“Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores.” (João 4.23)
“Mas a hora vem”. Agora segue a primeira frase, a revogação do culto, ou cerimônias, prescritos pela Lei de Moisés. Quando Jesus diz que a hora vem, ou vai chegar, ele mostra que a ordem estabelecida por Moisés não será perpétua. Quando ele diz à mulher samaritana que a hora já é chegada, ele põe fim às cerimônias, e declara que o tempo de reforma, de que fala o Apóstolo (Hebreus 9.10), tem sido, assim, cumprido. No entanto, ele aprova o Templo, o Sacerdócio, e todas cerimônias ligadas a eles, no que concerne ao tempo passado. Ainda, como para mostrar que Deus não escolhe ser adorado tanto em Jerusalém ou no monte Gerizim, ele apresenta um princípio superior, que a verdadeira adoração a Ele consiste no espírito; para que, daí se segue, Ele possa ser corretamente adorado em todos os lugares.
Mas a primeira pergunta que se apresenta aqui é: por que, e em que sentido, é a adoração de Deus chamada espiritual? Para entender isso, nós devemos atender ao contraste entre o espírito e os emblemas exteriores, como entre as sombras e a verdade. Da adoração a Deus é dito que consiste no espírito, porque ela não é nada mais do que aquela fé interior do coração que produz oração, e, depois, a pureza de consciência e auto-negação, para que possamos ser dedicados a obedecer a Deus como sacrifícios vivos e santos.
Daí surge outra pergunta, os patriarcas não adoraram a Deus espiritualmente sob a Lei? Eu respondo, como Deus é sempre o mesmo, ele não aprovou desde o início do mundo qualquer outro culto do que aquele que é espiritual, e que está de acordo com sua própria natureza. Isto é abundantemente atestado pelo próprio Moisés, que declara em muitas passagens que a Lei não tem outro objetivo senão que o povo se apegue a Deus com fé e uma consciência pura (Dt 10.12,16 etc).
Mas ainda mais é claramente declarado pelos profetas quando eles atacam com severidade a hipocrisia do povo, porque eles pensavam que tinham satisfeito a Deus, quando acabaram de apresentar os sacrifícios e fizeram uma devoção exterior. É desnecessário citar aqui muitas provas que devem ser encontradas em toda parte, mas as passagens mais marcantes são as seguintes: Salmo 50; Isaías 1, 58, 66; Miquéias 5; Amós 7. Mas, enquanto a adoração de Deus, sob a Lei era espiritual, ela estava envolvida com tantas cerimônias exteriores, que se assemelhava a algo carnal e terreno. Por esta razão Paulo chama as cerimônias de rudimentos fracos e pobres (Gálatas 4. 9).
Da mesma maneira, o autor da Epístola aos Hebreus diz que o antigo santuário, com seus utensílios, era terreno (Hebreus 9.1). Assim, podemos dizer com justiça que a adoração da Lei era espiritual em sua substância, mas, no que diz respeito à sua forma, foi tanto terrena e carnal; para o conjunto daquela dispensação, que em relação à realidade com a qual está agora plenamente manifestada, ela consistiu em sombras.
Vamos ver agora o que os judeus tinham em comum conosco, e o que diz respeito a eles diferirem de nós. Em todos os tempos Deus quis ser adorado por fé, oração, agradecimento, pureza de coração, e inocência da vida; e em nenhum momento ele se deleitou com todos os outros sacrifícios. Mas sob a Lei havia várias adições, porque o espírito e em verdade estavam escondidos sob tipos e sombras, que, agora que o véu do templo foi rasgado (Mateus 27.51), nada é escondido ou obscuro. De fato, há entre nós, nos dias de hoje, alguns exercícios de piedade exterior, os quais se tornam necessários em razão da nossa fraqueza, mas tal é a moderação e sobriedade deles (ceia e batismo), que eles não obscurecem a pura verdade de Cristo. Em suma, o que foi exibido para os patriarcas sob figuras e sombras agora é exibido abertamente.
Não se pode negar que Cristo estabelece aqui uma clara distinção entre nós e os judeus. Quaisquer que sejam os subterfúgios que são usados por aqueles que insistem em manter ritos e cerimoniais no culto de adoração, estão usando coisas que foram abolidas pela vinda de Cristo. Assim todos os que oprimem a Igreja com uma multiplicidade excessiva de cerimônias, fazem o que está em seu poder para privar a Igreja da presença de Cristo. Eu não paro para examinar as desculpas vãs que eles pleiteiam, afirmando que muitas pessoas nos dias de hoje têm ainda necessidade desses auxílios como os judeus tinham em tempos antigos. É sempre o nosso dever investigar por que ordem o Senhor quis que a sua Igreja fosse governada, pois somente Ele sabe completamente o que é conveniente para nós. Agora é certo que nada está mais em desacordo com a ordem designada por Deus do que a grosseira pompa carnal que prevalece em várias instituições religiosas ditas cristãs. O espírito era de fato ocultado pelas sombras da Lei, essas máscaras o desfiguram completamente; e, portanto, não devemos ceder a tais corrupções vergonhosas.
Quaisquer que sejam os argumentos que possam ser empregados pela engenhosidade de homens, ou por aqueles que não têm coragem suficiente para corrigir vícios – certamente não podem ser tolerados para que a regra prevista por Cristo não seja violada.
“Os verdadeiros adoradores”. Cristo parece reprovar indiretamente a obstinação de muitos, a qual mais tarde foi exibida; pois sabemos quão obstinados e contenciosos foram os judeus, quando o Evangelho foi revelado, na defesa das cerimônias a que estavam acostumados. Mas esta declaração tem um significado ainda mais amplo; porque, sabendo que o mundo nunca mais seria inteiramente livre de superstições, Jesus separa assim os fiéis devotos e retos daqueles que eram falsos e hipócritas. Armados com este testemunho, não vamos hesitar em condenar os que violam o culto verdadeiro, e sejamos corajosos para desprezar suas censuras. Por que razão deveríamos temer, quando sabemos que Deus fica contente com esta adoração pura e simples, que é desprezada por aqueles que não o adoram da forma devida?
O que é adorar a Deus em espírito e verdade aparece claramente a partir do que já foi dito. É deixar de lado as complicações das antigas cerimônias, e manter apenas o que é espiritual no culto de Deus; porque a verdade da adoração de Deus consiste no espírito, e cerimônias são apenas uma espécie de apêndice. E aqui, novamente, deve ser observado, que a verdade não é comparada com a falsidade, mas com a prática da Palavra de Deus, que é a verdade (João 17.17) e pela qual somos santificados pela operação do Espírito Santo.
Texto de João Calvino, traduzido e adaptado por Silvio Dutra.