“Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados,”
porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo.” (Colossenses 2.16,17)
“segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem.
Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade.” (Colossenses 2.22,23)
“Ninguém, pois, vos julgue”. O que ele havia dito anteriormente sobre a circuncisão, ele agora estende à diferença de alimentos e dias. Porque a circuncisão foi o primeiro contato com a observância da lei, e outras coisas se seguiram depois. Julgar significa aqui, considerar alguém culpado de um crime, ou impor um escrúpulo de consciência, de modo que não sejamos mais livres. Ele diz, portanto, que não está no poder dos homens nos fazer sujeitos à observância dos ritos que Cristo tem abolido pela sua morte, e nos isenta do seu jugo, para que não permitamos que sejamos restringidos pelas leis que eles impuseram. Ele tacitamente, no entanto, coloca Cristo em contraste com toda a humanidade, para que ninguém devesse se exaltar tão ousadamente assim como tentar tirar o que ele tem dado.
Em relação ao dia de festa. Alguns entendem τὸ μέρος significando participação. Crisóstomo, concordando com isso, pensa que Paulo usou o termo festa, porque eles não observaram as festas, estritamente, nem os dias de descanso, de acordo com a designação da lei. Isto, contudo, é apenas uma má interpretação. Considere se isto não pode ser entendido como separação, porque aqueles que fazem uma distinção de dias, separam, como isto sucedeu, um do outro. Tal modo de separação era adequado para os judeus, para que pudessem celebrar religiosamente os dias que foram apontados pela Lei, separando-os dos outros. Entre os cristãos, no entanto, tal divisão tem cessado.
Mas alguém dirá: “Nós ainda mantemos alguma observância de dias.” Eu respondo que não temos, por qualquer meio, que observar dias, como se houvesse qualquer sacralidade em feriados, ou como se não fosse lícito trabalhar neles , senão que o respeito é pago ao governo e à ordem – não a dias. E é isso que ele imediatamente acrescenta.
“Que são sombras das coisas futuras”. A razão pela qual ele liberta os cristãos da observância dos dias festivos da Lei, é que eles eram sombras numa época em que Cristo ainda não havia se manifestado. Porque ele contrasta sombras com revelação e ausência com manifestação. Aqueles, portanto, que ainda aderem a essas sombras, agem como aquele que deve julgar a aparência de um homem pela sua sombra, enquanto nesse meio tempo ele o tinha pessoalmente diante de seus olhos. Porque Cristo é agora manifestado a nós, e por isso, vamos desfrutá-lo como presente. O corpo, diz ele, é de Cristo, isto é, EM Cristo. Porque a substância das coisas que as cerimônias antigamente prefiguravam agora é apresentada diante de nossos olhos em Cristo, na medida em que ele contém em si tudo o que eles aguardavam para o futuro.
Assim, o homem que retorna às cerimônias do VT, ou enterra a manifestação de Cristo, ou furta Cristo de sua excelência, e o torna dessa maneira, vão. Assim, se qualquer um dos mortais assumir para si mesmo neste assunto o cargo de juiz, não vamos nos submeter a ele, na medida em que Cristo, o único juiz competente, nos liberta. Pois, quando ele diz: Ninguém vos julgue, ele não aborda os falsos apóstolos, mas proíbe os Colossenses de ceder seu pescoço a exigências descabidas. Abster-se, é verdade, de carne de porco, é em si inofensivo, mas a ligação de fazê-lo com o fim de se salvar ou se santificar, é perniciosa, porque torna nula a graça de Cristo.
Se qualquer um perguntar: “Que ponto de vista, então, é para ser tomado de nossos sacramentos (ceia e batismo)? Será que eles não representam também Cristo a nós como ausente?” Eu respondo que eles são muito diferentes das antigas cerimônias. Porque, assim como os pintores não fazem no primeiro projeto uma imagem em cores vivas, e (εἰκονικῶς) expressivamente, mas em primeira instância, desenham linhas rudes e obscuras com carvão, então a representação de Cristo sob a lei não era polida, e era, como se fosse, um primeiro esboço, mas nos sacramentos isto é visto retirado da vida.
Paulo, no entanto, tinha algo mais em vista, pois ele contrasta o aspecto nu da sombra com a solidez do corpo, e lhes adverte, que é próprio de um louco tomar posse de sombras vazias, quando está em seu poder lidar com a substância sólida. Ainda, enquanto os nossos sacramentos representam o testemunho que ele foi uma vez manifestado, e agora eles também o apresentam a nós para ser desfrutado. Eles não são, portanto, sombras nuas, mas ao contrário, símbolos da presença de Cristo, porque eles contêm o Sim e o Amém de todas as promessas de Deus (2 Coríntios 1.20), que foi uma vez manifestado a nós em Cristo.
“Todas estas coisas tendem à corrupção”. Ele deixa de lado, por um argumento duplo, os atos aos quais ele fez menção – porque eles fazem a religião consistir em coisas externas e frágeis, que não têm ligação com o reino espiritual de Deus; e em segundo lugar, porque são de homens, não de Deus. Ele combate o primeiro argumento, também, em Romanos 14.17, quando ele diz:
“O reino de Deus não consiste em comida e bebida;”.
