Neste capítulo, o apóstolo Paulo continua se referindo à sua vida passada, e destaca especialmente a sua relação com os apóstolos da circuncisão, para mostrar aos Gálatas, que não estava sujeito a eles e que não havia recebido deles a sua autoridade apostólica, como certamente deveriam estar insinuando seus adversários junto à Igreja da Galácia, com o intuito de desqualificá-lo, afirmando que ele não poderia ser apóstolo de modo algum, em pé de igualdade com os que estavam em Jerusalém, porque não seguia juntamente com eles.
Paulo demonstra então, neste capítulo, que era exatamente por não seguir com eles que confirmava a autoridade que havia recebido sobre a igreja dos gentios, assim como os apóstolos de Jerusalém haviam recebido autoridade de Deus para ministrar à circuncisão.
Por conseguinte, ele afirma neste capítulo que até mesmo os apóstolos da circuncisão haviam reconhecido a sua chamada para exercer o mesmo ministério deles junto à incircuncisão, e isto Paulo comprovou revelando como usara de tal autoridade para advertir Pedro quando este havia procedido descuidadamente contra a verdade do evangelho quando estivera com ele em Antioquia da Síria.
Deste modo, ele usou este incidente com Pedro para introduzir a doutrina da justificação pela graça sem o concurso das obras da Lei, que é o grande assunto desta epístola, e que Ele passará a desenvolver nos demais capítulos.
Antes mesmo que nos entreguemos à tarefa de prosseguir no nosso estudo da epístola de Paulo aos Gálatas, é de suma importância destacarmos que todo o assunto nesta epístola tem principalmente a ver com a justificação pela graça, e não com a santificação progressiva que se segue à justificação.
Por exemplo, o assunto da santificação é fartamente explorado na epístola aos Hebreus, mas não aqui em Gálatas.
Assim todos os comentários bíblicos relativos à epístola aos Gálatas abordarão conseqüentemente a doutrina da justificação e não a da santificação.
Dizemos que é de suma importância prestar muita atenção a este detalhe, especialmente quando lemos o comentário de Lutero sobre esta epístola, para que não pensemos que as obras de justiça dos crentes não têm qualquer importância no assunto da salvação.
Como temos visto, não têm de fato na eleição que é por pura graça, e nem na justificação, e na regeneração que são também pela graça, sem o concurso das obras do crente.
Mas, quando entramos no assunto da santificação nós verificamos que estas obras são de grande importância, porque se requer total diligência dos crentes na prática da Palavra para que possam ser santificados.
Conseqüentemente, ninguém pense em desprezar a Lei de Deus quando os comentaristas de Gálatas afirmam a impotência da Lei para a salvação, quando o assunto em pauta é o da eleição, ou da justificação, ou ainda da regeneração. Porque enquanto isto permanece sendo uma grande verdade, no entanto não significa que a Lei seja desprezada ou que não seja importante para outros fins para os quais foi designada pelo próprio Deus.
Que o Senhor nos capacite a identificar a diferença, de maneira, que não venhamos, nós mesmos a formular uma doutrina que não confira com a verdade, quando no afã de afirmamos a graça do Evangelho, acabemos por repudiar a Lei, uma vez que pela fé não anulamos, mas confirmamos a Lei, conforme dizer do próprio apóstolo Paulo (Rom 3.31).
Como os judaizantes ensinavam a necessidade da perfeita observância da Lei para a justificação, e consequentemente para a salvação, então Paulo vai revelar a falsidade deste ensino, porque no Evangelho a justiça de Deus se manifesta sem o concurso das obras da Lei (Rom 3.28), de maneira que em Sua infinita sabedoria, Deus pudesse justificar e salvar, exclusivamente pela graça, a miseráveis pecadores, incapazes de guardar perfeitamente, em todo o tempo a Sua boa, santa, perfeita e espiritual Lei, por conta das fraquezas que residem na nossa carne.
Deste modo, enquanto nos salva apesar das nossas imperfeições, nos impõe o dever de sermos perfeitos e santos assim como Ele é perfeito e santo, de modo que andemos na senda que nos está proposta na nossa nova condição de filhos de Deus, que pela esperança proposta aguardam pela perfeição moral e pela santidade absolutas que lhes está prometida que terão no céu.
Pelo relato que Paulo faz neste capítulo parece que os primeiros cristãos judeus mantiveram uma consideração à lei cerimonial, conforme testemunho que se dá do próprio Ananias, a quem Paulo havia sido enviado no princípio quando se converteu; de quem se diz que era homem piedoso conforme a lei e que tinha bom testemunho dos judeus (At 22.12). Mas os primeiros cristãos gentios viviam um cristianismo inteiramente independente da lei cerimonial de Moisés, conforme estavam sendo instruídos por Paulo que um gentio não necessitava viver como um judeu para que fosse salvo, porque o povo da Nova Aliança era um povo formado tanto por judeus quanto por gentios, porque em Cristo a barreira que os separava havia caído.
