; porque seus olhos estavam deslumbrados, por assim dizer, pelo esplendor da sua própria grandeza e reputação. Talvez ele também foi prejudicado pela vergonha, pois homens ambiciosos pensam que a sua reputação será completamente arruinada, uma vez que tiverem descido da dignidade dos mestres para o posto de alunos; e ele estava, sem dúvida, inchado com um parecer tolo de seu conhecimento. Em suma, como ele tinha uma opinião elevada de si mesmo, ele não estava disposto a perder uma parte da sua altura. E, no entanto, aparecem nele algumas sementes de piedade; por ter ouvido que um Profeta de Deus tinha aparecido, ele não desprezou ou rejeitou a doutrina que tem sido trazida do céu, e é movido por um desejo de obtê-la, – um desejo que surgiu a partir de nada mais do que do temor e reverência a Deus.
Muitos estão deliciados com uma ociosa curiosidade de perguntar ansiosamente sobre qualquer coisa que é nova, mas não há nenhuma razão para duvidar que foi um princípio religioso e sentimento consciente que animaram em Nicodemos o desejo de obter um conhecimento mais íntimo da doutrina de Cristo. E, apesar daquela semente ter permanecido muito tempo oculta e aparentemente morta, todavia, após a morte de Cristo rendeu frutos, como nenhum homem jamais teria esperado, como podemos ver em João 19.39.
“Rabi, sabemos”. O significado dessas palavras é: “Mestre, sabemos que vieste para ser um ensinador.” Mas como os homens letrados, naquele tempo, eram geralmente chamados de mestres, Nicodemos primeiro saúda Cristo em conformidade com o costume, e lhe dá a designação comum, Rabi, (que significa Mestre) e depois declara que ele foi enviado por Deus para desempenhar o ofício de um Mestre. E deste princípio depende toda a autoridade dos professores na Igreja; porque como é somente a partir da palavra de Deus que devemos aprender a sabedoria, não devemos ouvir quaisquer outras pessoas senão aquelas através de cuja boca Deus fala. E isto deveria ser observado que, embora a religião estivesse muito corrompida e quase destruída entre os judeus, ainda assim eles sempre mantiveram esse princípio, que nenhum homem era um professor legítimo, a menos que ele tivesse sido enviado por Deus.
Mas como não há ninguém que mais arrogante e ousadamente se glorie de ter sido enviado por Deus do que os falsos profetas, precisamos de discernimento neste caso, para provar os espíritos. Portanto, Nicodemos acrescenta: “Porque ninguém pode fazer os sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele”. É evidente, diz ele, que Cristo foi enviado por Deus, porque Deus mostra seu poder nele tão distintamente, que não pode ser negado que Deus está com ele. Nicodemos tem como certo que Deus não está acostumado a trabalhar, senão por seus ministros, de modo a selar o ofício que lhes foi confiado. E ele tinha boas razões para pensar assim, porque Deus sempre pretendeu que os milagres devem ser selos de sua doutrina. Justamente portanto, é que ele faz de Deus o único autor de milagres, quando diz que ninguém pode fazer estes sinais, se Deus não estiver com ele; o que equivale a dizer que os milagres não são executados pelo braço do homem, mas que o poder de Deus reina, e é distintamente exibido neles. Em uma palavra, como os milagres têm uma dupla vantagem, para preparar a mente para a fé, e, quando isto tem sido formado pela Palavra, a confirmam ainda mais, Nicodemos tinha acertado corretamente na primeira parte, por reconhecer pelos milagres que Cristo era um verdadeiro profeta de Deus.
No entanto, seu argumento parece não ser conclusivo; porque desde que o falsos profetas enganam os ignorantes por suas imposturas, e se provassem completamente por verdadeiros sinais que eles são ministros de Deus, que diferença haverá entre a verdade e a mentira, se a fé depende de milagres? Não, Moisés diz expressamente que Deus utiliza esse método para provar se nós o amamos (Deuteronômio 13.3). Conhecemos também, o alerta de Cristo (Mateus 24.14), e de Paulo (2 Tessalonicenses 2.9), que crentes devem tomar cuidado com sinais, pelos quais o Anticristo deslumbrará os olhos de muitos. Eu respondo, Deus pode permitir que isso seja feito, que aqueles que o merecem sejam enganados pelos encantamentos de Satanás. Mas eu digo que isso não impede os eleitos de perceberem em milagres o poder de Deus, que é para eles uma confirmação inquestionável da verdade e sã doutrina. Assim, Paulo se gloria de que seu apostolado foi confirmado por sinais, maravilhas e milagres (2 Coríntios 12.12). De qualquer forma Satanás, como um macaco, imita as obras de Deus nas trevas, mas quando os olhos estão abertos e a luz do sabedoria espiritual brilha, os milagres são suficientemente poderosos para a comprovação da presença de Deus, como Nicodemos o declara aqui.
