Em Romanos 8:1, São Paulo fala de duas formas divergentes de a pessoa orientar a sua vida: vivê-la segundo a carne ou segundo o Espírito. Neste artigo procurarei meditar sobre o que caracteriza cada um desses modos de andar na vida.
A tradução da Bíblia por Ferreira de Almeida, chamada versão tradicional, em Romanos 8:1 escreve: Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. A segunda parte do versículo, que sublinho, é de duvidosa legitimidade, pois não aparece nos melhores manuscritos, mas no contexto de toda a Epístola, e especialmente neste capítulo oitavo, a explicação é consequente. No desenvolvimento do capítulo 8º vê-se que os dois caminhos alternativos são, de facto, “viver segundo a carne” ou “viver segundo o Espírito”, grafado com maiúscula por se referir ao Espírito divino.
É do ser humano que o apóstolo fala, quando fala da carne (sarx), como o faz em Romanos 3:20 e noutros lugares Gálatas 2:20, Filipenses 1:22, etc. No Novo Testamento, o ser humano é apresentado como sendo tridimensional:
Swma (sôma) Corpo
Yukh (psyché) Alma
Pneuma (pneuma) Espírito
Sendo o Swma (sôma) a sua dimensão material, a Yukh (psyché) a sede do pensamento e dos sentimentos, e o Pneuma (pneuma) o elemento vital. Algumas vezes fala-se apenas do corpo e do espírito, associando no corpo os valores da Yukh (psyché = alma), como neste capítulo 8 no versículo 13: Se viverdes segundo a carne, morrereis; mas se pelo espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Este versículo mostra também que as palavras “carne” e “corpo” podem ser usados como sinónimos e incluir uma e outra a ideia de “alma” ou mente. As obras do corpo não são apenas acções mas são também os pensamentos e os sentimentos que dão origem a tais acções. De resto, com a liberdade com que os semitas usam as palavras, em que conta mais o contexto que a lógica rigorosa, até a palavra corpo (soma) pode significar o homem completo (corpo, alma e espírito) como em Mateus 5:29; Romanos 12:1 e Tiago 3:6. Um ponto é claro: ao contrário do que alguma teologia cristã fez depois, no pensamento bíblico não há um dualismo matéria-espírito ou corpo-espírito em que o primeiro elemento seria totalmente negativo e o segundo positivo. O homem na visão bíblica é uma unidade corpo-alma-espírito e a esperança cristã não é, como nos gregos, que o espírito será um dia liberto da prisão do corpo, mas o cristão espera a ressurreição da pessoa integral. Jesus disse em João 6:40: A vontade d’Aquele que me enviou é esta: que todo aquele que vê o Filho e crê n’Ele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. O Credo dos Apóstolos, que traduz bem o ensino bíblico, diz: “Creio na ressurreição da carne (sarkx) e na vida eterna”. Esperamos viver eternamente na nossa entidade integral. Este corpo que agora temos será transformado (corpo glorioso), mas será o nosso corpo, como Jesus ressuscitado tinha o seu corpo I Coríntios 15:53/54.
DUAS ORIENTAÇÕES
Há, pois, duas formas de orientar a vida: uma em que o homem se guia segundo as exigências, as apetências e as possibilidades do seu corpo e da sua mente; e outra em que o homem entrega a orientação da sua vida ao Espírito. No mesmo texto de Romanos 8:1 o apóstolo usa a expressão “estar em Cristo”. São esses que não andam segundo a carne, mas “segundo o Espírito”. “Estar em Cristo” é, em termos práticos, estar convertido a Cristo e ao seu Evangelho, ter comunhão com Ele no Espírito, e estar integrado no Corpo de Cristo, que é a Igreja. Sem nos determos ainda no sentido de “viver segundo o Espírito”, avançamos já que, obviamente, não se entra na “vida segundo o Espírito” de forma automática pelo facto de a pessoa ser baptizada e subscrever o Credo. Ser cristão é ter nascido de novo, em Cristo, mas é um facto que no cristão continua presente o “homem velho”. Na verdade, mesmo os melhores cristãos andam repetidamente segundo a carne. Como lembrou Lutero, o cristão é simultaneamente justo (anda segundo o Espírito) e pecador (anda segundo a carne). Paulo diz de si mesmo que é carnal Romanos 7:14, embora seja, acima de tudo, alguém que vive em Cristo. II Coríntios 5:14/19. Mas o apóstolo lembrou: embora andando na carne, não militamos segundo a carne II Coríntios 10:3.
O HOMEM DO CONHECIMENTO
Há a tendência de se pensar que “andar segundo a carne” é uma forma de falar do homem sem religião ou moralmente condenável, mas devemos sublinhar que falar do homem “carnal” não implica forçosamente um julgamento moral. Jean de Saussure, teólogo suíço, num comentário ao Credo dos Apóstolos escrevia: “A Bíblia chama «carne» a tudo o que é humano, tudo o que é terrestre, e designa exclusivamente como «Espírito”, o Espírito divino, o Espírito Santo. Segundo a Escritura, o nosso ser inteiro é carnal, a nossa inteligência, tanto como o nosso corpo, a nossa alma, o nosso espírito é carnal. A «carne» é todo o nosso ser terrestre”. (Crois-tu cela? p.191) Assim, mesmo na religião, podem distinguir-se os aspectos da orientação “carnal”. Há pessoas que praticam muita religião, mas vivem segundo a carne. A sua adesão é a doutrinas, é apenas um assentimento intelectual, mesmo que as doutrinas em questão não sejam inteligentes.
Essa orientação da vida, que mais adiante se verá melhor em que consiste, manifesta-se em ateus e agnósticos, mas está muito presente na vida de seguidores de diferentes religiões, é muito bem tipificada no comportamento dos fariseus do Novo Testamento mas continua para além do Novo Testamento e chega até aos nossos dias.
