“Tu, ó homem, que condenas os que praticam tais coisas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus? Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento? Mas, segundo a tua dureza e coração impenitente, acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus,” (Rom 2.3-5)
A natureza humana é a mesma em todas as épocas e em todos os lugares; as circunstâncias externas podem fazer uma diferença externa; mas internamente, cada homem é igualmente alienado de Deus, e precisa da salvação revelada no Evangelho. Provar isso, é o propósito dos três primeiros capítulos desta epístola aos Romanos.
No capítulo anterior, isto é provado, em referência aos os gentios, e neste, em referência aos judeus.
Havia entre os gentios alguns que em seus discursos públicos inculcavam uma pura moralidade mais do que era geralmente praticada, mas em sua própria vida e conversação eram culpados dos mesmos crimes que condenavam, e isso pode ocorrer até o dia de hoje entre aqueles que se professam cristãos.
Por inveja ou falta de caridade, há uma disposição em todos para verem os outros sob uma luz desfavorável, ao mesmo tempo em que eles próprios são faltosos, quer da mesma forma, ou em outras diferentes daquelas que condenam.
Com efeito, tão extrema é a cegueira da natureza humana, que, quanto mais alguém está sob o domínio de orgulho ou vaidade, ou cobiça, tanto mais ele odeia aqueles nos quais estes mesmos males predominam. O homem orgulhoso não pode suportar o orgulho, e assim com os demais.
Mas, se esta disposição se manifesta entre iguais, muito mais ocorre entre aqueles que estão colocados a uma certa distância um do outro, seja esta diferença em idade, grau, ou relação, ou em hábitos e disposições gerais. O velho condena as loucuras da juventude, e os jovens a seriedade dos velhos. O ricos não toleram a ociosidade ou desonestidade dos pobres; e os pobres, são contra o egoísmo e a opressão dos ricos. Os pais se queixam de seus filhos, e os filhos, de seus pais.
Os mestres, de seus servos, e os servos, de seus senhores. E da mesma forma, o fanático e o pensador livre, o filho pródigo e o mesquinho, o eremita e o farrista, todos olhando suas próprias falhas, e condenando sem reservas os defeitos característicos dos outros.
No mundo, para aqueles que professam ser religiosos é, como geralmente ocorre, o maior de todos os defeitos; não há outro tão pouco tolerado, tão universalmente condenado. Nomes infamantes são universalmente colocados no piedoso, e o título atual, seja ele qual for, é suficiente para fazer um homem desprezado, evitado e temido, como um incômodo público para todo o mundo. Suponhamos por um momento que pessoas religiosas fossem imprudentes em colocar um tão grande estresse sobre a religião, que não haveria mal em negligenciar nosso Deus e as almas imortais? Mas o mundo ignoraria tudo com a sua impiedade peculiar, como se não houvesse nenhum mal nisso, e não estabeleceria limites para as suas investidas contra aqueles que servem e honram a Deus.
Pode-se pensar que o entusiasta selvagem é o único objeto de sua aversão; mas foram os apóstolos entusiastas selvagens? Foi nosso bendito Senhor falto em sabedoria e prudência? No entanto, eles foram todos considerados “como o lixo do mundo, e a escória de todas as coisas”, e os próprios homens inescrupulosos subornaram falsas testemunhas, e encharcaram suas mãos com o sangue de um homem inocente, porque não conseguiram encontrar qualquer mal neles próprios, senão apenas naqueles que eram os objetos de sua aversão implacável.
Se surgir uma ocasião em que um líder de religião atue de modo indigno de sua profissão, isto é uma causa de triunfo para um mundo ímpio! Com que júbilo são seus defeitos imputados a todo o corpo de pessoas religiosas, e todos eles são condenados como sendo igualmente hipócritas! Os pecados dos ímpios e profanos são reputados por eles como nada em comparação com a sua falta; e toda a Igreja de Deus é difamada, e o próprio Deus também é blasfemado, por aprovar e justificar, segundo eles, a iniquidade que foi cometida.