“A isto, respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.” (João 3.3)
“Em verdade, em verdade te digo”. A palavra verdade (amém) é duas vezes repetida, e isto é feito com a finalidade de provocar uma atenção mais séria. Pois, quando Jesus estava prestes a falar sobre o mais importante de todos os assuntos, ele achou necessário despertar a atenção de Nicodemos, que poderia ter passado por todo esse discurso de uma forma desatenciosa ou descuidada. Tal, então, é o desígnio da dupla afirmação.
Embora esse discurso pareça ser muito forçado e quase inapropriado, todavia foi com a máxima propriedade que Cristo abriu seu discurso desta maneira. Porque, assim como é inútil semear em um campo que não tenha sido preparado pelo trabalho do lavrador, de igual modo é sem propósito espalhar a doutrina do Evangelho, se a mente não tiver sido previamente subjugada e devidamente preparada para a docilidade e obediência. Cristo viu que a mente de Nicodemos estava cheia de muitos espinhos, sufocada por muitas ervas daninhas, de modo que não havia praticamente nenhum espaço para a doutrina espiritual.
Esta exortação, portanto, se assemelhava a um arado para purificá-lo, para que nada pudesse impedi-lo de ser beneficiado com a doutrina. Lembremos que isto foi falado a um indivíduo, de tal modo que o Filho de Deus se dirige a todos nós diariamente na mesma linguagem. Pois qual de nós irá dizer que é tão livre de afeições pecaminosas que não precisa de uma tal purificação? Se, portanto, queremos fazer um bom e útil progresso na escola de Cristo, aprendamos a partir deste ponto.
“A menos que um homem nasça de novo”. Ou seja, desde que és destituído daquilo que é da maior importância no reino de Deus, eu me importo pouco com o teres me chamando de Mestre; porque a primeira entrada no reino de Deus é, tornar-se um novo homem. Mas, como esta é uma notável passagem, será adequado examinar todas as partes da mesma minuciosamente.
Ver o reino de Deus é o mesmo que entrar no reino de Deus, como vamos perceber imediatamente a partir do contexto. Mas estão enganados aqueles que supõem que o reino de Deus significa Céu; porque; pelo contrário, significa a vida espiritual, que é iniciada pela fé neste mundo, e aumenta gradualmente a cada dia de acordo com o contínuo progresso da fé. Assim, o significado é que nenhum homem pode ser verdadeiramente unido à Igreja, de modo a ser contado entre os filhos de Deus, até que ele tenha sido previamente renovado. Esta expressão mostra brevemente o que é o início do cristianismo, e ao mesmo tempo nos ensina que nascemos exilados e totalmente alienados do reino de Deus, e que há um perpétuo estado de variação entre Deus e nós, até que ele nos faz completamente diferentes pelo nosso novo nascimento; porque a declaração é geral, e abrange toda a raça humana. Se Cristo tivesse dito a uma pessoa, ou para alguns indivíduos, que não poderiam entrar no céu, a menos que tivessem sido previamente nascidos de novo, podemos supor que se trataria apenas de certos indivíduos que foram designados, mas ele fala de todos, sem exceção; porque a linguagem é ilimitada, e é da mesma importância de termos universais, como estes: Quem não nascer de novo não pode entrar no reino de Deus.
