“No último dia, o grande dia da festa, levantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba.” (João 7.37)
“No último dia”. A primeira coisa que deve ser observada aqui é, que nenhum argumento ou intriga de inimigos aterrorizam a Cristo, de modo a fazer com que desista de seu dever; senão, pelo contrário, a sua coragem aumenta com perigos, de modo que ele perseverou com maior firmeza. Isto é provado pela circunstância do tempo, pelo conjunto da multidão, e pela liberdade que ele usou ao exclamar, enquanto sabia que mãos estavam estendidas por todos os lados para pegá-lo; pois é provável que os oficiais estavam naquele momento prontos para executar sua missão.
Devemos observar a seguir, que nada mais foi do que a proteção de Deus, na qual ele se baseava, que lhe permitiu manter-se firme contra tais esforços violentos daqueles homens, que tinham cada coisa em seu poder. Porque, por qual outra razão pode ser atribuído que Cristo pregou no dia mais público da Festa dos Tabernáculos, no meio do templo, no qual seus inimigos mantinham uma reunião tranquilamente, e depois que eles tinham preparado um grupo de oficiais para prendê-lo, senão porque Deus conteve a raiva deles? No entanto, é muito útil para nós, que o evangelista apresente Cristo exclamando em voz alta: “todos os que têm sede venham a Mim”, porque inferimos disto que o convite não foi feito a uma ou duas pessoas apenas, ou como um sussurro baixo e suave, mas que esta doutrina é proclamada a todos, de tal modo que ninguém possa ser ignorante da mesma, senão aqueles que, por vontade própria fechando os seus ouvidos, não perceberão este grito alto e distinto.
“Se alguém tem sede”. Por esta frase ele exorta todos a participarem de suas bênçãos, desde que, a partir de uma convicção da sua própria pobreza, desejem obter assistência. Pois é verdade que somos todos pobres e destituídos de todas as bênçãos, mas está longe de ser verdade que todos são despertados por uma convicção de sua pobreza para buscar socorro. Por isso, sucede que muitas pessoas não mexem um só pé, mas miseravelmente murcham e caem, e ainda há muitos que não são afetados por uma percepção de seu vazio, até que o Espírito de Deus, pelo seu próprio fogo, instiga fome e sede, em seus corações. Pertence ao Espírito, portanto, fazer-nos desejar a sua graça.
Quanto à presente passagem, devemos observar, em primeiro lugar, que ninguém é chamado para obter as riquezas do espírito, senão aqueles que queimam com o desejo delas. Porque sabemos que a dor da sede é mais aguda e atormentadora, para que os homens muito mais fortes, e aqueles que podem suportar qualquer quantidade de labuta, possam ser dominados pela sede. E assim ele convida o sedento e o faminto, a fim de prosseguir com a metáfora na qual ele emprega depois a palavra água e a palavra bebida, para que todas as partes do discurso pudessem estar acordes. E eu não tenho dúvida de que ele faz alusão a essa passagem em Isaías, “todos os que têm sede, venham às águas” (Isaías 55.1), porque o que Profeta atribui a Deus deveria ser cumprido plenamente em Cristo, como também o cântico de Maria: “Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos.” (Lucas 1.53).
Ele, portanto, nos exorta para vir direto a si mesmo, como se ele tivesse dito, que é somente ele que pode satisfazer plenamente a sede de todos, e que todos os que buscam mesmo o menor alívio da sua sede espiritual em qualquer outro lugar estão enganados, e trabalhando em vão.
“E beba”. A promessa é adicionada à exortação; pois embora a palavra – e beba – transmita uma exortação, ainda contém em si mesma uma promessa; porque Cristo testifica que ele não é uma cisterna seca e desgastada, mas uma fonte inesgotável, que em grande parte e abundantemente supre a todos os que vêm para beber. Daí segue-se que, se pedirmos a ele o que necessitamos, o nosso desejo não será decepcionado.
“Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva.” (João 7.38)
“Aquele que crê em mim”. Jesus aponta agora a maneira de vir a ele, que é, que devemos nos aproximar, não com os pés, mas pela fé; ou em vez disso, vir, nada mais é do que crer, pelo menos, se você definir com precisão a palavra crer; como já disse que nós cremos em Cristo, quando nós o abraçamos como ele é apresentado a nós no Evangelho, cheio de poder, sabedoria, justiça, pureza, vida, e todos os dons do Espírito Santo. Além disso, ele agora confirma mais clara e totalmente a promessa que mencionou antes; pois ele mostra que tem uma grande abundância para nos satisfazer plenamente.
“Do seu interior correrão rios de água viva”. A metáfora parece, sem dúvida, ser um pouco áspera, quando ele diz que rios de água viva correrão do ventre dos crentes; mas não pode haver nenhuma dúvida quanto ao significado, que aqueles que acreditam não sofrerão qualquer falta de bênçãos espirituais. Ele chama isso de água viva, a fonte da qual nunca seca, nem deixa de fluir continuamente. Como a palavra rios se encontra no plural, interpreto-a como denotando a diversidade das graças do Espírito, que são necessárias para a vida espiritual da alma. Em suma, a perpetuidade, assim como a abundância, dos dons e graças do Espírito Santo, são aqui prometidas para nós. Alguns entendem que a expressão – as águas fluirão do ventre dos crentes – significa que aquele a quem o Espírito tem sido dado deve fluir para seus irmãos, como devendo haver comunicação mútua entre nós.
Mas eu considero que isto seja um significado mais simples, que todo aquele que crer em Cristo terá uma fonte de vida, fluindo em si mesmo, como Cristo disse anteriormente: “Aquele que beber desta água nunca mais terá sede” (João 4.14), porque enquanto a água comum apenas sacia a sede por um curto período de tempo, Cristo diz que pela fé nós bebemos do Espírito, que é uma fonte de água que jorra para a vida eterna
Ainda, ele não diz que, no primeiro dia, os crentes ficarão tão totalmente satisfeitos com Cristo, que jamais terão mais tarde qualquer fome ou sede; mas, ao contrário, o desfrute de Cristo acende um novo desejo dele. Mas o significado é que o Espírito Santo é como um fluir vivo e contínuo nos crentes; como Paulo também declara que ele é a vida em nós (Romanos 8.10), embora nós ainda carreguemos presentemente resquícios de pecado, a causa da morte. E, de fato, como cada um participa dos dons e graças do Espírito Santo, de acordo com a medida de sua fé, não pode possuir uma plenitude perfeita deles na vida presente. Mas os crentes, enquanto fazem progressos na fé, continuamente aspiram a novas adições do Espírito, para que as primícias que provaram os conduzam adiante até a perpetuidade da vida. Mas também são lembrados por ele, quão pequena é a capacidade de nossa fé, uma vez que as graças do Espírito dificilmente entram em nós por gotas, as quais fluem como rios, se damos a devida admissão a Cristo; se a fé nos fez capazes de recebê-lo.
“Como diz a Escritura”. Alguns limitam isso à frase anterior, e outros à última; de minha parte, eu o estendo a todo o âmbito do discurso. Além disso, Cristo não aponta aqui, em minha opinião, qualquer passagem particular das Escrituras, mas dá um testemunho extraído da doutrina comum dos Profetas. Pois sempre que o Senhor, prometendo uma abundância de seu Espírito, a compara a águas vivas, ele olha principalmente para o reino de Cristo, ao qual ele direciona as mentes dos crentes. Todas as predições de águas vivas, portanto, têm o seu cumprimento em Cristo, porque somente ele tem aberto e apresentado os tesouros escondidos de Deus. A razão pela qual as graças do Espírito são derramadas sobre ele (Jesus) é para que todos possamos extrair da sua plenitude (João 1.16).
Texto de João Calvino, traduzido e adaptado por Silvio Dutra.