O famoso teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer dedicou na sua Ética algumas páginas muito expressivas ao fenómeno fariseu, páginas que começam com este período: “É no encontro de Jesus com o fariseu que a antiga e a nova situação são mais bem esclarecidas. A boa interpretação deste encontro é da maior importância para a compreensão do Evangelho em geral. O fariseu não é um acidente histórico e acidental, mas o homem para quem apenas o conhecimento do bem e do mal se torna o tema de maior importância para a sua vida. Por outras palavras, ele é simplesmente o homem da divisão. Todo o retrato distorcido dos fariseus rouba a seriedade da discussão de Jesus com eles. O fariseu é esse homem extremamente admirável que subordina toda a sua vida ao seu conhecimento do bem e do mal e é um juiz tão severo de si próprio como do seu próximo para glória de Deus, a quem ele humildemente agradece pelo seu conhecimento” (Ethics, p.26-27).
O farisaísmo foi o movimento que maior combate mereceu da parte de Jesus. A razão por que Jesus tanto combateu o farisaísmo está no carácter profundamente nocivo que o farisaísmo é para o ser humano, anulando de forma subtil a graça de Deus. É o facto de o farisaísmo ser um caminho “segundo a carne” mas que dá a ilusão ao homem de estar no “caminho segundo o Espírito” que o torna mais perigoso.
Viver segundo a carne é, essencialmente, viver segundo os padrões humanos, estabelecer os valores que o homem aceita para sua orientação, a direcção que quer tomar, os interesses que decide servir, o projecto ou projectos que escolhe para si. Aquilo que o homem pensa, é aquilo que ele é: Como o homem imagina em sua alma, assim ele é. Provérbios 23:7. Viver segundo a carne não é algo que tenha uma conotação moral ou especialmente relacionado com baixos pecados, mas tem de ver com uma orientação geral em que o homem quer ter firme condução da sua vida.
O homem que vive segundo a carne é o homem da razão, o que não significa viver sempre inteligentemente, pois a nossa razão ocupa-se muitas vezes de ideias que não são nem inteligentes nem superiores. No dia em que escrevo estas linhas vi no noticiário da televisão manifestações de ódio religioso numa área do Médio Oriente. As pessoas que ali gritavam histericamente não manifestavam de modo algum inteligência e discernimento mas tinham claramente, com verdade ou não, a sua razão tomada por ideias de hostilidade. Nelas a mente (psyche, alma) estava exaltada em extremo, mas não se pode dizer que a multidão estivesse a agir com racionalidade, no sentido superior que damos a esta palavra. No mesmo dia, vejo a multidão num estádio de futebol vibrar com o que se passava no relvado. Este ânimo não é eticamente reprovável mas não se pode dizer também que é inteligente. E na verdade, se manipulada, essa exaltação pode transformar-se rapidamente em selvajaria e violência. Os “holigans” são prova do que pode fazer a exaltação do pensamento, que dá origem ao sentimento. É nos cérebros que se formam ideias de simpatia ou antipatia em relação a esta ou aquela equipa, a este ou aquele povo, e são os pensamentos que fazem nascer os sentimentos que dominam a multidão. Eticamente condenáveis ou não, estas formas de viver para a sua alma e para o seu corpo são formas de orientação na carne. Não estou a dizer que o cristão não pode gostar de futebol e vibrar por uma equipa ou pela selecção do seu país, mas que a vivência desse espectáculo com sentimentos de inimizade, emulações, hostilidade, cólera, por exemplo, mostra o seu carácter “carnal” Gálatas 5:19/21.
TRADIÇÕES E LEIS
Saulo de Tarso, o fariseu, era uma boa ilustração, antes de se tornar cristão, do que é viver segundo o pensamento carnal. É o crente temente a Deus que “respira ameaças” contra os cristãos, porque lhe parece que essa seita blasfema contra Deus. Podia dizer-se que Saulo é um homem coerente. É fariseu e está convencido na sua própria mente (razão) de que conhece a verdade, que sabe o que é certo e errado acerca de Deus, por isso quer livrar o mundo dessa peste, desse mal, que é o Cristianismo nascente. Na sua perspectiva, trata-se de uma luta do Bem (representado na sua facção) contra o Mal (representado pelos cristãos). Não devemos ser fiéis à nossa própria consciência? Ora a consciência de Saulo, formada no Judaísmo farisaico, lavava-o a ver nos cristãos inimigos de Deus. O Cristianismo surgia aos olhos do fariseu como uma corrente perigosa, que desprezava as tradições e as leis, e para o homem na carne umas e outras são indispensáveis. O homem religioso, fariseu ou de outra religião, vivendo “segundo a carne”, é radical porque precisa de verdades “palpáveis”, afirmações muito concretas, nada de meios-termos. Tudo tem de ser cumprido escrupulosamente. A parábola do Bom Samaritano, que Jesus contou, denuncia esse tipo de religião do “homem segundo a carne”. O sacerdote o e levita passam e não socorrem o homem que fora assaltado e jazia quase morto. O que eles fazem, vendo o ferido e passando ao lado, fazem-no para não ficarem impuros caso o homem estivesse morto. Ficariam impedidos de desempenhar as suas funções no templo Números 19:13/14. O samaritano também, em princípio, aceitava o livro de Números (Os samaritanos só aceitavam os cinco primeiros livros da Bíblia), mas a compaixão levou-o a arriscar a sua pureza. A parábola condena os homens que põem as regras, mesmo quando sagradas, à frente do próximo. Lucas 10:25/37. Aliás, um episódio também do Evangelho de Lucas, em que se pode ver igualmente sério aviso à mesma tendência de pôr as leis à frente do acolhimento da pessoa é o que tem como protagonistas as irmãs Marta e Maria Lucas 10:38/42. Marta está ocupada com muitas coisas mas Maria escolheu a boa parte: escolheu dar atenção pessoal, ouvir, o hóspede que estava em sua casa. A generalidade das pessoas vive em obediência a padrões de pensamento e sentimentos que encontrou na sua família ou a que aderiu, mesmo que a maioria, felizmente, não tome todos os dias atitudes radicais.