Dantes, os gentios não tinham a Deus e eram estranhos às suas alianças, mas pela fé em Cristo foram também adotados como filhos de Deus e aproximados dEle somente pela fé, porque as bases que regiam a Nova Aliança, conforme promessa do próprio Deus seriam inteiramente diferentes das que regiam a Antiga (Jer 31.31-34).
Contudo, como entre os gentios havia também judeus, porque estes se encontravam espalhados pelo mundo desde o cativeiro babilônico, muitos destes que se convertiam ao cristianismo se mantinham fiéis às tradições do judaísmo, e portanto se revoltavam contra Paulo alegando que ele pregava um evangelho sem lei.
No entanto, isto não era verdade, porque como afirmamos anteriormente Paulo pregava corretamente que em Jesus Cristo, nem o judeu, nem o gentio, são justificados por obras da Lei, e na verdade, ninguém pode ser justificado pelas obras da Lei, nem mesmo no período do Antigo Testamento, porque a salvação que dá vida eterna sempre foi e sempre será pela exclusiva graça e misericórdia de Deus, que operam somente pela fé nEle.
Porém, Paulo jamais pregou contra a importância da Lei para outros propósitos, como por exemplo, nos levar ao conhecimento do pecado, e também da sua importância na nossa santificação, dentre outros usos que foram determinados para ela por Deus. Portanto, a acusação que lhe dirigiam era improcedente e fruto da ignorância dos seus opositores quanto aos desígnios eternos de Deus.
Então, havia esta tensão entre a circuncisão e a incircuncisão nos primeiros anos do cristianismo.
Não pela existência de duas doutrinas diferentes, mas pela dificuldade que os judeus tinham em reconhecer em princípio de que em Cristo a Lei cerimonial havia sido completamente revogada quanto à obrigatoriedade de seu cumprimento, inclusive pelos judeus.
No período do Antigo Testamento todo gentio que quisesse fazer parte do povo de Deus, deveria ser circuncidado e se submeter a toda a Lei de Israel, tanto civil, quanto moral e cerimonial, para que fosse aceito como um israelita. Mas isto havia sido derrubado na Nova Aliança, ficando os gentios obrigados somente ao cumprimento da Lei moral, que é eterna e aplicável a todos os homens, de todas as épocas e lugares.
Contudo, em sua ignorância os judeus continuavam afirmando que os gentios deviam ser circuncidados e guardarem toda a Lei de Moisés, sem o quê não poderiam ser salvos (At 15.1,5).
Porém, Paulo reafirma a falsidade deste ensino dizendo aos Gálatas que ele havia dado o exemplo de não ter permitido que Tito, seu cooperador no ministério, não fosse circuncidado quando havia descido com ele a Jerusalém, de maneira que a verdade do evangelho que afirma que a justificação é independente das obras da Lei fosse mantida entre os gentios.
O perigo não se encontrava no fato de que um gentio poderia se circuncidar ou não, porque os crentes judeus continuavam circuncidando seus filhos. O perigo não era a circuncisão, mas o fato de crer que alguém pode ser salvo e entrar no reino dos céus por meio da circuncisão do prepúcio.
Este sim era o grande perigo: afirmar um caminho de salvação diferente da graça mediante a fé, que sempre foi e será o caminho de salvação para qualquer pessoa, quer no passado, quer no presente, quer no futuro.
O problema era exatamente este; por isso Paulo se levantou com tanta veemência em defesa da verdade, porque se a causa judaizante tivesse triunfado, muitas outras maneiras diferentes da verdade evangélica, para que os homens sejam salvos, estariam sendo pregadas pela própria igreja dos gentios.
Não foi então por acaso, que Deus em Sua presciência e sabedoria tivesse escolhido Paulo para ser um apóstolo chamado fora de hora, como ele próprio afirma, como se fosse um abortivo, para que a verdade do evangelho pudesse ser defendida e mantida em registro para todas as gerações subseqüentes, pelas epístolas que ele escreveu, e especialmente por esta carta aos Gálatas que é a Carta Magna, a Constituição do Cristianismo, especialmente no que se refere ao modo da nossa justificação.