Seria bom se essa parcialidade no julgamento fosse confinada ao ímpio, mas há uma grande tendência para isto naqueles que professam a religião. Sem dúvida, à medida que a verdadeira humildade é formada no coração, esta má disposição será mortificada, mas na proporção em que o orgulho e a vaidade não são subjugados, o mal de falta de caridade irá traí-lo. Temos um exemplo mais notável disto em Davi, quando teve uma recaída num estado grave de separação de Deus. Quando Natã lhe disse de um homem que tinha tomado o cordeiro do pobre, eis que nada seria suficiente para expiar o crime, senão o que deveria ser esperado era a pena de morte para o rei, tão atroz foi a sua ofensa.
Nós concordamos que este era um caso muito extremo; e que nada parecido é comumente imputado aos que professam a religião; mas não há, entre muitos líderes um total desprezo do ímpio? Será que eles não falam frequentemente da irreligiosidade de seus vizinhos com aspereza e desprezo, como sendo miseráveis, cegos, criaturas carnais?
Os judeus consideravam os gentios como cães, e como amaldiçoados; enquanto eles se imaginavam o povo escolhido de Deus; e não há uma grande parte do mesmo espírito para ser vista entre o que se chama de mundo religioso? A ignorância e impiedade dos homens deste mundo são apenas consideradas como um motivo justo de sua condenação eterna, enquanto que o orgulho e falta de caridade, e dez mil outros males que são encontrados, com muita freqüência entre estes líderes desdenhosos, são classificados como veniais, e não capitais, ou talvez como não existindo em seus corações.
Quão diferente foi a lição ensinada a nós por nosso Senhor, que, quando o jovem rico veio lhe perguntar sobre o caminho para o céu, ele “o amou”, apesar dele saber que o seu amor pelas coisas terrenas acabaria por vencer todos os melhores desejos que ocupavam sua mente! Nosso divino Mestre o amou pelo bem que estava nele, embora ele previu que iria provar-se ineficaz para o bem-estar final de sua alma; enquanto que a grande massa de líderes religiosos teriam perdido de vista tudo de bom que havia nele, e tê-lo-iam tratado com desprezo absoluto.
Mas entre aqueles que com grande confiança “clamam: Senhor, Senhor”, há muitos que serão encontrados em uma condição tão ruim como ele, e o discípulo que traiu nosso Senhor com um beijo, será encontrado em nenhuma situação mais feliz do que aqueles que o haviam prendido com espadas e varapaus.
Por estranho que possa parecer, nas diferentes seitas religiosas as pessoas estão tão prontas para anatematizar outros, como para condenar aqueles que não têm religião. É um princípio declarado da Igreja de Roma, que aqueles que não são de sua comunhão não podem ser salvos. E há um pouco do mesmo fanatismo entre os diferentes líderes da fé protestante.
Porque ser da sua denominação é quase de si mesmo, uma qualificação para o céu, e ser dissidente da mesma é como uma preparação para o inferno. Bendito seja Deus! Este espírito intolerante tem diminuído grandemente nos últimos anos; mas ainda permanece num grau terrível, e dá, senão apenas ocasião para o triunfo dos céticos e infiéis. Mas mesmo entre as pessoas de uma mesma comunidade religiosa, esta propensão para julgar e condenar o outro prevalece muito.
O fraco julgará o forte, e o forte desprezará os fracos. Pessoas, cujas situações as desqualificam totalmente para estimar corretamente a conduta de outras pessoas, ainda assim vão determinar para elas qual é a linha de conduta que deve ser seguida, e passarão uma sentença de condenação naqueles que não andarem no caminho que parece bom para eles. Na verdade, não são poucos os que não precisam desta repreensão: ” Quem és tu que julgas o servo alheio? Para o seu próprio senhor está em pé ou cai” (Rom 14.4)
Todas as pessoas mencionadas imaginam, que elas não têm nada em si para temer, mas todas elas estão num estado que desagrada a Deus, cujo julgamento é segundo a verdade contra os que praticam tais coisas. Pode alguém supor que uma mera profissão de religião vai passar por Deus pela experiência real do estado do coração? Ou que um grande desejo para condenar os outros será um substituto para o desempenho dos nossos próprios deveres? Deus formará o seu juízo sobre os fundamentos parciais que usamos para formar os nossos?
Ele admitirá como justa a estimativa que fizemos com base no nosso próprio caráter, ou se contentará em nos provar pelo padrão que usamos para provar a nós mesmos? Não. Sua lei é perfeita e; e pela mesma ele provará todos aqueles aos quais essa lei foi revelada.