O que leva à preferência por regras e tradições é o medo que as pessoas têm do caos, e Jesus, apresentando-se como o Messias que põe em questão esse modo de viver, é um perigo. Também Pedro, o pescador, teve medo de caminhar sobre o mar. Mar que representa na simbólica judaica a insegurança total. Pedro sabe que no mar a pessoa afoga-se. O homem, no estágio em que Pedro então se encontrava, habituou-se a um sistema de pensamento, associou esse sistema à segurança, e tudo quanto ameace mexer com tal sistema faz nascer nele o medo. Nas religiões e na política, a predominância desta orientação carnal tem como consequência a dificuldade em aceitar a mudança. A nível popular conhecemos esta reacção: “nasci nesta lei e nela vou morrer”. A “lei” é a religião dos seus pais, e quem assim fala, geralmente, não tem argumentação forte em favor dessa religião, senão apenas o facto de ser a religião que aqui encontrou. Os adversários de Jesus também lhe diziam, para recusarem a sua mensagem: “Somos filhos de Abraão!”, como que a dizerem-lhe: “Seguimos a religião de Abraão!”. Mas Jesus respondia: Se vocês fossem filhos de Abraão, faziam aquilo que Abraão fez! João 8:39 ). Ora Abraão é o homem que se destaca por obedecer à chamada que recebeu de Deus. “Partiu, sem saber para onde ia” Hebreus 11:8. Abraão é o homem que rompe com a segurança, que aceita a mudança, que dá o “salto da fé”.
NA BUSCA DE PODER E GLÓRIA
Na orientação “segundo a carne”, o homem busca o poder e a glória. Justamente porque se sente inseguro, porque tem medo da vida, busca ter poder. Jesus denunciou essas pretensões de poder e glória nos chefes religiosos do seu tempo: Na cadeira de Moisés estão sentados os escribas e fariseus. Observai, pois, e praticai tudo o que vos disserem; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não praticam. Eles atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com o dedo querem movê-los. E fazem todas as obras a fim de serem vistos pelos homens Mateus 23:2/5. Buscavam poder e glória. De outra vez disse: Sabeis que os que julgam ser príncipes das gentes, delas se assenhoreiam, e os seus grandes usam de autoridade sobre elas: Mas entre vós não será assim. Antes, qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal. E qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos. Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos. Marcos 10:42/45. Dirigentes religiosos e dirigentes políticos, ou mesmo qualquer um que não se pode considerar dirigente seja do que for, mas vive a nível “da carne”, procura impor-se, dominar, mandar. Quando duas pessoas entram em relação, não é difícil perceber que desde o primeiro encontro começam por se “medir” para saber quem é que manda e quem deve sujeitar-se. Não são apenas os chimpanzés, nem os leões, nem os elefantes, nem outros animais irracionais que, quando se encontram, têm de decidir quem é o chefe: essa exigência é mais subtil entre os humanos, mas faz-se também. O mais forte entre os humanos impõe-se, pode não ser pela força física, mas pela astúcia, pelo dinheiro que possui, pelos apoios que tem, pela arte de seduzir, pela intriga. Em algumas igrejas até há tentativas de dominar por aparentar maior santidade! O domínio do homem sobre a mulher é resultado desta forma de viver segundo a carne: os textos bíblicos que alguns usam para justificar o domínio são astúcia inconsciente. No sistema de pensamento mais generalizado, com mais de cinco mil anos de história, a orientação é esta: Todo o homem que encontramos é em princípio um inimigo e se não dominarmos o inimigo seremos dominados por ele. “Quem o seu inimigo poupa, morre-lhe nas mãos”. É a vida segundo a carne que explica, pois o domínio do homem sobre a mulher, o colonialismo, o esclavagismo, as formas de exploração do homem pelo homem, o autoritarismo nas Igrejas. Quando muito, só se poupa o fraco, o pobre diabo que não é ameaça. Um cínico disse de um homem que morreu: “Era tão pobre, tão destituído de méritos, tão apagado, que nem sequer tinha um inimigo”. Não é caso para procurarmos fazer inimigos, mas dá para perceber que a vida dos seres humanos pode ser dolorosa, e isso quando o homem em geral inscreve nos diversos sistemas de pensamento ideais muito nobres. A nível da ideologia escrita há ideais muito belos – mas na prática descobre-se como tais ideologias podem ser monstruosas. Um dia, ainda existia em Portugal a ditadura corporativista, um amigo nosso, na Suíça, disse-nos: “Por curiosidade, escrevi ao vosso Secretariado Nacional de Informação pedindo que me enviasse algum texto sobre o Estado Novo. Mandaram-me e fiquei espantado: aquilo no papel é maravilhoso”. Sim, no papel. O papel consente tudo. O capítulo 7 da Carta aos Romanos diz: o homem pode desejar fazer coisas boas, mas é o mal que acaba por fazer.