Por isso Paulo cita que retornara a Jerusalém quatorze anos depois de ter ali estado por quinze dias com Pedro (Gál 1.18), ocasião em que se fazia acompanhar de Barnabé e Tito. Nós vemos que ele não havia ainda se separado de Barnabé, o que ocorreria não muito depois quando desse início à sua segunda viagem missionária, depois de ter retornado de Jerusalém a Antioquia da Síria. E nós vemos que nós temos até este seu retorno a Jerusalém pelo menos dezessete anos desde a sua conversão (soma de 3 e 14).
Paulo estava então, plenamente seguro e firme quanto à doutrina que ele pregava.
Ele desceu para defender a doutrina da justificação pela fé no Concílio que foi instalado em Jerusalém por causa do desejo de derrubar o falso ensino de que alguém precisava guardar as obras da Lei para que fosse justificado, contra o ensino claro do Senhor que uma pessoa é justificada pela graça que Ele veio trazer aos pecadores em todas as partes do mundo, e para isso ordenou que o Evangelho fosse pregado em todas as nações, para a remissão dos pecados pela simples fé nEle.
O que passa disso não é evangelho, como já dissemos antes, não quanto à santificação, mas quanto à eleição, justificação e regeneração, que por si só determinam aqueles que foram livrados da condenação eterna, e obtiveram a adoção de filhos e a vida eterna, que lhes dão o pleno, seguro e eterno direito de acessarem o céu.
Ao se referir a Tito que era um grego que havia se convertido ao cristianismo, e agora um pastor de pastores, porque seria a ele que Paulo encarregaria de organizar a igreja em Creta no futuro, o apóstolo quis dar um recado muito claro aos Gálatas que eles não deveriam se deixar persuadir com a idéia de que deviam se circuncidar para serem salvos, conforme lhes haviam ensinado os judaizantes, aqueles judeus aferrados à Lei, mas sem discernimento nos assuntos relativos à salvação dos pecadores.
Porque ele, Paulo, não havia se deixado persuadir pelos argumentos daqueles que haviam se levantado contra ele em Jerusalém, de modo que a causa da justificação pela graça, mediante a fé, havia triunfado, conforme reconhecimento dos apóstolos e presbíteros da Igreja de Jerusalém, conforme se vê no parecer final que havia sido expedido pelo apóstolo Tiago no Concílio que está narrado em Atos 15.
Tito era então um testemunho vivo para eles, que não tinham realmente nenhuma necessidade de se circuncidarem e guardarem os mandamentos cerimoniais da Lei de Moisés para serem salvos, porque a justificação pela qual ganhamos o céu é somente pela graça, mediante a fé, sem o concurso de quaisquer obras meritórias dos salvos.
É muito importante que destaquemos que esta ida de Paulo a Jerusalém, foi em razão de uma revelação direta que ele recebera de Deus para proceder tal defesa da graça, conforme se vê no verso 2, e sem esta revelação ele não teria ido lá. Ele foi em obediência à vontade do Senhor para firmar de uma vez para sempre o ensino relativo ao modo da nossa salvação.
Paulo não condenou a circuncisão em si mesma. Nem por palavra nem por ação ele foi contra a circuncisão. Mas ele protestou contra a circuncisão que é feita como sendo uma condição para a salvação. Ele citou o caso dos patriarcas de Israel. Eles não foram justificados através da circuncisão. Ela era apenas um sinal e selo da justiça. Eles viam a circuncisão como uma confissão da fé deles.
Porém era difícil para um judeu crer que a circuncisão não era necessária para a salvação.
Mas a ida de Paulo a Jerusalém ajudou que a verdade fosse mantida mesmo entre os judeus da circuncisão, porque por determinação dos próprios apóstolos deles lhes foi determinado não perturbarem mais os gentios com aquele assunto porque ainda que desejassem continuar se submetendo ao mandamento da circuncisão, eles não deveriam pensar que ela fosse um elemento necessário à salvação de quem quer que seja.
Contudo, os falsos apóstolos que haviam seduzido os Gálatas não ficaram satisfeitos com o veredicto do Concílio e não se submeteram à decisão dos apóstolos e insistiam em afirmar que a circuncisão e cumprimento de toda a Lei de Moisés eram necessários para a salvação.
Isto de um modo ou de outro, ainda que não relativamente à circuncisão, tem prevalecido na Igreja de Cristo, porque há nela não poucos legalistas que insistem em afirmar que a salvação de uma pessoa somente poderá ser obtida se ela conseguir guardar perfeitamente toda a Lei, e assim ensinam e pregam contra a verdade que o próprio Deus determinou a Paulo que fosse estabelecida de uma vez para sempre no Concílio de Jerusalém.