Ele pesará a todos nós na balança do santuário; ele “provará os corações “ e “pesará os espíritos” dos filhos dos homens. Ele “não julga segundo a aparência, mas julga retamente.” Apelamos então a todos: devem esses hipócritas impiedosos escapar? Ó tu, que tens assim se enganado até aqui, o que achas agora? Pensas que, como sabes mais do que outros, ou fazes uma profissão mais religiosa do que os outros, que hás de escapar? Saiba, que tal esperança é vã. Temos certeza de que se você não se humilhar como um pecador arruinado, e não fugir em busca de refúgio no Senhor Jesus Cristo, a vingança de Deus lhe alcançará.
Deus tem bondosamente exercido muita paciência e longanimidade para ti, e tu tomas ocasião disto para concluir bem em relação a teu estado, e para julgar os outros como parecendo menos favorecidos do que tu. Mas é este fim que Deus tem dado a ti, e exibido para ti todas as riquezas da sua bondade?
Não foi sua intenção revelar a sua bondade a todos?
Tu homem mundano que julgas o religioso, e tu homem religioso, que julgas o mundo, quando voltarão seus pensamentos para o seu próprio interior, para julgarem a si mesmos?
Saiba que, até que sejas levado a um espírito mais justo, no que diz respeito a um espírito mais caridoso, em relação ao teu próximo, tu és um desprezador de Deus, um usurpador de sua prerrogativa de “juiz da sua própria lei”, por quem tu mesmo deves ser julgado.
Há um dia no qual Deus julgará o mundo em justiça. O homem tem o seu dia, e Deus tem o seu. O dia presente é um dia de graça, mas o que está por vir é um dia de ira. Como é chamado em outro lugar “o dia da perdição dos homens ímpios”.
“E cada um será julgado de acordo com o que ele fez através do corpo, seja para o bem, seja para o mal.”
Então, se você tiver sua atenção fixada nos seus próprios pecados, você não terá nada para fazer, então, com os pecados dos outros . Oh! comece agora, enquanto lhe é dado tempo, para procurar suas próprias iniquidades, e buscar a remissão delas através do sangue de Cristo.
Há situações, sem dúvida, em que somos chamados a julgar; nem sempre podemos deixar de lado o ofício de julgar, assim como pensar naqueles que são culpados de todos os tipos de pecados.
Nem precisamos deixar de julgar, como para estar satisfeitos com o estado de quem vive num total abandono de Deus e de suas próprias almas. Pelo contrário, devemos chorar por eles, e orar por eles, e trabalhar por todos os meios possíveis para a sua salvação. Mas a nossa principal preocupação deve ser conosco. Aqui a nossa análise não pode ser muito exata, ou a nossa ansiedade muito grande. Aqui devemos ter medo de entreter uma boa opinião sobre bases insuficientes.
Devemos nos julgar, para que não sejamos julgados pelo Senhor. Procure então, provar todos os seus caminhos, e não se aventure a confiar em seus próprios esforços, ore fervorosamente a Deus, dizendo: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos, e vê se há algum caminho mau em mim, e guia-me pelo caminho eterno.”, Sl 139, 23,24.
Este foi o grande objetivo no argumento do apóstolo: ele está se esforçando para convencer a todos, tanto judeus como gregos, que eles tinham necessidade da salvação que Cristo adquiriu para nós pelo seu próprio sangue.
Quanto mais somos humilhados aos nossos próprios olhos, mais somos exaltados perante os olhos de Deus. Os que estão doentes é que precisam de médico. E quanto mais conscientes estivermos de nossa desordem, tanto mais havemos de valorizar o Senhor Jesus Cristo. O seu sangue nos purificará de todo o pecado, e ele é capaz de salvar perfeitamente a todos os que vêm a Deus por ele. Nele habita toda a plenitude, e você não precisa temer ser achado desgraçado, miserável, pobre, cego, e nu, Apo 3.17,18, quando você ouvi-lo lhe aconselhando que venha a ele para que seja enriquecido por ouro puro; para ser vestido com vestes limpas, e receber o colírio que lhe restaurará a sua visão.
Sejam nada, sim, menos do que nada, em si mesmos, e ele será para vocês tudo o que os seus corações possam desejar, sua sabedoria, justiça, santificação e redenção, I Cor 1.30.
Tradução, adaptação e redução feitas pelo Pr Silvio Dutra, de um texto de Charles Simeon, em domínio público.