Pela frase nascer de novo não se expressa a correção de uma parte, senão a renovação de toda a natureza. Daí segue-se que nada há em nós que não seja pecaminoso; pois, se a reforma é necessária ao todo e em cada parte, a corrupção deve ter sido espalhada por toda parte. Sobre este ponto em breve teremos ocasião de falar mais detalhadamente. Erasmo, adotando a opinião de Cirilo, tem indevidamente traduzido o advérbio anothen, como “do alto”, e torna a frase assim: se alguém não nascer do alto. A palavra grega, é ambígua; mas sabemos que Cristo conversou com Nicodemos na língua hebraica. Não teria, então, havido espaço para a ambiguidade que ocasionou o erro de Nicodemos e levou-o a escrúpulos infantis sobre um segundo nascimento da carne. Ele, portanto, entendeu que Cristo teria dito nada mais do que, que um homem deve nascer de novo, antes que ele seja admitido no reino de Deus. Ou seja, pela resposta que dera, com certeza ele ouviu Cristo dizer nascer de novo, e não nascer do alto.
“Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?” (João 3.4)
“Como pode um homem nascer, sendo velho?” Embora a forma de expressão que Cristo empregou não estivesse contida na Lei e nos profetas, ainda assim, como a renovação é frequentemente mencionada nas Escrituras, e é um dos primeiros princípios da fé, torna-se evidente quão imperfeitamente hábeis eram os Escribas naquela época na leitura das Escrituras. Isto certamente não se deu apenas com Nicodemos, que fosse culpado por não saber o que signficava a graça da regeneração; mas com quase todos que dedicavam a sua atenção às sutilezas inúteis, e o que era de maior importância na doutrina da piedade era desconsiderado. O papado exibe para nós, nos dias atuais, uma instância do mesmo tipo em seus teólogos. Por enquanto eles gastam toda a sua vida com especulações profundas, como a tudo o que se refere estritamente à adoração a Deus, à esperança confiante de nossa salvação, ou aos exercícios da religião, eles não sabem mais sobre estes assuntos do que um sapateiro ou um vaqueiro sabe sobre o curso das estrelas; e, ainda mais, tendo prazer em mistérios estranhos, eles desprezam abertamente a verdadeira doutrina da Escritura como indigna da posição elevada, que pertence a eles como mestres. Não precisamos nos surpreender, portanto, em encontrar Nicodemos tropeçando em uma palha; pois é uma justa vingança de Deus, que os que se julgam os mais elevados e mais excelentes professores, e em cuja estima a comum simplicidade da doutrina é vil e desprezível, fiquem maravilhados com pequenos assuntos.
“Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus.” (João 3.5)
“A menos que um homem nasça da água”. Esta passagem tem sido explicada de várias maneiras. Alguns têm pensado que as duas partes da regeneração estão apontadas claramente, e que pela palavra água é indicada a renúncia ao velho homem, enquanto pelo Espírito compreende a nova vida. Outros pensam que há um contraste implícito, como se Cristo contrastasse água e Espírito, que são puros elementos, com a natureza terrena e bruta do homem. Assim, eles veem a linguagem como alegórica, e supõem que Cristo ensinou que devemos deixar de lado a massa da pesada carne, e tornar-nos como a água e o ar, que podem se mover livremente. Mas ambas as opiniões me parecem estar em contradição com o significado de Cristo.
Crisóstomo, com quem a maior parte dos expositores concordam, faz com que a palavra água se refira ao batismo. O significado seria então, que pelo batismo entramos no reino de Deus, porque no batismo somos regenerados pelo Espírito de Deus. Daí surgiu a crença da necessidade absoluta do batismo, a fim de se ter a esperança da vida eterna. Mas, ainda que nós fôssemos admitir que Cristo fala aqui do batismo, ainda que não devemos pressionar suas palavras tão fortemente a ponto de imaginar que ele confina a salvação ao sinal externo; mas, pelo contrário, ele conecta a água com o Espírito, porque por esse símbolo visível ele atesta e sela aquela novidade de vida que só Deus produz em nós pelo seu Espírito. É verdade que, por negligenciar o batismo, somos excluídos da salvação; e neste sentido, reconheço que é necessário; mas é absurdo falar da esperança de salvação como confinada ao sinal. Até onde nos leve o que se refere esta passagem, eu não posso ser levado a crer que Cristo fala do batismo; porque isso teria sido inapropriado.