De tal maneira havia triunfado a causa da verdade no Concílio de Jerusalém que nós vemos Paulo, por uma medida de consideração para a fraqueza da consciência dos judeus, mandando que Timóteo fosse circuncidado, porque era meio judeu e meio grego, para que revelasse que este assunto da circuncisão era indiferente para ele, uma vez que não é por ser circuncidado ou não que alguém poderá ser recomendado a Deus, de modo que em suas próprias palavras nós o vemos afirmando o seguinte:
“A circuncisão é nada e a incircuncisão nada é, mas, sim, a observância dos mandamentos de Deus.”
Não somente os romanistas como muitas seitas dita evangélicas afirmam que o fundamento da salvação é a fé. Até aí tudo bem. Mas aí dão mais um passo em falso adiante e afirmam indevida e falsamente que a salvação é condicional porque à fé devem ser acrescentadas as boas obras para que a pessoa possa ser efetivamente justificada e salva. Isto é terrível e vai totalmente contra a verdade revelada nas Escrituras, mesmo do Antigo Testamento, quando o assunto se refere à salvação.
Para eles não é suficiente Deus ter afirmado em Habacuque 2.4 que o justo viverá pela fé. Ou então que faria uma nova aliança em que não se lembraria dos pecados do seu povo, porque usaria de misericórdia com as suas iniquidades, e que inscreveria as suas leis na mente e coração deles, e em tantos outros textos em que afirma lhes daria um novo coração de carne para que jamais se afastassem dEle.
Então a questão em ordem é o maligno desejo de se excluir a glória e mérito de Deus na salvação, para transferi-lo para as mãos pecaminosas dos homens. Isto é, na verdade, uma grande abominação, aos olhos dAquele a quem prestaremos contas das nossas obras.
Os falsos apóstolos usaram este argumento contra Paulo: “Os apóstolos de Jerusalém viveram com Cristo durante três anos. Eles ouviram os sermões dele. Eles testemunharam os milagres dele. Eles pregaram e realizaram milagres enquanto Cristo estava na terra. Paulo nunca viu Jesus na carne. Agora, quem deveria acreditar em Paulo, que era segundo os falsos apóstolos, um mero discípulo dos apóstolos da circuncisão, um dos últimos e o menor dos discípulos; que inclusive havia cometido o disparate de perseguir a própria Igreja.” .
Isto soava muito pesado nos ouvidos dos Gálatas e eles balançaram na sua confiança em Paulo e no evangelho que ele pregava, e por isso tentaram consertar as coisas a tempo, dando ouvidos aos judaizantes.
Como foi que Paulo reverteu tudo isso?
Ele disse que ainda que os apóstolos de Jerusalém fossem anjos do céu ele não se impressionaria com isso.
Porque ele estava argumentando a favor da excelência do Evangelho verdadeiro, e este era mais excelente do que todos os apóstolos juntos, inclusive o próprio Paulo, porque todos eles não haviam inventado o Evangelho, mas lhe haviam recebido por revelação do próprio Deus.
Pelas palavras de Paulo, ele pretendeu dizer que nem mesmo os apóstolos deveriam ser divinizados.
É isto que Paulo estava dizendo aos Gálatas. Eles haviam sido seduzidos pelos judaizantes de tal maneira que estavam idolatrando os apóstolos de Jerusalém.
Mas Paulo lhes lembrou que a par de todo o acatamento, reverência e respeito que eles mereciam, como ele próprio, na condição de apóstolos de Cristo, nenhum deles, como qualquer outro homem, por mais elevado que seja o seu ofício, é digno de ser idolatrado, porque a adoração é algo devido com total exclusividade somente ao Senhor, conforme Ele o tem revelado na Sua Palavra.
Ele, Paulo, não era em nada inferior aos apóstolos da circuncisão conforme afirmavam os judaizantes, o que se comprovava pelo fato deles próprios terem reconhecido que ele havia sido chamado efetivamente ao apostolado para ministrar à incircuncisão, assim como eles haviam sido comissionados para ministrarem à circuncisão.
Quanto à recomendação que os apóstolos de Jerusalém haviam feito a Paulo de que se lembrasse dos pobres, o que ele também se empenhou em fazer com diligência tanto quanto defender a doutrina da justificação pela graça comprovava diante dos Gálatas que ele não era contra as boas obras, conforme eles afirmavam, porque ele deu testemunho do seu cuidado com os pobres e com muitas obras de justiça, invalidando assim também este argumento que eles haviam levantado injustamente contra ele, ao mesmo tempo, que revelava que não havia nenhuma incompatibilidade entre o ensino da justificação somente pela graça com o dever dos crentes de serem diligentes na prática das obras de justiça, de modo que uma coisa não anula a outra.
Pr Silvio Dutra