Da mesma forma, em 1 Coríntios. 6.13:
“O alimento é para o estômago e o estômago para os alimentos: Deus destruirá a ambos.”
Cristo também diz:
“O que quer que entra pela boca não contamina o homem, porque desce para o ventre, e é lançado fora.” (Mateus 15.11)
A suma é esta – que o culto a Deus, a verdadeira piedade e a santidade dos cristãos, não consistem em bebida e comida, e roupas, que são coisas que são transitórias e passíveis de corrupção, e perecem por abuso. Porque o abuso é propriamente aplicável a essas coisas que são corrompidas pelo uso das mesmas. Daí, decretos não têm nenhum valor em referência a essas coisas que tendem a excitar escrúpulos de consciência.
A segunda refutação é adicionada – que elas se originaram com os homens, e não têm a Deus como seu autor; e por este trovão Paulo prostra e engole todas as tradições dos homens. Por que? Este é o raciocínio de Paulo: “Aqueles que trazem consciências em cativeiro injuriam a Cristo, e tornam sem efeito a sua morte. Porque tudo o que é da invenção humana não se liga à consciência.”
“O que tem de fato uma aparência”. Aqui temos a expectativa de uma objeção, em que, enquanto ele reconhece nos seus adversários o que eles alegam, ele ao mesmo tempo reconhece isto como sendo totalmente inútil. Pois é como se ele tivesse dito, que ele não considera terem uma demonstração de sabedoria. Mas a aparência é colocada em contraste com a realidade, pois é uma aparência, como eles geralmente falam, que engana por semelhança.
Observe-se, porém, de que cores esta aparência é composta, de acordo com Paulo. Ele faz menção a três – o culto de adoração auto-inventado, humildade e disciplina do corpo. A superstição entre os gregos recebe o nome de ἐθελοβρησκεία – o termo que Paulo faz uso aqui. Ele tem, no entanto, em vista, a etimologia do termo, porque ἐθελοβρησκεία literalmente denota um serviço voluntário, que os homens escolhem para si mesmos, à sua escolha, sem a autoridade de Deus. As tradições humanas, portanto, são agradáveis para nós por causa disso, porque elas estão de acordo com o nosso entendimento, porque qualquer um encontrará em seu próprio cérebro os primeiros esboços das mesmas. Este é o primeiro pretexto.
O segundo é a humildade, na medida em que a obediência a Deus e aos homens é almejada, assim, os homens não recusam até mesmo encargos excessivos. E, na maior parte as tradições deste tipo são de tal natureza que parecem ser exercícios admiráveis de humildade.
Elas seduzem, também, por meio de um terceiro pretexto, na medida em que parecem ser de grande proveito para a mortificação da carne, enquanto não há nenhuma moderação no uso do corpo. Paulo, no entanto, reprova esses disfarces, porque aquilo que está em alta estima entre os homens muitas vezes é uma abominação aos olhos de Deus (Lucas 16.15).
Ainda, isto é uma obediência traiçoeira, e uma humildade perversa e sacrílega, que transfere para os homens a autoridade de Deus; e a negligência do corpo não é de tão grande importância, a ponto de ser digno de ser exposto à admiração assim como ao culto de Deus.
Alguém, no entanto, se sentirá surpreso, que Paulo não tenha mais dores em retirar essas máscaras. Respondo que ele em bons fundamentos, repousa satisfeito com a simples exibição do termo. Porque os princípios que tomara em oposição a isso são incontestáveis – de que o corpo está em Cristo, e que, consequentemente, aqueles nada fazem, senão se impor sobre os homens infelizes, colocando diante deles sombras. Em segundo lugar, o reino espiritual de Cristo não é de nenhuma forma tomado de elementos frágeis e corruptíveis. Em terceiro lugar, pela morte de Cristo tais observâncias foram extintas, para que não tenhamos qualquer conexão com elas; e, em quarto lugar, Deus é o nosso único Legislador (Isaías 33.22).
Ainda, ele reconheceu ser suficiente admoestar os Colossenses, para não serem enganados por serem colocados diante de coisas vazias. Não houve necessidade de maior repreensão. Porque isso deve ser um ponto resolvido entre todos os piedosos, que o culto a Deus não deve ser medido de acordo com os nossos pontos de vista; e que, portanto, qualquer tipo de serviço não é lícito, simplesmente pelo fato de que seja agradável para nós. Isso, também, deveria ser um ponto comumente recebido – que devemos a Deus, tal humildade assim como nos submetermos simplesmente aos seus mandamentos, que não devemos nos dirigir, agindo e pensando conforme a nossa própria compreensão (Provérbios 3.5) – e que o limite de humildade para com os homens é este – que cada um se submeta aos outros em amor. Agora, quando eles afirmam que a lascívia da carne é reprimida por abstinência de alimentos, a resposta é fácil – que não devemos, portanto, abster-nos de qualquer alimento específico como sendo imundo, mas devemos comer com moderação, para que possamos sóbria e moderadamente fazer uso dos dons de Deus, e para que não venhamos, impedidos por muita comida e bebida, a esquecer as coisas que são de Deus.
Texto de João Calvino, traduzido, reduzido e adaptado por Silvio Dutra.