Introdução
Vivemos num período caracterizado por uma tremenda confusão doutrinária. Na verdade, de um lado existem aqueles que desprezam os estudos teológicos por acharem que teologia “esfria” a Igreja. Por outro lado existem aqueles que são herdeiros de uma tradição rica em conceitos sadios e que concordam com a sã doutrina da Palavra de Deus, mas que mesmo assim, se apóiam em doutrinas completamente contrárias aos ensinamentos da Palavra de Deus.
Isso acontece porque tais pessoas desconhecem um princípio hermenêutico (princípio de interpretação) bíblico sadio e correto. A maior verdade de interpretação existente é de que A BÍBLIA INTERPRETA A PRÓPRIA BÍBLIA. Em outras palavras, isso quer dizer que as passagens que são complicadas devem ser interpretadas por outras passagens mais claras. Outro princípio diz que as passagens bíblicas devem ser interpretadas dentro do seu contexto. É bem conhecido aquele ditado que diz que “texto sem contexto é pretexto pra heresia”. Um exemplo de pessoas que viviam dessa forma eram os cristãos da cidade de Beréia que conferiam nas Escrituras se Paulo estava pregando corretamente.
Tais noções nos ajudam contra doutrinas erradas que muitas vezes são passadas dos púlpitos das nossas igrejas. Uma destas doutrinas é a conhecida doutrina das maldições hereditárias. Esta doutrina tão perniciosa é definida por um de seus principais defensores no Brasil da seguinte forma:
A maldição é a autorização dada ao diabo por alguém que exerce autoridade sobre outrem, para causar dano à vida do amaldiçoado… A maldição é a prova mais contundente do poder que têm as palavras. Prognósticos negativos são responsáveis por desvios sensíveis no curso da vida de muitas pessoas, levando-as a viver completamente fora dos propósitos de Deus… As pragas se cumprem. [1]
Algumas perguntas surgem nas nossas mentes: será que Deus castiga os filhos por causa dos pecados dos pais? Será Deus um agente arbitrário que castiga os filhos que não cometeram pecado no lugar dos pais, que são os verdadeiros culpados? Ou há algo que deve ser entendido devidamente nas passagens onde Deus fala sobre maldição hereditária?
São exatamente estas perguntas que nos propomos a responder dentro da única regra de fé e prática da Igreja: A BÍBLIA SAGRADA.
Exame das Passagens Que Falam Sobre Maldição Hereditária
Dentro da revelação bíblica, a primeira passagem onde ocorre um pronunciamento divino a respeito de castigar nos filhos os pecados dos pais é em Êxodo 20: 4-6, que diz exatamente assim:
“Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos”. Êxodo 20.4-6
Há algumas coisas que devem ser percebidas na passagem acima, as quais são muito elucidativas para o problema em questão.
Primeiramente, devemos notar que essa ameaça divina está dentro do contexto da entrega dos Dez Mandamentos. Deus estava entregando ao seu servo Moisés uma regra de vida para o seu povo escolhido. Percebamos que a advertência divina está logo após a declaração do segundo mandamento “não farás para ti imagem de escultura…”. logo em seguida o Senhor Deus Todo-poderoso dá a razão porque o povo de Israel não poderia fazer imagens:
“porque eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos”. Êxodo 20.5-6
Deve ser notado o uso da palavra “porque”, que indica a razão do segundo mandamento. De forma simples, a advertência divina de castigar nos filhos os pecados dos pais sempre está conectada com a possibilidade do pecado de idolatria.