PENSAR E AGIR
Não é por falta de ideias elevadas que a humanidade tem problemas. Na filosofia, na política, na religião, há sistemas cheios de atracção, cheios de lógica, muito generosos. O mal é que não são aplicados. Um homem bem intencionado que conheço tem o sonho de publicar um livro que está a escrever e que, na sua opinião, tornará tão evidente a existência de um Deus Criador que, por assim dizer, obrigará “todos os homens de boa-vontade” a verem a humanidade como uma família de irmãos e de irmãs e a tratá-los assim. Esse homem é uma pessoa simpática, mas está a ser demasiado confiante na sua capacidade de converter os homens. A conversão das pessoas ao Deus Supremo não se faz com mais uma elaboração teórica, embora, obviamente, seja da maior necessidade que nos aproximemos de Deus com inteligência. Contudo, a prova imediata de que as “demonstrações científicas” ou “demonstrações filosóficas” da existência de Deus têm uma influência mais do que reduzida é que há séculos que são publicados trabalhos com “provas infalíveis” da acção amorosa de Deus – e nem por isso se pode dizer que sejam muitos os que põem em prática os valores da fé. Mesmo dentro das Igrejas não é difícil encontrar homens e mulheres que pregam e ensinam comportamentos elevados, mas todos os dias os desmentem com suas vidas. Não estou a falar de falhas que os próprios lamentam e de que se arrependem, mas de frias traições ao Evangelho. E provavelmente todos os dias pessoas humildes, que nunca precisaram das provas da existência de Deus, actuam com elevação. O que acontece, e em certo sentido estamos a repetir-nos, é que na maior parte dos casos as doutrinas, os princípios, os valores que são anunciados – na política, na filosofia, na religião – são meros sistemas de pensamento que servem como uma veste que a pessoa põe sobre si, mas sem ter alguma coisa de ver com o “coração” do seu autor. Um político rodeia-se de uma comissão que o ajudará a escrever o seu programa eleitoral. Cada pessoa da comissão dá a sua sugestão, talvez com sinceridade, sobre medidas que devem ser postas em prática se o político for eleito. Mas as ideias sinceras não têm nada de ver com o próprio candidato e assim, se eleito, ele actuará sem ter em conta as promessas eleitorais. Um pregador prepara o seu sermão. Fechado na sua biblioteca, busca neste autor, naquele, ideias que tornam atraente o sermão. Mas as ideias pouco têm de ver com o pregador, ou saem-lhe apenas da cabeça, como um dramaturgo inventa um discurso para uma personagem piedosa – e o que é dito será ouvido pela assembleia com a atenção com que se ouve um poema.
Sabemos o que fez e disse Jesus; o que disse Paulo de Tarso; o que disse o vidente de Patmos; mas sabemo-lo como sabemos o que disse o rei D. Dinis ou o que disse Pedro I do Brasil: são coisas da história, do passado, de outros, que constituem um saber e pouco mais do que isso. Quando a nossa acção se faz de conhecimentos desse tipo pode inspirar-nos uns traços de ética, um interesse religioso, uma estética – mas dificilmente nos transforma. Há pouco, numa intervenção, um pastor brasileiro dizia que o fracasso de uma Igreja mede-se pela ausência nela de fraternidade entre os crentes. Tem toda a razão – embora nas Igrejas se proclame que somos irmãos e irmãs; os cultos são fastidiosos – embora os hinos falem muito de alegria; a mobilização dos crentes é quase nula, ainda que se proclame a evangelização como a Grande Comissão. A vida segundo a carne é inclinação para a morte Romanos 8:6.
VIVER NO ESPÍRITO
A alternativa à vida segundo a carne é a vida segundo o Espírito. Mas haverá vantagem em procurar alternativa? O homem segundo a carne sente que sim, só não vai muito longe na busca da alternativa que lhe é proposta no texto porque a alternativa apresentada lhe parece um disparate, uma loucura. São Paulo comentou: A palavra da cruz é loucura para os que perecem. I Coríntios 1:18. Na verdade, o homem carnal procura sempre alternativas aos seus sistemas de pensamento – e acaba sempre por criar mais um novo sistema de pensamento, mais doutrinas, mais dogmas, que combatem outras doutrinas e outros dogmas. Mas a adesão que o Novo Testamento requer não é a doutrinas e a dogmas mas a uma Pessoa, Jesus Cristo, que só conhecemos segundo o Espírito II Coríntios 5:16. Se conhecemos Cristo segundo a carne, limitamo-nos a fazer do seu Caminho apenas mais um “ismo” na História das Religiões. Tal como quando um sistema político, posto em prática, mostra-se ruinoso para a sociedade e pensadores sérios fazem nascer um outro “ismo” em alternativa. Mas esta alternativa acaba por causar tanto sofrimento como o que existira antes. Um sistema religioso revela-se opressivo e desumanizante, e os homens criam uma alternativa, mas também aí a alternativa acaba por causar sofrimento e impede o desenvolvimento do homem. Vê-se isso com a história do Cristianismo. Nasceu para denunciar a religião formalista e opressiva dos judeus e tem passado, ao longo de dois mil anos por inúmeras fases de formalismo e opressão.
O que o homem pode encontrar como resultado das suas buscas – os seus projectos, as suas ideologias, as suas religiões – mostra-se sempre frustrante. Isso não significa que tudo o que o homem produz seja inútil ou que tudo é inútil ao mesmo nível. Há produtos do pensamento humano que são generosos e acabam mal ou de forma frustrante porque é da sua natureza assim acabarem. E há produções humanas que são já à nascença expressões de maldade. Reconheçamo-lo: há ideologias e religiões piores do que outras. Temos de viver com pensamentos – mas com a certeza de que todo o pensamento humano tem de ser confrontado constantemente pela forma alternativa de viver – que é viver segundo o Espírito.
A alternativa a “viver segundo a carne” é simples, tão simples que, ansioso como o ser humano é pela complexidade, tem dificuldade em aceitá-lo. Lembramos a história de Naamã, o chefe dos exércitos da Assíria que ficou leproso. Foi aconselhado a consultar o profeta Eliseu e seguiu para Israel, mas Eliseu mandou-o lavar-se sete vezes no rio Jordão e Naamã achou a ideia doida ou simples demais. Para mergulhar num rio teria ficado na sua terra. Um criado foi sensato: Se o profeta tivesse exigido algo difícil não o farias? Então porque te recusas a fazer uma coisa simples? II Reis 5:10/14 Naamã seguiu o conselho, mergulhou no Jordão e ficou limpo.
