Tradução e adaptação elaboradas pelo Pr Silvio Dutra, de citações extraídas do comentário de autoria de Thomas Manton, sobre o Salmo 119.36.
“Antes de ser afligido andava errado, mas agora guardo a tua palavra” (Salmo 119.67)
Neste versículo, você pode observar duas coisas:
1. O mal na prosperidade – antes de ser afligido andava errado.
2. O bem na adversidade – mas agora guardo a tua palavra. Antes andava errante, mas agora atento ao seu dever. Ou, se quiser, aqui está a necessidade das aflições e a utilidade delas.
1. A necessidade, “Antes de ser afligido andava errado”. Alguns pensam que Davi, personifica a libertinagem e a obstinação de toda a humanidade. Se assim fosse, no entanto, a pessoa em quem o exemplo é dado é notável. Se esta foi a disposição do profeta e homem de Deus, e se ele precisava desta disciplina, muito mais nós: se ele pôde dizer isto, com verdade de coração, que ele foi piorado por sua prosperidade, precisamos ser sempre zelosos conosco; e se não fosse por este flagelo, que nos aflige, esqueceríamos o nosso dever e a obediência que devemos a Deus.
2. A utilidade e benefício das aflições, “mas agora guardo a tua palavra.” Guardar a lei é uma palavra genérica. O uso da vara da disciplina de Deus é para nos levar para casa com Deus, e a aflição nos impeliu para fazer melhor uso da sua palavra: ela nos mudou da vaidade para a seriedade, do erro para a verdade, do orgulho para a modéstia. E o apóstolo nos diz que o próprio Jesus Cristo aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu, Heb 5.8, e aqui Davi foi feito melhor pela cruz.
Podemos observar nas palavras do texto três coisas:
1. A confissão de suas andanças, “andava errado”.
O pecado dá causa às aflições. Há aqui um reconhecimento secreto de sua culpa, que o seu pecado foi a causa do castigo que Deus trouxe sobre ele.
2. O método que Deus usou para conduzi-lo ao seu dever, “Eu fui afligido”.
A verdadeira noção e a natureza da aflição para o povo de Deus. A cruz muda a sua natureza, e não é uma punição destrutiva, mas uma ministração medicinal, e um meio de nossa cura.
3. O sucesso ou o efeito do método divino: “Eu tenho guardado a tua palavra”.
A finalidade é a obediência, ou guardar a palavra de Deus. A soma de tudo é, eu estava fora do caminho, mas a tua vara me afligiu, e me levou para a obediência novamente.
Eu poderia observar muitos pontos, mas a doutrina de todo o versículo é:
Doutrina: Que o fim da aflição que nos vem de Deus, é para reconduzir o seu povo desviado para o caminho reto.
Vou explicar este ponto por estas considerações.
1. Que o homem é de uma natureza desviada, apto para abandonar o caminho que conduz a Deus e à verdadeira felicidade. Somos todos assim por natureza: Isa 53.6 “Todos nós, como ovelhas, nos desviamos.” As ovelhas superam todas as demais criaturas, quanto a estarem sujeitas a se desviar, e se não forem cuidadas e guardadas da melhor maneira possível, são incapazes de se manterem fora do erro, e quando erram, são incapazes de voltar ao redil por si mesmas.
Por isso as ovelhas são o símbolo usado pelo Espírito Santo para representar a natureza da humanidade. Mas isto se dá melhor conosco depois de termos recebido a graça? Não; nós somos, em parte, ainda assim. O melhor de nós, se for deixado por sua própria conta, quão breve se desviará do caminho certo? em que erros tristes incorrerá? Sl 19.12: “Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são ocultas.”
Desde que recebemos a graça, todos nós temos os nossos desvios; embora os nossos corações sejam ajustados para andarem com Deus para o principal na vida cristã, mas sempre e logo estamos nos desviando da nossa obediência, transgredindo os nossos limites, e negligenciando o nosso dever. Bem que Davi tinha razão em dizer, Sl 119.176, “eu ando desgarrado como ovelha perdida: oh, procura o teu servo!”
Nós nos extraviamos, não somente por ignorância, mas por perversidade de inclinação: Jer 14.10, “Assim eles gostavam de andar errantes, e não detiveram os seus pés. “Temos corações que amam vagar; amamos mudanças, ainda que seja para pior, e assim estaremos fazendo excursões para os caminhos do pecado.
2. Este pendor para se desviar é muito aumentado e incentivado pela prosperidade, que, embora seja boa em si mesma, no entanto, por sermos tão perversos por natureza, fazemos o pior uso dela.
Que os maus se tornam piores por causa da prosperidade, é evidente: Isa 26.10, “Ainda que se mostre favor ao perverso, nem por isso aprende a justiça;”. A luz do sol em cima do monte de esterco nada produzirá, senão fedor, e o sal do mar vai tornar salgado tudo o que cair nele. Então, os homens ímpios convertem tudo ao seu modo e gosto. Nenhuma misericórdia ou juízo de Deus farão qualquer gracioso e amável trabalho sobre eles, mas, se tudo for bem com eles, tomam mais liberdade para viverem livre e profanamente.
O temor de Deus, que é o grande freio de toda maldade, é menor e praticamente fica perdido neles quando não veem qualquer mudança em seu caminhar: Sl 55.19: “porque não há neles mudança nenhuma, e não temem a Deus.” Este pequeno temor servil que eles têm, o qual poderia guardá-los de ficarem vagando, é então perdido, e quanto mais suavemente Deus tratar com eles, mais incrédulos e seguros eles ficam.
Quando eles se tornam prósperos e sem problemas, ficam mais obstinados do que nunca. Mas não é assim com o povo de Deus também? Sim, na verdade, Davi, cujo coração bateu quando ele cortou a orla do manto de Saul quando estava vagando no deserto, pôde planejar a morte de Urias, seu servo fiel, enquanto ele Davi estava confortavelmente em seu palácio.
Perdemos muita ternura de consciência, vigilância contra o pecado, muito desta diligência viva que devemos manifestar na realização da vida espiritual, quando estamos em facilidades e todas as coisas vão bem conosco. Estamos aptos a entrar na carne quando temos tantas iscas para alimentá-la; e para aprender a estar contente em Cristo quando há plena prosperidade é uma lição mais difícil do que aprender a estar contente quando se é humilhado, Fp 4.12, e, portanto, se Deus não nos corrigir, cresceremos descuidados e negligentes.
O princípio de toda a obediência é a mortificação da carne, o que naturalmente não podemos suportar. Depois que temos nos apresentado e submetido a Deus, a carne estará procurando sua presa, e se rebelando contra o espírito, até que Deus arranque suas seduções de nós. Por isso o Senhor se vê forçado a nos quebrar por diversas aflições para nos conduzir em ordem. Nós o forçamos a nos humilhar pela pobreza, ou vergonha, ou doenças, ou por meio de conflitos domésticos, ou alguma inconveniência da vida natural e animal, e tudo o que valorizamos muito.
Além disso, nossos afetos pelas coisas celestes definham quando todas as coisas sucedem conosco neste mundo de acordo com o desejo do nosso coração, e esta frieza e indolência não são facilmente removidas.
Muitos são como os filhos de Rúben e Gade, Números 32, que quando encontraram pastagens convenientes do outro lado do Jordão, estavam contentes com que fosse a sua herança, sem procurar qualquer coisa na terra prometida. Então seus desejos são estabelecidos insensivelmente aqui, e têm menos interesse no bem do mundo vindouro.
3. Quando sucede assim conosco, Deus julga conveniente enviar as aflições. Grande parte da sabedoria da providência de Deus é para ser observada;
a) Em parte na época de aflição, em que o estado e a postura da alma nos surpreendem, quando andamos errantes, quando mais precisamos disto, quando o nosso abuso da prosperidade clama em voz alta por isto; quando as ovelhas se desviam, o cão é solto para buscá-las. Deus ordena a sua providência para as nossas necessidades: 1 Pedro 1.6, “Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações,”.
Ai! muitas vezes vemos que as aflições são altamente necessárias e oportunas, tanto para evitar uma enfermidade que está crescendo em nós, ou para nos recuperar de algum curso mal no qual nos desviamos de Deus. Paulo estava em perigo de se tornar orgulhoso, e então Deus mandou um espinho na carne. Esta disciplina é muito boa e necessário antes de a doença se espalhar longe demais.
b) Grande parte da sabedoria e providência divina também são observadas, em parte, no tipo de aflição. As várias concupiscências devem ter remédios específicos. O orgulho, a inveja, a cobiça, a libertinagem, a emulação, têm todas as suas curas apropriadas.
Todos os pecados se referem a três fontes impuras: 1 João 2.16, “Porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo.” A partir dos desejos (concupiscência) da carne surgem não apenas os atos grosseiros de lascívia, fornicação, adultério, gula, embriaguez, que assolam boa parte da humanidade, e surge também um amor desordenado a prazeres, companhias vãs, e entretenimentos vãos, a complacência carnal, ou a satisfação carnal.
A concupiscência dos olhos, a avareza e a mentalidade mundana, produzem miséria, rapinas, contendas, conflitos, ou o desejo imoderado de adquirir casa sobre casa, campo sobre campo, e toda sorte de bens e confortos materiais.
Do orgulho (soberba) da vida vem a ambição, conceito elevado de nós mesmos, escárnio e desprezo dos outros, afetação por honra e reputação no mundo, a pompa, finura de trajes e inúmeras vaidades, para constranger a outros! Agora, Deus, que pode se encontrar com os seus servos quando eles estão tropeçando em qualquer tipo destas coisas referidas, envia as aflições como seus mensageiros fiéis para detê-los em sua carreira, para que a carne não possa navegar e levá-los para longe com um vendaval completo.