Em segundo lugar, Deus diz que é Deus zeloso. A palavra “zeloso” quando usada a respeito de Deus descreve o amor que Deus tem pelo seu nome santo, um zelo que exige a devoção exclusiva de seu povo. Ela é usada quando essa reivindicação é ameaçada por falsos deuses (conferir Dt 6.15; Js 24.19). É por causa do zelo que tem pelo próprio nome que Deus adverte o povo de Israel contra o pecado da idolatria e faz a ameaça de castigar as gerações subseqüentes. João Calvino comenta essa passagem de forma interessante. Ele diz o seguinte:
“Ora é completamente estranho à equidade da justiça divina o castigar no inculpado o castigo do pecado alheio”. [2]
Ele continua dando a razão pela qual essa advertência seria efetivada:
“onde esta maldição pesou, que se pode esperar, senão que o pai de família, destituído do Espírito Santo de Deus, viva de forma abominável e o filho, de forma semelhante, abandonado pelo Senhor por causa da iniqüidade do pai, siga o mesmo caminho de perdição? Finalmente, o neto e o bisneto, a mesma semente de homens idólatras também se precipitem nos mesmos pecados”. [3]
No catecismo que escreveu para a Igreja de Genebra, Calvino afirma que essa imprecação se concretizaria em todos os descendentes que perpetuassem a iniqüidade de seus antepassados. Ele diz o seguinte:
É como se Deus dissesse que ele é o único a quem devemos nos apegar. Ele não pode tolerar a companhia de outro deus e irá demonstrar sua majestade e glória se alguém transferi-las a imagens ou qualquer outra coisa; e não somente uma única vez, mas nos pais, nos filhos e descendentes, ou seja, em todos enquanto sigam a iniqüidade de seus pais; assim também ele manifestará perpetuamente a sua misericórdia e bondade para com aqueles que o ama e guardam a sua lei. Ele declara a grandiosidade de sua misericórdia nisto, em que ele a estende até mil gerações enquanto designa apenas quatro gerações para sua vingança. [4]
Também é interessante a síntese do pensamento calviniano na obra de J. P. Willes:
Acrescenta-se que o Senhor é um Deus zeloso, para demonstrar que ele não tolerará rival algum, e sim vingará o insulto cometido contra a sua glória, se esta for transferida a criaturas ou imagens de escultura; e que essa vingança será visitada nos netos e bisnetos, visto que estes seguirão nos maus passos dos seus pais. [5]
De forma prática, a fim de que entendamos esta passagem de Êxodo, lembremos que desde os tempos mais antigos, os pais de família são os sacerdotes dos seus lares. Lembremos do caso de Jó, que oferecia sacrifícios continuamente pelos possíveis pecados de seus filhos (Jó 1. 5). Os pais sempre foram os responsáveis primários pela educação religiosa de seus filhos. No livro de Deuteronômio 6. 6, 7 encontramos esta verdade:
“Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te”. Deuteronômio 6.6-7
A família deve ser uma comunidade de ensino e aprendizado a respeito de Deus e da piedade cristã. As crianças devem ser ensinadas pelos seus pais a amarem ao Senhor de todo coração (Gn 18.18, 19; Dt 4.9; 11.18-21; Pv 22.6; Ef 6.4). Logicamente, os pais que falhassem nessa tarefa estariam contribuindo para que seus filhos permanecessem ignorantes a respeito da lei de Deus e, conseqüentemente, dariam abertura para que seus filhos se tornassem idólatras, pecassem contra o Senhor e fossem assim, severamente castigados pelo Deus santo e justo. Somente nesse sentido é que Deus castigaria nos filhos os pecados de seus pais. Reflitamos: nesse caso, qual o pecado dos pais? A resposta é a idolatria e o falso ensinamento para seus filhos. Qual o pecado dos filhos? A resposta é a idolatria aprendida dos pais e a passagem dos maus costumes para os netos de seus pais. Essa é a interpretação correta. Todas as outras passagens onde esta ameaça ocorre, ela está vinculada à possibilidade de pecado e rebeldia contra o Senhor Deus (conferir Isaías 44.15; Deuteronômio 4.24; Números 14.18, 33).
Mais especificamente, há uma outra passagem no Antigo Testamento que mostra que a responsabilidade pelo pecado é pessoal e individual. A passagem é Ezequiel 18.20:
“A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai, nem o pai, a iniqüidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a perversidade do perverso cairá sobre este”.
Esta passagem é muito esclarecedora, onde o próprio Deus afirma que cada um dará contas dos seus próprios pecados. Os filhos não têm culpa dos pecados de seus pais, nem os pais têm culpa dos pecados dos filhos. Mas isso desde que um deles tenha vivido de acordo com a vontade de Deus revelada na sua Palavra. No início do capítulo está escrito:
“Que tendes vós, vós que acerca da erra de Israel, proferis este provérbio, dizendo: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos é que se embotaram? Tão certo como eu vivo, diz o SENHOR Deus, jamais direis este provérbio em Israel. Eis que todas as almas são minhas; como a alma do pai, também a alma do filho é minha; a alma que pecar, essa morrerá ” (Ez 18.2-4).
Ezequiel está explicando que Deus responde de acordo com os atos de cada indivíduo e geração. Cada um é punido por seus próprios pecados. Recomendo que a Igreja leia para um melhor entendimento todo o capítulo 18 de Ezequiel, de forma mais específica, os versículos que se estendem de 10 a 18. Em suma, o pai não leva a culpa pelo pecado do filho, nem o filho leva a culpa pelo pecado de seu pai, desde que um deles tenha vivido uma vida santa, reta, dedicada ao serviço e adoração ao Deus verdadeiro.
Resposta à Uma Má Utilização de Uma Passagem do Novo Testamento Para dar Suporte ao Erro Aqui Combatido
Muitas pessoas enfatuadas, arrogantes e na verdade ignorantes a respeito da Palavra de Deus utilizam, de forma indevida uma passagem neotestamentária para apoiar sua falsa doutrina de maldição hereditária. A passagem é João 9.1, 2, que diz o seguinte:
“Caminhando Jesus, viu um homem cego de nascença. E os discípulos perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” João 9.1-2
A resposta de Jesus foi extraordinária:
“Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestassem nele as obras de Deus” João 9.3
Agora eu pergunto aos que afirmam que aqui há uma base para a maldição hereditária: onde esse texto dá apoio à essa doutrina satânica e perniciosa? A resposta é óbvia: EM NENHUM LUGAR! Quereis vós, que distorcem o cristalino ensino da Palavra inerrante de Deus basear os seus falsos ensinamentos apenas na pergunta dos discípulos? Pois bem, não percebem que esta pergunta foi taxada como errada pelo próprio Jesus? A resposta de Jesus Cristo mostra quão errada é esta noção, quão deturpada é a doutrina que ensina que os filhos são castigados pelos pecados dos seus pais. Na verdade, o propósito pelo qual aquele homem havia nascido cego era para que na vida dele as obras poderosas de Deus fossem manifestadas. Ele havia nascido cego para que a glória de Deus fosse manifestada através da cura realizada por Jesus Cristo, a fim de que a sua pregação a respeito do Reino de Deus fosse credenciada diante das pessoas que o ouviam. Esta passagem não ensina nada sobre maldição hereditária a não ser uma única coisa: que esta doutrina é errada!
CONCLUSÃO
Alguns de nossos sofrimentos, como os de Jó, são para a glória de Deus, pois ou resultam em nosso próprio aperfeiçoamento ou em cura espetacular, como no caso do cego de nascença. O propósito de Deus nem sempre é conhecido por nós, mas devemos como cristãos ter a firme convicção de que o seu propósito é bom (Romanos 8.28).
Diante da reflexão aqui empreendida, deve restar a certeza de que Deus trata cada um segundo as suas próprias obras. Digo isso não com relação à salvação, pois se assim fosse, ninguém seria beneficiário da salvação, em virtude da mesma ser única e exclusivamente pela graça soberana do Deus do Pacto; mas esta afirmação tem a ver com a imposição de castigos temporais. Deus disciplinas aos filhos que tanto ama.
Devemos rejeitar toa e qualquer doutrina que vá contra a Palavra de Deus. No caso, uma doutrina que afirme que Deus visita a iniqüidade dos pais nos filhos é uma falsa doutrina e deve ser rejeitada e condenada como herética. Sempre existiram pessoas dispostas a afirmar isso, mas ultimamente tal afirmação ganhou força com a Igreja Universal do Reino de Deus, a qual, nós bem sabemos que é uma instituição que ensina outro evangelho, não o de Cristo. A orientação bíblica é para que rejeitemos também os falsos mestres, que na linguagem do apóstolo João são nada mais nada menos do que “enganadores” (2 João 7).
Em suma, a autoridade para resolver qualquer dúvida a respeito de crença e prática da Igreja é a Escritura Sagrada. Ela é a Palavra inerrante do Deus Todo-poderoso. Ouçamo-la.
NOTAS:
1 – Jorge Linhares, Bênção e Maldição , 16.
2 – João Calvino, As Institutas ou Tratado da Religião Cristã , Livro I, cap. VIII, 19. p. 146.
3 – