“30 Ditas estas coisas, muitos creram nele.
31 Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos;”
(Nota do Tradutor: Nós veremos a partir do verso 31 deste oitavo capitulo do evangelho de João, quão grande debate houve entre Jesus e os judeus em relação à não aceitação deles da afirmação que lhes fizera que eram escravos do pecado, e por conseguinte, de Satanás. Todavia, nunca podemos esquecer que tudo o que Jesus fez e ensinou foi por amor, e com misericórdia de nossa condição, com o propósito de nos salvar da escravidão ao pecado e ao diabo. Este amor, pode ser visto na parte inicial deste oitavo capítulo, na forma pela qual Ele livrou a mulher adúltera da condenação, especialmente por parte de religiosos de Israel. Assim, se nos parece haver alguma forma de aspereza ou rigor nas palavras de Jesus, devemos apagar isto de nossas mentes, porque elas são a mais pura expressão da verdade, de modo que as recebendo e recorrendo a Ele pela fé, possamos ser ajudados e livrados da condenação eterna que paira sobre a cabeça de toda e qualquer pessoa neste mundo.)
30. “Enquanto ele falava essas coisas, muitos creram nele”. Embora os judeus, naquele tempo, quase se assemelhassem a um solo seco e estéril, todavia Deus não permitiu que a semente da sua palavra fosse totalmente perdida. Assim, ao contrário de todas as esperanças, e em meio a muitos obstáculos, aparecem alguns frutos. Mas o evangelista imprecisamente dá o nome de fé para o que era apenas uma espécie de preparação para a fé, porque ele nada afirma além disso a respeito deles do que estavam dispostos a receber a doutrina de Cristo.
31. “Se vós permanecerdes na minha palavra”. Aqui Cristo lhes adverte, em primeiro lugar, que não é suficiente para qualquer pessoa ter começado bem, se o seu o progresso até o fim não corresponder a este início; e por esta razão ele exorta à perseverança na fé àqueles que provaram sua doutrina. Quando ele diz que os que estão firmemente enraizados na sua palavra, e que por isso continuam nela, são os seus verdadeiros discípulos, ele quer dizer que muitos professam ser discípulos que ainda não são na realidade, e não têm direito de serem contados como tal. Ele distingue seus seguidores hipócritas por esta marca, que aqueles que falsamente se vangloriam numa falsa fé recuam tão breve assim que têm entrado na jornada, ou pelo menos no meio dela; mas os crentes perseveram constantemente até o fim. Se, portanto, desejamos que Cristo deve nos contar como seus discípulos, nós devemos nos esforçar para perseverar.
(Nota do tradutor: temos assim, o alerta da misericórdia do Senhor, para que não nos iludamos pensando que somos seus discípulos e que por conseguinte nos encontramos seguramente salvos, quando nos falta esta evidência da perseverança até o fim na fé e na obediência a Ele e aos seus mandamentos, que caracteriza a todos os que são genuinamente salvos.)
“e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (João 8.32)
(Nota do tradutor: Este “e”, conjunção de ligação, do início da frase, une o que está sendo dito agora pelo Senhor Jesus, ao que havia afirmado no verso anterior, ou seja, que isto que agora se afirma sucede a todos aqueles que perseveram na fé até o fim, ou seja, eles conhecerão a verdade que os libertará da escravidão ao pecado e ao diabo.)
“E conhecereis a verdade”. Ele diz que os que chegaram a algum conhecimento dele conhecerão a verdadeira Verdade. Aqueles a quem Cristo se dirigiu eram ainda tão ignorantes e mal conheciam os primeiros rudimentos da fé, e, portanto, não precisamos nos surpreender que ele lhes prometa uma mais completa compreensão de sua doutrina. Mas a afirmação é geral. Por isso, qualquer progresso que qualquer um de nós tem feito no Evangelho, que ele saiba que precisa de novas adições. Esta é a recompensa que Cristo confere à sua perseverança, que ele o admite a uma maior familiaridade com ele; embora ele não faça, desta forma, nada além do que adicionar um outro dom ao primeiro, de modo que nenhum homem deve pensar que tem direito a qualquer recompensa. Pois é ele que aplica a sua Palavra em nossos corações, pelo seu Espírito, e é ele que, diariamente, afugenta de nossas mentes as nuvens da ignorância que obscurecem o brilho do Evangelho.