ALGUNS SEGUNDOS PARA A MUDANÇA
Não é preciso fazer nenhum curso complicado para a pessoa mudar da orientação segundo a carne para a orientação segundo o Espírito. Alguns cristãos, pensando no que aconteceu no Pentecostes, quando os discípulos receberam o dom do Espírito Santo, pensam que é preciso esperar um tempo até que se opere um milagre. Pensam alguns em jejuns, em longos tempos de oração e súplicas para que o Espírito venha. Mas há um ponto que deve ser realçado: o Espírito Santo já foi dado, justamente no primeiro Pentecostes cristão. Todos os que confessam com sinceridade que Jesus Cristo é o Senhor, já são habitados pelo Espírito I Coríntios 12:3. O sobrenatural já está no crente, ainda que a opção do crente por viver segundo a carne impeça o Espírito de dirigir. Agora, o crente sente a insatisfação, que é sinal de estar a viver na luta entre a carne e o Espírito Romanos 8:7. Se fosse complicado alcançar a via do Espírito, Deus seria injusto e o apóstolo Paulo pouco sábio. Deus seria injusto porque daria oportunidade só a alguns, os que encontrassem um professor hábil para os ensinar ou tivessem tempo e dinheiro para seguir algum retiro. Há dias, uma senhora disse-me: “Estive num retiro espiritual durante quinze dias com um guia preparado no movimento carismático e vim de lá cheia de felicidade”. Era evidente a alegria da senhora. Mas as pessoas mais pobres, que não têm, como esta senhora, quinze dias para se afastarem dos seus deveres familiares ou profissionais, nem dinheiro para pagarem a estadia na casa de retiros? E Paulo, que faz tantas referências à vida segundo o Espírito, não devia ser mais concreto, dizer em pormenor em que consiste isso?
Insisto: viver segundo o Espírito é simples. Basta renunciar aos objectivos da vida segundo a carne. O homem segundo a carne, como vimos, é o homem do sistema de pensamento, das leis, das tradições – viver segundo o Espírito é deixar de referenciar tudo a um sistema, mas ficar aberto à novidade, àquilo que o Espírito vai trazendo à nossa vida. Entregar a nossa vida ao Espírito é entregá-lo à liberdade: O Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. II Coríntios 3:17. Deixar de querer viver exclusivamente segundo as directivas da nossa razão, de um sistema de pensamento que herdámos da família ou a que aderimos, e passar a estar atento ao que o Espírito de Deus diz ao nosso espírito.
Não vimos nós que o “homem segundo a carne” vive em busca de poder e glória? Pois viver segundo o Espírito é também renunciar ao poder e à glória. Colocar-se na vida como um servo Marcos 10:45. Não ter a obsessão de um novo conjunto de regras, de um discurso ideológico fechado (os gregos buscam sabedoria, I Coríntios 1:22) mas assumir-se como Abraão, o peregrino, partindo à aventura com Deus.
DESPOJAMENTO EM CRISTO
Conclui-se que a vida segundo a carne é a vida a nível natural e que a vida segundo o Espírito é a vida a nível sobrenatural. O homem será naturalmente egoísta, mau, lobo do homem, e precisa de “morrer” e nascer de novo em Cristo. Essa interpretação tem muitos textos bíblicos a apoiá-la e é a mais adoptada pelo Protestantismo – mas julgo que essa visão negativa, muito calvinista, do “homem natural”, que pessoalmente adoptei desde a minha juventude, deve ser repensada. O Catolicismo tem uma concepção menos negativa do homem (semipelagianismo), assim como as Igrejas Ortodoxas, o Anglicanismo e o Metodismo (arminianismo). Observo também que o movimento Quaker fala mesmo da “centelha divina que existe em cada homem” e talvez por isso tem uma admirável acção em favor da paz e da amizade entre os povos. Mais importante do que especular se o homem é um ser que nasce naturalmente mau ou nasce bom é percebermos que aquilo que nos leva a tornar infeliz a vida são atitudes ou valores adquiridos, são como que “armas” de que nos munimos para a “guerra da vida”. No fundo, os “saberes” que vou organizando sobre a vida, incluindo este “saber” que o homem é um ser depravado (Calvino), torna-se um saber de homem carnal I Coríntios 1:26. E a libertação acontece quando nos despojamos dos nossos “saberes”. Em Cristo eu terei de me despojar de tudo o que eu acreditava ser “sabedoria”, porque, na verdade, a única sabedoria que conta é a de Deus Daniel 2:20. Mas a sabedoria de Deus não se faz coisa, não se faz código que eu possa manusear. Ela é sempre o mais além, e enquanto caminho nesta dimensão da vida eu conheço apenas “em parte” I Coríntios 13:9. A causa de muitos dos fracassos das Igrejas e dos obreiros deve-se sem dúvida ao facto de a sua preocupação maior ser apresentarem-se diante dos homens com “sabedoria carnal” II Coríntios 1:12 e não se limitarem a ser servidores da “sabedoria de Deus”, que sempre pode ser objecto das nossas petições Tiago 1:5, mas nunca do nosso orgulho. O trabalho da teologia não é dizer o que Deus e o Seu mundo são, mas afastar os saberes errados que sobre Deus e o Seu mundo foram sendo construídos.
