“O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida.” (João 6.63)
“É o Espírito que vivifica”. Por estas palavras Cristo mostra a razão pela qual os judeus não se beneficiaram com a sua doutrina é que, sendo espiritual e vivificante, ela não encontrou ouvidos bem preparados. Mas como esta passagem tem sido variadamente exposta, será importante primeiro determinar o sentido natural das palavras; a partir do que será fácil perceber a intenção de Cristo. Quando ele afirma que a carne para nada aproveita, Crisóstomo indevidamente, na minha opinião, refere-se aos judeus, que eram carnais. Eu prontamente reconheço que em mistérios celestiais todo o poder da mente humana é totalmente inútil; mas as palavras de Cristo não têm esse significado, senão serão violentamente torcidas. Igualmente forçada seria essa opinião, caso aplicada à cláusula pertinente; ou seja, é a iluminação do Espírito que vivifica.
(Todo o comentário deve ser entendido à luz do fato que Jesus estava discursando a pessoas que haviam se escandalizado com o fato dele ter afirmado, nos versículos anteriores, que era necessário comer da Sua carne para que se tivesse a vida eterna.
Eles pensavam que deveriam comer literalmente a carne do Seu corpo, e assim, ele demonstra que não era a isto que estava se referindo, senão à nossa participação da sua vida espiritual, por nos alimentarmos espiritualmente dele e do seu ensino – nota do tradutor).
Agostinho pensa que devemos aplicar somente uma palavra, ou por si só, como se tivesse sido dito, “A carne somente, e por si só, não aproveita”, porque ela deve ser acompanhada pelo Espírito. Este significado concorda bem com o escopo do discurso, pois Cristo refere-se simplesmente ao modo de alimentação.
Ele não exclui portanto, todos os tipos de utilidade, como se nada pudesse ser obtido a partir de sua carne; mas ele declara que, se ela for separada do espírito, então será inútil. Porque de onde tem a carne poder para vivificar, senão porque isto é espiritual? Assim, quem quer que confine toda a sua atenção à natureza terrena da carne, vai encontrar nela nada além de que já está morta; mas aqueles que levantarem seus olhos para o poder do Espírito Santo, que é difundido sobre a carne, irão aprender do efeito real e da experiência da fé, que não é sem razão que é chamada de vivificação.
“As palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida”.
Esta é uma alusão à declaração anterior, porque ele agora emprega a palavra espírito em um sentido diferente. Mas como tinha falado do poder secreto do Espírito, ele elegantemente aplica isto à sua doutrina, porque ela é espiritual; porque a palavra espírito deve ser explicada como significando espiritual. Ora, a Palavra é chamada espiritual, porque ela nos chama para cima para buscar a Cristo em sua glória celestial, por meio da orientação do Espírito, pela fé, não por nossa percepção carnal; pois sabemos que nada de tudo o que foi dito, pode ser compreendido, senão pela fé. E é também digno de observação, que ele conecta a vida com o Espírito. Ele chama sua palavra de vida, a partir do seu efeito, como se ele a tivesse chamado de vivificante; mas mostra que ela não será vivificante para ninguém, senão apenas para aqueles que a recebem espiritualmente, porque outros, por ela, serão tragados pela morte. Para os piedosos, esta recomendação do Evangelho é a mais deleitável, porque eles estão certos que é designada para a sua salvação eterna; mas ao mesmo tempo, eles são lembrados que devem se esforçar para provar que eles são autênticos discípulos de Cristo.
“E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido.” (João 6.65)
(Nota do tradutor: Que majestade, honra, poder, domínio e glória teria Deus Pai e Jesus Cristo se tivessem que regatear com os homens acerca da salvação deles, como que lhes implorando o favor de se converterem? Reis terrenos fariam isto com malfeitores? Quanto mais jamais o fará a Majestade santa e perfeitamente justa do Céu. Por isso se diz que somos bem-aventurados se nos humilharmos diante do Senhor, se chorarmos por nossos pecados e lhe estendermos nossas mãos implorando que seja misericordioso para conosco, pecadores que somos. Sabendo que se Deus não inclinar o seu cetro para nos perdoar, estamos irremediável e eternamente perdidos.)
65. “ Por isso eu vos disse”. Mais uma vez Jesus afirma que a fé é um dom incomum e notável do Espírito de Deus, de modo que não devemos ficar atônitos com o fato do Evangelho não ser recebido em todos os lugares e por todos. Porque, sendo fracos para virar a nosso favor o curso dos acontecimentos, pensamos da forma mais mesquinha do Evangelho, porque o mundo inteiro não concorda com ele. Surge o pensamento em nossa mente, como é possível que a maior parte dos homens deva recusar deliberadamente a sua salvação? Cristo, portanto, atribui a razão pela qual há tão poucos crentes, ou seja, porque nenhum homem, seja qual for a sua inteligência, pode chegar à fé por sua própria sagacidade; pois todos são cegos, até que sejam iluminados pelo Espírito de Deus, e, portanto, somente deste modo eles podem participar da grande bênção que o Pai designou para que sejamos participantes da mesma.
Se esta graça fosse concedida a todos, sem exceção, teria sido inoportuno e inadequado ter mencionado isto nesta passagem; pois devemos entender que era o desígnio de Cristo mostrar que não muitos acreditam no Evangelho, porque a fé procede apenas da secreta revelação do Espírito.
“Se, pelo Pai, não lhe for concedido”. Ele agora usa a palavra “conceder” no lugar que tinha usado no versículo anterior, “atrair”; pelo que ele diz que não há outra razão pela qual Deus nos atraia, senão por causa da livre graça com a qual ele nos ama; porque o que obtemos pelo dom e graça de Deus, nenhum homem adquire para si mesmo por sua própria operosidade.
Texto de João Calvino, traduzido e adaptado por Silvio Dutra.