Devemos sempre ter em mente o propósito de Cristo, o qual já temos explicado; ou seja, que tinha a intenção de exortar Nicodemos à novidade de vida, porque ele não seria capaz de receber o Evangelho, até que começasse a ser um novo homem. É, portanto, uma simples declaração, que devemos nascer de novo, a fim de que possamos ser filhos de Deus e que o Espírito Santo é o autor deste segundo nascimento. Porque enquanto Nicodemos estava sonhando com a regeneração (palingenesia) ou transmigração ensinada por Pitágoras, que imaginou que as almas, depois da morte de seus corpos, passam para outros corpos, Cristo, a fim de curá-lo desse erro, acrescentou, à guisa de explicação, que não é de uma forma natural que os homens nascem uma segunda vez, e que não é necessário que sejam revestidos de um novo corpo, mas que são nascidos quando são renovados na mente e no coração pela graça do Espírito.
Assim, ele empregou as palavras Espírito e água para significar a mesma coisa, e isso não deve ser considerado como uma interpretação severa ou forçada; pois é uma forma frequente e comum de se falar na Escritura, quando o Espírito é mencionado, adicionar a palavra água ou fogo, expressando seu poder. Às vezes, encontrar-se com a declaração, que é Cristo que batiza com o Espírito Santo e com fogo (Mateus 3:11; Lucas 3:16), onde o fogo não significa nada diferente do Espírito, mas apenas mostra o que é a sua eficácia em nós. Saber porque a palavra água é colocada em primeiro lugar, é de pouca importância; ou melhor, este modo de falar flui mais naturalmente do que o outro, porque a metáfora é seguida por uma declaração simples e direta, como se Cristo tivesse dito que o homem não é um filho de Deus, até que ele tenha sido renovado pela água, e que esta água é o Espírito que nos purifica de novo e que, por espalhar sua energia sobre nós, dá-nos o vigor da vida celestial, embora por natureza, sejamos totalmente secos. E mais apropriadamente o faz Cristo, a fim de reprovar Nicodemos por sua ignorância, empregando uma forma de expressão que é comum na Escritura; porque Nicodemos deveria pelo menos ter reconhecido, que o que Cristo tinha dito foi extraído da doutrina comum dos Profetas.
Pela água, portanto, significa nada mais do que a purificação interior e fortalecimento, que é produzido pelo Espírito Santo.
“O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito.” (João 3.6)
“O que é nascido da carne”. Pelo raciocínio de contrários, Cristo argumenta que o reino de Deus está fechado para nós, a menos que uma entrada seja aberta para nós por um novo nascimento. Porque ele dá como garantido, que não podemos entrar no reino de Deus se não formos espirituais. Mas nada trazemos desde o ventre materno, senão uma natureza carnal. Segue-se portanto, que estamos naturalmente banidos do reino de Deus, e, tendo sido privados da vida celestial, permanecemos sob o jugo da morte espiritual. Além disso, quando Cristo argumenta aqui, que os homens devem nascer de novo, porque eles são apenas carne, ele, sem dúvida, abrange toda a humanidade sob o termo carne. Por carne, por conseguinte, entende-se neste lugar, não o corpo, mas a alma também, e, consequentemente, todas as partes da mesma.
Quando alguns teólogos restringem a palavra carne à parte que chamam de sensual, eles fazem isso em absoluta ignorância do seu significado; porque Cristo teria usado, neste caso, um argumento inconclusivo, que precisamos de um segundo nascimento, porque uma parte de nós é corrompida. Mas, se a carne é contrastada com o Espírito, como uma coisa corrupta é contrastada com uma que é incorruptível, uma coisa torta com uma que é reta, uma coisa poluída com uma que é sagrada, uma contaminada com uma que é pura, podemos facilmente concluir que toda a natureza do homem é condenada por um única palavra. Cristo, portanto, declara que o nosso entendimento e razão estão corrompidos, porque são carnais, e que todos os afetos do coração são maus e perversos, porque eles também são carnais.