HABITADOS PELO ESPÍRITO
A promessa que Jesus fez aos seus discípulos foi de que, após a sua ascensão, o Pai enviaria o Espírito Santo. Chama-lhe o Espírito de verdade, que os discípulos conheceriam “porque habita convosco e estará em vós” João 14:17. Não temos que O procurar fora de nós, mas dentro de nós. Isto não significa que o Espírito esteja aprisionado em nós, porque Ele é o Espírito de Deus e Deus está em todo o lado. Mas é preciso acentuar este ensino do Novo Testamento da presença em nós do Espírito de Deus, para que a nossa relação com Deus se não veja apenas como uma relação de busca do Todo-Poderoso que está algures “lá em cima”, mas é também o encontro com o Deus mais íntimo que um amigo, o Emanuel, Deus connosco.
Viver no Espírito é viver numa comunhão tranquila com o Espírito de verdade que nos habita. É portanto um caminho místico, de atenção ao mais próximo de nós, e não mais um caminho de leis, de regras, de rituais exteriores. A exterioridade só merece ser exercida se não for obstáculo à acção do Espírito. É por isso que entre os Quakers não há um conjunto de artigos de fé escritos ao qual todos os crentes se devam submeter nem uma liturgia fixa que se deva cumprir. E no entanto há profunda harmonia entre eles, porque valorizam acima de tudo a comunhão no Espírito.
O misticismo não está isento de perigos, porque o místico é como um rio que se aproxima do mar. Num momento, o rio sente tanto o sal do mar que chega a pensar-se oceano. Por isso Deus providencia a existência da Palavra escrita. Não é uma lei que a Igreja consulta, mas a margem que limita. O que o Espírito de verdade nos diz tem eco na Escritura ou não é palavra divina. O Espírito não deixa de falar, mas a sua fala não contradiz o que já foi inspirado; as coisas novas que diz são novas apenas na aplicação dos casos, porque a vontade de Deus está formada desde o começo dos tempos.
Na comunhão com o Espírito, o homem será guiado pacientemente, mas com humildade não saberá mais do que convém saber Romanos 12:3, isto é, não se apresentará com sabedoria humana perante o mundo, mas viverá da sabedoria de Deus. O Protestantismo sublinhou o princípio da “Sola Scriptura” (é apenas na Escritura que encontramos a revelação de Deus), e fez bem, porque a crença medieval de que o papa e os concílios (a Tradição) são veículo da revelação salvífica trouxe dogmas, doutrinas e práticas perturbadoras. Mas um perigo desse princípio protestante, retirado do seu contexto histórico, é cair-se no fundamentalismo, que é a pretensão de aceitar a Bíblia à letra. A prioridade dada ao Espírito Santo corrige esse perigo. Deus revela-se ao crente, mas nenhuma revelação pessoal contradiz a revelação canónica das Escrituras. A actividade principal do crente é a oração – e o estudo da Bíblia, que é lida na comunhão do Espírito, é a sua grande necessidade. Os que são guiados pelo Espírito encontram nas páginas da Escritura a Voz do Bom Pastor.
AMOR, ARREPENDIMENTO E GRATIDÃO
O amor de Deus está derramado em nossos corações, pelo Espírito Santo que nos foi dado Romanos 5:5. Não há outra “pedra de toque” para se saber se um homem ou uma mulher está, de facto, habitado/a pelo Espírito Santo do que o amor que ele ou ela manifestar. Qualquer que ama conhece Deus I João 4:7. Ama a Deus e ao próximo: Se alguém diz: Eu amo a Deus mas não ama a seu irmão, é mentiroso. Pois, quem não ama o seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu? I João 4:20. Mas atenção: o amor de Deus foi derramado nos nossos corações. É dádiva: é o primeiro fruto do Espírito Santo Gálatas 5:22. Não é produto do esforço humano, é espontâneo. Alguns fingem amar, mas aquele que sabe discernir espiritualmente conhece bem qual é o amor autêntico.
Quando o crente sente o amor de Deus dentro de si, Deus amando através de si, toma consciência das suas faltas, reconhece o seu pecado. O arrependimento que o discurso moralista e farisaico não consegue, nasce naturalmente naquele que tomou o sabor do amor do Pai, pronto a perdoar. O arrependimento não é uma boa obra que fazemos para merecermos o amor de Deus, como crê o homem na carne religioso, mas é ele mesmo o resultado do amor de Deus derramado no crente. Deus toma a iniciativa. Se nem todos se arrependem é porque muitos rejeitam o amor de Deus. A Parábola do Filho Pródigo Lucas 15:11/32, ilustra esse ensino. O filho perdido não se arrepende por lhe terem chamado a atenção para o seu pecado ou por, por si só, ter tomado consciência do seu pecado, mas o arrependimento veio-lhe de ter tido consciência de que podia ir bater à porta da casa do Pai, onde havia fartura de comida. Sabia que o Pai o receberia. Se o amor do Pai não fosse evidente para o filho, este não teria chegado ao arrependimento. Se Jesus não se tivesse manifestado como sendo o rabi que amava, Maria de Magdala não teria tido a ousadia de se aproximar dele, não se teria arrependido e ficado grata, tornando-se uma das mais devotadas das suas seguidoras.
Ao arrependimento segue-se a vida em gratidão, e esta torna-se o sentimento central da vida. Não há discipulado cristão feliz que não seja um discipulado fortemente marcado pela gratidão. É a gratidão que leva a dizer: A vida que agora vivo, na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim Gálatas 2:20.
Infelizmente, não é fácil ao ser humano cultivar a gratidão. Temos a tendência de passar indiferentes pelas muitas bênçãos que recebemos na nossa vida. Mas a alma crente tem de aprender com o salmista e proclamar: Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo o que há em mim bendiga o seu santo nome. Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças de nenhum dos seus benefícios Salmo 103:1/2.
Um velho hino protestante exorta também:
Conta as bênçãos, conta quantas são,
Recebidas da divina mão.
Vem dizê-las, todas de uma vez,
E verás surpreso quanto Deus já fez.