A fim de que a verdade possa ser plenamente revelada a nós, devemos sincera e ardentemente nos esforçar para alcançá-la. É a mesma verdade invariável que Cristo ensina seus seguidores desde o início até o fim, mas sobre aqueles que foram a princípio iluminados por ele, é como se fosse com pequenas faíscas, ele a expande até que chegue a ser uma luz plena. Assim, os crentes, até que tenham sido totalmente confirmados, são em alguma medida ignorantes do que sabem; e ainda assim não é um conhecimento tão pequeno ou obscuro da fé a ponto de que não seja eficaz para a salvação.
“A verdade vos libertará”. Ele recomenda o conhecimento do Evangelho a partir do fruto que dele deriva, ou – o que é a mesma coisa – a partir de seu efeito, ou seja, que nos restaura à liberdade. Esta é uma bênção inestimável. Daí segue-se que nada é mais excelente ou desejável do que o conhecimento do Evangelho. Todos os homens sentem e reconhecem que a escravidão é um estado muito infeliz; e uma vez que o Evangelho nos livra dela, segue-se que deriva do Evangelho o tesouro de uma vida abençoada.
Temos agora de averiguar que tipo de liberdade é aqui descrito por Cristo, ou seja, que nos liberta da tirania de Satanás, do pecado e da morte espiritual. E se nós o obtivemos por meio do Evangelho, é evidente a partir disso que somos por natureza escravos do pecado.
Em seguida, deve ser verificado qual é o método de nossa libertação. Porque até que sejamos governados por nossos sentidos e pela nossa disposição natural, estamos em escravidão ao pecado; mas quando o Senhor nos regenera pelo seu Espírito, também ele nos torna livres, de modo que, soltos dos laços de Satanás, de bom grado obedecemos a justiça. Mas a regeneração (novo nascimento que recebemos do Espírito Santo) procede da fé, e, portanto, é evidente que a liberdade procede do Evangelho.
Assim que nos gloriemos somente em Cristo, nosso Libertador, uma vez que somos conscientes da nossa própria escravidão. Para a razão pela qual o Evangelho deve ser reconhecido na nossa libertação é, que nos oferece Cristo para sermos libertados do jugo do pecado. Por fim, devemos observar que a liberdade tem os seus graus de acordo com a medida da fé; e Paulo, portanto, embora claramente feito livre, ainda gemia e ansiava pela perfeita liberdade, conforme ele afirma em relação a si mesmo em Romanos 7.24.
“Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres?” (João 8.33)
(Nota do tradutor: No comentário deste versículo nós vemos quão perigoso é para o destino eterno da nossa alma, que estejamos apegados a alguma forma de orgulho religioso, especialmente nos casos em que este foi adquirido por conta de tradição religiosa familiar ou de nossos antepassados, ou ainda da nação ou grupo em que vivemos. A situação do orgulho dos judeus que aqui será vista, pode ser estendida a todos os demais, pois ninguém mais do que eles, poderia abrigar sentimentos de que já eram salvos, por conta da aliança que Deus havia feito com eles através de Moisés, e com nenhuma outra nação da terra, e todavia, nós os encontramos sendo admoestados por Cristo a não colocarem a sua confiança no fato de que por conta disto fossem salvos de fato, uma vez que não é por condição religiosa que somos salvos, mas por uma obra de libertação da graça divina operando em nosso coração, tornando-nos novas criaturas em Cristo Jesus.)
“Somos descendência de Abraão”. É incerto se o evangelista se refere aqui às mesmas pessoas das quais havia falado antes, ou a outros. Minha opinião é que é àqueles responderam a Cristo de forma confusa, como geralmente acontece em uma multidão promíscua; e que esta contenda foi feita sim por desprezadores do que por aqueles que acreditaram. É um modo de expressão muito habitual nas Escrituras, sempre que parte de um povo é mencionada, atribuir em geral, a todos o que pertence apenas àquela parte.