Contra os desejos da carne, ele manda doenças e enfermidades; contra os desejos dos olhos, a pobreza e decepções em nossas relações; contra o orgulho da vida, desgraças e vergonha, e às vezes ele faz variações na forma da dispensação destas aflições, porque sua providência guarda um teor, e cada cura será aplicada conforme o temperamento de cada pessoa, nem tudo vai funcionar da mesma forma para todos.
A sabedoria de Deus pode ser observada no tipo de aflição, e quão apropriado é este trabalho que é feito; porque Deus faz todas as coisas em número, peso e medida. Em parte pela maneira como ele vem sobre nós, por quais instrumentos e de que tipo. Quantos se fazem miseráveis por uma cruz imaginada!
E assim, quando todas as coisas estão bem com eles, suas próprias paixões se tornam um fardo para si mesmos, e quando não estão feridos em sua honra, nem sofrendo perda de imóveis, nem agredidos em sua saúde, nem suas relações cortadas e conflitadas, mas sendo cobertos com toda a felicidade temporal, parece não haver qualquer espaço ou lugar para qualquer aflição ou problema em suas vidas, e ainda assim, na plenitude de sua suficiência, Deus lhes traz um terror e um peso, ou então por seus próprios temores, ou pela falsa imaginação de alguma perda ou desgraça, Deus os torna desconfortáveis e cheios de inquietação, e eles se tornam mais problemáticos do que aqueles que estão em conflitos reais, sim, com os maiores males.
Hamã é um exemplo: ele foi um dos príncipes do reino da Pérsia, que nadava em riqueza e todos os tipos de delícias, em grau de dignidade e honra, ao lado do próprio rei, e, ainda, porque Mordecai, um judeu pobre, não lhe fez a reverência esperada, disse: “Tudo isso não me satisfaz”, Ester 5.19.
Assim, tão logo Deus envie um verme na cabeça mais justa, e uma insatisfação na propriedade mais próspera do mundo, e os homens não terão descanso dia e noite, especialmente se uma centelha da sua ira brilhar na consciência: Sl 39.11: “Quando castigas o homem com repreensões, por causa da iniqüidade, destróis nele, como traça, o que tem de precioso.”. Há um segredo que a traça come todo o seu contentamento, pois eles estão sob terror, desânimo e falta de paz: Deus lhes ensina que nada pode ser apreciado de forma satisfatória para além da sua própria bênção: “Um fogo não soprado deve consumi-los”, Jó 20.26.
c) Em parte, vemos também a sabedoria e a providência de Deus, na continuidade das aflições. Deus ordena, tirar e lançar em aflições a seu próprio prazer, e quando ele vê que elas agiram em nosso proveito.
Variedade de aflições podem atingir o melhor e mais querido dos filhos de Deus, havendo nos melhores muitas corrupções, tanto para serem descobertas e subjugadas, e muitas graças para serem provadas: 1 Pedro 1.6 “Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações,”, e Tiago 1.2, “Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações”. Um problema opera nas mãos de outro, e a sucessão deles é tão necessária quanto o primeiro golpe sofrido.
4. A aflição assim enviada tem um uso notável para nos conduzir a um senso e cuidado do nosso dever. As aflições são comparadas nas Escrituras ao fogo que purga a nossa escória: 1 Pedro 1.7. “Para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo;”. As aflições são comparadas também à poda da tesoura que corta os ramos inúteis, e faz com que os demais sejam mais frutíferos: João 15.2. Então, Heb 12.11, “Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça.”.
Portanto, não devemos ficar desanimados quando Deus usa as aflições para o nosso próprio bem.
“e estais esquecidos da exortação que, como a filhos, discorre convosco: Filho meu, não menosprezes a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe. É para disciplina que perseverais ( Deus vos trata como filhos ); pois que filho há que o pai não corrige?” (Heb 12.5-7)
Não devemos portanto suportar as aflições com falta de sabedoria, com uma mente insensata, que possa nos impedir de alcançar o propósito de Deus que se encontra embutido nelas. Qual pai ficaria contente com a rejeição por parte de seus filhos, de sua disciplina e correção?
Por que o homem se queixaria do castigo merecido do seu pecado? Sobretudo quando isto é feito pelas mãos de um Pai de amor?
O fim da correção pela aflição é o nosso arrependimento e a nossa transformação, tanto para corrigir o pecado passado, quanto para prevenir o pecado ainda por vir.
Assim, ainda que gemamos dizendo: “Senhor, dá-me outra cruz, mas não esta!”, devemos reconsiderar o dito irrefletido de nossos lábios, e aceitarmos com submissão voluntária a cruz que Deus sabe de antemão, que é a única que se ajusta para a correção da nossa condição. Trocá-la por outra não produzirá o efeito esperado por Deus em nós.
Deus não sente prazer em nos afligir, isto lhe dói em seu coração de Pai perfeitamente amoroso que é. “Ele não aflige, nem entristece os filhos dos homens, de bom grado.” (Lam 3.33).
Afinal todo este enfraquecimento do pecado e do nosso ego carnal tem em vista possibilitar o nosso fortalecimento com a graça.
Daí estar escrito: Prov 24.10: “Se te mostras fraco no dia da angústia, a tua força é pequena.”