Em Junho de 2006, esteve de visita a Portugal, na qualidade de embaixadora da UNESCO, a actriz americana Mia Farrow. Numa entrevista a um canal da televisão portuguesa, não faltou a pergunta indiscreta sobre os seus sentimentos quando do fim desastroso do seu casamento com Wood Allen. Tranquila, a actriz de 70 anos respondeu que na altura sofrera mas descobriu que mesmo acontecimentos dramáticos como esse podiam concorrer para aprofundar o sentido da vida. Agora sente-se uma mulher feliz e realizada. Não sei se Mia Farrow é cristã mas a sua resposta mostra sabedoria. É preciso aprendermos a descobrir em cada acontecimento os aspectos que concorrem para enriquecer a nossa personalidade e tornar-nos mais felizes. A gratidão é a essência da felicidade. Estar grato a Deus ou à Vida e “contar as bênçãos recebidas da divina mão” é o mesmo que dizer: “Sou feliz”.
ESPÍRITO E EUFORIA
O movimento dentro das Igrejas que, com maior visibilidade, a partir do século XVIII, tem procurado sublinhar a necessidade de os cristãos terem a experiência da acção do Espírito Santo na sua vida, tem sido, em geral, de muito benefício. Foi o movimento metodista de Wesley; o movimento pentecostal; o movimento carismático mais recente. No entanto, há entre muitos cristãos alguns exageros e os exageros têm, por vezes, resultados perversos. Um dos exageros é querer fazer passar a ideia de que “viver no Espírito” é sempre viver em estado de euforia, isto é, em grande contentamento e animação. Aos que vivem em constante animação é costume chamar “entusiastas”, vindo esta palavra do grego “en Theos”, em Deus, salientando que a animação vem da presença de Deus nessas pessoas. Mas é preciso lembrar que Deus é também Paz e a Sua presença muitas vezes traduz-se numa grande serenidade no crente.
Não há nas Escrituras sinais de que a euforia permanente exista, e a razão mostra que a verdade tem de ser diferente. O que, por exemplo, lemos sobre São Paulo, no Livro dos Actos dos Apóstolos, e o que dele lemos nas suas epístolas torna claro que ele é alguém que, no essencial, vive “no Espírito”. Paulo diz de si mesmo: Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo, na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim Gálatas 2:20. Quando Paulo fala em “agora”, está a referir-se ao tempo que decorre desde a sua conversão – e no entanto, não faltam textos escritos pela mão do mesmo apóstolo em que ele está longe de se expressar com euforia, mas antes fala, sem queixume, da sua fraqueza como homem, das suas lágrimas, do seu sofrimento, das suas provações. Os discípulos, no dia de Pentecostes, ao receberem o Espírito Santo, ficaram, sem dúvida, eufóricos, até levarem os seus detractores a dizerem que estavam embriagados – mas essa euforia não esteve permanentemente com eles, pois vieram horas de recolhimento, de dor mesmo, de sério confronto com problemas concretos.
Pensemos também que os cristãos, como todas as pessoas, têm de passar pela morte. Mesmo que vivam na maior segurança, rodeados do maior bem-estar, chega o dia em que terão de ir “pelo caminho de toda a terra” I Reis 2:2, uns ainda jovens, outros menos jovens e alguns ainda com muita idade. É natural então, quando o tempo da partida se aproxima, que as forças vão faltando, tanto físicas como mentais. E que acontecerá àqueles que vivem no Espírito? O que tem acontecido a grandes servos de Deus quando a doença toma os seus corpos é manterem-se serenamente na submissão ao Espírito, e terminarem tranquilamente a sua carreira. Nas horas do declínio, nem por isso deixam de ter a bênção de Deus, mas já com voz fraca e corpo em sofrimento.
Faleceu há dias um irmão na fé, que foi um leigo de grande dedicação à obra de Deus. Foi o que se chama um dirigente leigo (presbítero), pregador, presidente durante um mandato da sua Igreja. Tinha, ao morrer, 94 anos, e nos últimos três anos a doença minou-o muito. Perdeu a vista e tinha problemas no andar, de modo que tudo quanto podia fazer era telefonar aos seus amigos e irmãos na fé. E enquanto pôde falar ao telefone foi um comunicador que inspirava alegria e tranquilidade nos seus interlocutores. O seu corpo e mente (carne) sofriam o desgaste de uma vida inteira, mas o seu espírito estava lúcido e serenamente em comunhão com o Espírito de Deus. Um grupo de crentes da sua igreja, com o pastor, visitou-o poucos dias antes de adormecer no Senhor e todos ficaram impressionados com a firmeza da sua fé. Na verdade, esse irmão vivia na fraqueza a força do Espírito Santo e esperava tranquilo o encontro com o Senhor.
Mas nem precisamos de pensar nesses tempos de fraqueza natural que estão perto da morte. Basta reflectirmos no facto de que também os crentes têm aflições na vida e a doença de um ente querido ou a separação pela morte há-de reflectir-se na sua vida. O Espírito estará bem presente e desempenhará a Sua missão de Consolador, co-existente, por certo, com a lágrima discreta, a mágoa furtiva. E também os crentes são susceptíveis de um vírus de gripe, de uma pneumonia, que lhes tiram as forças e os deixam fisicamente cambaleantes, não obstante o Espírito de Deus os habitar. Também isso faz parte desta verdade: “No mundo tereis aflições” João 16:33. Só quando o Reino de Deus chegar à sua plenitude, no fim dos tempos, é que o crente viverá também na plenitude da sua libertação.
GUIADOS PELO ESPÍRITO
Foi pelo Espírito Santo que a Palavra de Deus guiou o povo israelita (Números 24:2; I Samuel 16:13; Isaías 61:1; Ezequiel 11:5; Ezequiel 36:27; Mateus 22:43; Actos 1:16; I Pedro 1:11; II Pedro 1:21). Na Nova Aliança, feita na cruz por Jesus Cristo, a promessa é de que a direcção do Espírito é agora acessível a todos os crentes. Disto já falava o Antigo Testamento quando ficou escrito: Este é o concerto que farei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor: porei a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração. E eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Jeremias 31:33. A diferença fundamental entre o Antigo e o Novo Testamento era que, com a vinda do Messias todo o crente nele passaria a receber a direcção interna de Deus. É assim também que se entende a promessa feita em Joel 2:28: Derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os velhos terão sonhos e os vossos mancebos terão visões. Essa promessa, concluíram os primeiros cristãos, cumpriu-se no dia do primeiro Pentecostes cristão Actos 2:1/11.
Jesus confirmou a promessa anunciada pelos profetas do Antigo Testamento e anunciou que depois da sua “ida para o Pai” os discípulos seriam habitados pelo Espírito, que lhes ensinaria todas as coisas João 14:26. A Igreja primitiva actuou com a convicção que o Espírito a guiava. O Livro de Actos conta-nos este episódio significativo: Paulo e seus companheiros viajavam uma vez para proclamar o Evangelho na Frigia e na província da Galácia. Aparentemente planeavam pregar na Ásia mas, diz o autor do livro, foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciarem a Palavra na Ásia Actos 16:6.
“Sim”, objectarão alguns, “mas isso deu-se com Paulo, que tinha uma chamada especial”. Não encontramos fundamente bíblico para tal ideia. O Espírito é para toda a Igreja, para todos os que são chamados filhos de Deus. É o próprio Paulo quem o diz: Todos os que são guiados pelo Espírito, esses são filhos de Deus Romanos 8:14. Como todos os que crêem são filhos de Deus João 1:12, segue-se que a todos é dada a oportunidade de serem guiados pelo Espírito.
É menos difícil do que pode supor receber a orientação do Espírito de Deus. Já lembrámos que o ser humano é tridimensional – corpo, alma e espírito. É no nosso espírito que recebemos a comunicação do Espírito de Deus. Ou seja, não é de uma forma material, física, através dos ouvidos ou através dos olhos, que o Espírito nos guia. Nem é através da alma (mente, sentimentos), mas pelo espírito. Não é pensando muito, pensando melhor, que recebemos a orientação do Espírito, mas é adoptando uma atitude receptiva.
Muitos de nós certamente já tivemos esta experiência: estávamos preocupados com um problema na nossa vida e por muito que pensássemos não encontrávamos solução. Orámos, meditámos, mas nada nos mostrou uma saída. Então, parámos de pensar – e subitamente surgiu-nos uma ideia que, sentimos bem, ultrapassava-nos. Não desprezamos a razão humana; não dizemos inútil a reflexão sobre os nossos problemas, mas defendemos que há uma luz diferente que nasce no silêncio e que é mais forte do que nós. Não temos o direito de dizer aos outros: “Esta palavra que digo veio-me pelo Espírito Santo”, porque humanamente nem sequer podemos provar nada, mas modestamente enchemo-nos de alegria porque percebemos que não se trata de sabedoria nossa.
Quando ouvimos um sermão ou uma conferência; quando lemos um livro ou um artigo e sentimos que estamos diante de algo verdadeiramente inspirado, acontece-nos o mesmo que aos discípulos de Emaús que caminharam com o Senhor na primeira Páscoa. Já em casa, depois do Partir do Pão, eles disseram: Porventura não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho nos falava e quando nos abria as Escrituras? Lucas 24:32.
Outra vez Paulo e outra vez em Romanos 8:16: O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus.
FILHOS POR ADOPÇÃO
Os dois modos de andar na vida, de que nos ocupámos hoje, podem ser ilustrados com a analogia que se segue. Um jovem, órfão de pai e mãe, trabalha já há alguns anos para um casal generoso. Nenhum mérito distingue esse jovem, mas um dia o patrão diz-lhe: “Eu e a minha mulher gostávamos de te adoptar como filho”. O jovem aceita com alegria e, cumpridas as formalidades, passa a viver com seus pais adoptivos, não deixando contudo de manter o seu emprego. Continua a ser a mesma pessoa, mas agora é filho e isso faz a diferença.
Os que nasceram numa família religiosa, cumpriram as regras e confessaram as doutrinas de uma Igreja, mas vieram a fazer uma entrega pessoal a Jesus Cristo sabem qual é a diferença entre ser apenas empregado de um patrão ou ser filho – supondo, claro, que falamos de um filho adoptivo grato e de um pai que inspira gratidão.
É ainda São Paulo, no mesmo capítulo 8 da Carta aos Romanos, que usa justamente o conceito de adopção para explicar a situação do crente. Na versão francesa ecuménica da Bíblia, lemos assim em Romanos 8:15: Vós não recebestes um espírito que vos torna escravos e vos conduz ao medo, mas um Espírito que faz de vós filhos adoptivos e pelo qual nós clamamos: Abba, Pai. O contexto mostra que é bem do Espírito Santo, Espírito de Deus, que se trata.
Em Gálatas 4:5 fala dos que Jesus Cristo reúne num povo como tendo recebido a adopção de filhos, e em Efésios 1:5 refere a predestinação para filhos de adopção, por Jesus Cristo.
Não é expressão de orgulho os cristãos dizerem-se “filhos de Deus”, sabendo que o não são naturalmente mas por adopção, mas o modo altivo como muitos religiosos, também cristãos, usam esse título aconselha a não o proclamar, pois do mal devemos evitar até a aparência.
O Espírito de Deus concede dons para o serviço de Deus (I Coríntios 12:4/30; Efésios 4:1/16) e é como servos humildes e actuantes que os cristãos se devem apresentar ao mundo, não com títulos.