Daqueles que objetaram que eles eram descendentes de Abraão, e que sempre foram livres, facilmente se infere das palavras de Cristo, qual liberdade foi prometida a eles como para pessoas que eram escravas. Mas eles não podem suportar o que lhes é dito, que sendo um povo santo e eleito, estava reduzido à escravidão Para qual proveito foi a adoção e aliança (Romanos 9.4), pela qual eles foram separados de outras nações, senão para que fossem contados filhos de Deus? Eles acham que, por isso, que eles são insultados, quando a liberdade é exibida para eles como uma bênção que eles ainda não possuem. Mas pode ser pensado estranho que eles devam afirmar que nunca foram escravizados, uma vez que tinham sido tão frequentemente oprimidos por vários tiranos, e naquela época estavam submetidos ao jugo romano, e gemiam sob o jugo mais pesado de escravidão; e, assim, isto pode ser facilmente visto, a saber, quão tola era sua jactância.
“Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado.” (João 8.34)
“Todo homem que comete pecado é escravo do pecado”. Este é um argumento tirado de coisas opostas. Os judeus se gabavam de que eram livres. Jesus prova que eles são escravos do pecado, porque, sendo escravizados pelos desejos da carne, pecavam continuamente. É surpreendente que os homens não sejam convencidos por sua própria experiência, de modo que, deixando de lado seu orgulho, eles possa aprender a ser humildes. E isso é muito frequente ocorrer nos dias de hoje, que, quanto maior a carga de vícios pela qual um homem é puxado para baixo, mais ferozmente ele profere palavras sem sentido exaltando o livre arbítrio.
Cristo parece dizer aqui nada mais do que aquilo que foi dito anteriormente por filósofos, que os que são dedicados às suas paixões estão sujeitos a uma escravidão mais degradante. Mas há um significado mais profundo e oculto, ou seja; pois ele não argui o que os homens maus trazem em si mesmos, mas o que é a condição da natureza humana. Os filósofos pensavam que qualquer homem é escravo por sua própria escolha, e que pela mesma escolha ele retorna à liberdade. Mas aqui Cristo afirma, que todos os que não são livrados por ele estão em um estado de escravidão, e que todos sofreram o contágio do pecado da natureza corrompida, sendo escravos desde seu nascimento. Nós devemos atentar para a comparação entre a graça e a natureza, à qual Cristo aqui se refere; a partir da qual pode ser facilmente visto que os homens estão destituídos de liberdade, a não ser que sejam resgatados desta condição por uma ajuda externa.
“35 O escravo não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre.
36 Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.”
35. “Ora, o escravo não permanece sempre na casa”. Jesus adiciona uma comparação, tirada das leis e do direito político, no sentido de que um escravo, embora ele possa ter poder por um tempo, ainda não é o herdeiro da casa; a partir do que ele infere que não há perfeita e durável liberdade, senão a que é obtida por meio do Filho. Desta forma ele acusa os judeus de vaidade, porque eles detêm, senão uma máscara em vez da realidade; pois, quanto ao fato de serem descendentes de Abraão, eles não eram nada senão uma máscara. Eles tinham um lugar na Igreja de Deus, mas um lugar como Ismael, um escravo, levantando-se contra seu irmão nascido livre, usurpado por um curto espaço de tempo (Gálatas 4.29). A conclusão é que todos os que se vangloriam de serem filhos de Abraão têm nada mais do que uma vazia e enganosa pretensão.
36. “Se, pois, o Filho vos libertar”. Por essas palavras ele quer dizer que o direito à liberdade pertence a si mesmo, e que todos os outros, sendo escravos nascidos, não podem ser libertados, senão pela sua graça. Porque aquilo que ele possui em sua própria natureza, ele nos concede por adoção, quando somos enxertados pela fé em seu corpo, e nos tornamos seus membros. Assim, devemos lembrar o que eu disse anteriormente, que o Evangelho é um instrumento pelo qual obtemos a nossa liberdade. Então a nossa liberdade é um benefício concedido por Cristo, mas o obtemos pela fé, em consequência da qual também Cristo nos regenera pelo seu Espírito. Quando ele diz que eles serão verdadeiramente livres, há uma ênfase na palavra verdadeiramente; para que façamos o contraste com a persuasão tola pela qual os judeus estavam cheios de orgulho, do mesmo modo que a maior parte do mundo imagina que possui um reino, enquanto se encontra na mais miserável escravidão ao pecado.
Texto de João Calvino, traduzido e adaptado por Silvio Dutra.