Aqui surge uma questão; pois é certo que nesta natureza degenerada algum resquício dos dons de Deus ainda permanece; e, portanto, segue-se que não estamos em todos os aspectos corrompidos. A resposta é fácil. Os dons que Deus deixou para nós, desde a queda, se eles são avaliados em si mesmos, são, de fato dignos de louvor; mas, como o contágio da maldade está espalhado por todas as partes, nada será encontrado em nós que seja puro e livre de toda contaminação. Que possuímos naturalmente algum conhecimento de Deus, que alguma distinção entre o bem e o mal está gravada em nossa consciência, que nossas faculdades são suficientes para a manutenção da vida presente, que – em suma – somos em tantos aspectos superiores aos animais irracionais, que isto é excelente em si mesmo, na medida em que procede de Deus; mas em todos nós estas coisas estão completamente poluídas, da mesma maneira como o vinho que foi totalmente infectado e corrompido pelo gosto ofensivo do recipiente perde a agradabilidade do seu bom sabor, e adquire um sabor amargo e ruim. Porque tal conhecimento de Deus como agora permanece nos homens nada mais é do que uma fonte terrível de idolatria e de todas as superstições; o julgamento exercido para escolher e distinguir coisas está parcialmente cego e insensato, em parte imperfeito e confuso; todas as nossas faculdades fluem para a vaidade e ninharias; e a própria vontade, com impetuosidade furiosa, corre freneticamente para o que é mau.
Assim, em toda a nossa natureza não permanece uma gota de pura retidão. Por isso, é evidente que deve ser formada pelo segundo nascimento, para que possamos ser equipados para o reino de Deus; e o significado das palavras de Cristo é que, como um homem nasce apenas carnal do ventre de sua mãe; ele deve ser formado de novo pelo Espírito, para que possa começar a ser espiritual.
A palavra Espírito é usada aqui em dois sentidos, a saber, por graça, e o efeito da graça. Porque em primeiro lugar, Cristo nos informa que o Espírito de Deus é o único autor de uma natureza pura e reta, depois, ele afirma, que somos espirituais, porque temos sido renovados pelo seu poder.
“7 Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo.
8 O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.”
“Não te admires”. Esta passagem tem sido torcida por comentaristas de várias maneiras. Alguns pensam que Cristo reprova a ignorância de Nicodemos e outras pessoas da mesma classe, dizem que não é surpreendente, se eles não compreendem esse mistério celeste da regeneração, uma vez que, mesmo na ordem da natureza não percebemos a razão das coisas que caem sob o conhecimento dos sentidos. Outros inventam um significado que, embora engenhoso, é muito forçado: o de que, quando o vento sopra livremente, por isso, pela regeneração do Espírito somos postos em liberdade, e, depois de ter sido libertados do jugo do pecado, ouvimos voluntariamente a Deus. Igualmente distante do significado de Cristo é a exposição dada por Agostinho, que o Espírito de Deus exerce sua energia de acordo com o seu próprio prazer. A melhor interpretação é dada por Crisóstomo e Cirilo, que dizem que a comparação é extraída do vento, e aplicada assim, à presente passagem; apesar de seu poder ser sentido, não sabemos a sua origem e causa. Quanto a mim, enquanto não difiro muito de sua opinião, eu devo me esforçar para explicar o significado de Cristo com maior clareza e certeza.
Eu mantenho por este princípio, que Cristo faz uma comparação a partir da ordem da natureza. Nicodemos reconheceu que o que ele tinha ouvido falar sobre regeneração e uma nova vida era inacreditável, porque a forma desta regeneração excedia sua capacidade. Para impedi-lo de entreter qualquer escrúpulo deste tipo, Cristo mostra que, mesmo na vida material é exibido um incrível poder de Deus, cuja razão está escondida. Porque percebemos a agitação do ar, mas não sabemos de onde vem a nós, nem para onde ele se afasta. Se nesta vida frágil e transitória Deus age de maneira tão poderosa que somos obrigados a admirar o seu poder, que loucura é tentar medir pela percepção de nossa própria mente o seu trabalho secreto na vida celestial e sobrenatural, de modo a acreditar somente naquilo que vemos? Assim, Paulo, quando se expressa em indignação contra aqueles que rejeitam a doutrina da ressurreição, na base de ser impossível que o corpo que está agora sujeito à putrefação, após ter sido reduzido a pó, deva ser revestido com uma bendita imortalidade, repreende-os pela insensatez de não considerarem que uma exibição semelhante do poder de Deus pode ser vista em um grão de trigo; porque a semente não germina até que ela morra (1 Coríntios 15:36, 37). Esta é a sabedoria surpreendente da qual Davi exclama: “Ó Senhor, quão variadas são as tuas obras! em sabedoria fizeste todas elas,” (Salmos 104.24).
São, portanto, excessivamente insensatos aqueles que tendo sido advertidos pela ordem comum da natureza, não sobem mais alto, de modo a reconhecer que a mão de Deus é muito mais poderosa no reino espiritual de Cristo. Quando Cristo diz a Nicodemos que ele não deveria se maravilhar, nós não devemos entendê-lo de tal forma como se pretendesse que nós desprezemos uma obra de Deus, que é tão ilustre, e que é digna da maior admiração; mas significa que nós não devemos nos maravilhar com aquele tipo de admiração que dificulta a nossa fé. Porque muitos rejeitam como sendo fábula o que eles pensam ser muito elevado e difícil. Em uma palavra, não duvidemos que pelo Espírito de Deus, somos formados de novo e feitos novos homens, embora sua maneira de fazer isso seja ocultada a nós.
“8 O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.
9 Então, lhe perguntou Nicodemos: Como pode suceder isto? Acudiu Jesus:
10 Tu és mestre em Israel e não compreendes estas coisas?”
8. “O vento sopra onde quer”. Não que, a rigor, há vontade no vento, mas porque a agitação é livre, incerta e variável; porque o ar é transportado, por vezes, numa direção e, por vezes, em outra. Como isso se aplica ao caso em mão; porque se fluísse num movimento uniforme, como a água, seria menos milagroso.
“Assim é todo aquele que é nascido do Espírito”. Cristo afirma que o movimento e operação do Espírito de Deus não é menos perceptível na renovação do homem do que no movimento do ar nesta vida terrestre e exterior, mas que a forma disto é oculta; e que, portanto, somos ingratos e maliciosos, se não adoramos o poder inconcebível de Deus na vida celeste, da qual vemos tão impactante exposição neste mundo, e se nós atribuímos a ele menos em restaurar a salvação de nossa alma do que na defesa da estrutura corporal.
A aplicação será um pouco mais evidente, se você tomar a sentença desta maneira: Tal é o poder e a eficácia do Espírito Santo no homem renovado.
9. “Como pode ser isso?” Nós vemos o que é o principal obstáculo no caminho de Nicodemos. Cada coisa que ele ouve parece absurda, porque não entende a maneira das mesmas; de modo que não há maior obstáculo para nós do que nosso próprio orgulho; isto é, sempre desejamos ser sábios além do que é apropriado e, portanto, rejeitamos com orgulho diabólico cada coisa que não é explicada pela nossa razão; como se fosse adequado limitar o poder infinito de Deus pela nossa pobre capacidade. Nos é permitido, de fato, em certa medida, que investiguemos a forma e a razão das obras de Deus, desde que o façamos com sobriedade e reverência; mas Nicodemos rejeita como uma fábula, com base na qual, ele não acreditou que fosse possível. Sobre este assunto trataremos mais detalhadamente no âmbito do sexto capítulo.
10. “Tu és mestre em Israel”. Como Cristo vê que ele está gastando seu tempo sem propósito no ensino de homem tão orgulhoso, ele começa a repreendê-lo. E, certamente, essas pessoas nunca farão qualquer progresso, até que a confiança ímpia, com a qual se ensoberbecem, seja removida. Cristo censura a sua ignorância. Ele pensava, que não admitir uma coisa como não possível seria considerado uma prova de gravidade e inteligência. Mas ainda Nicodemos, com toda a sua magistral altivez, se expõe ao ridículo por sua mais do que infantil hesitação sobre os primeiros princípios da religião. Essa hesitação, certamente, é vergonhosa. Por que qual é a religião que temos… que conhecimento de Deus, que governa o bem viver… que esperança temos da vida eterna, se não crermos que o homem é renovado pelo Espírito de Deus? Há uma ênfase, por conseguinte, na palavra “estas coisas”; porque desde que a Escritura repete com frequência esta parte da doutrina, não deveria ser desconhecido até mesmo para a mais baixa classe de iniciantes. É absolutamente insuportável que qualquer homem seja ignorante e inábil quando afirma ser um professor na Igreja de Deus.
Texto de João Calvino, traduzido e adaptado por Silvio Dutra.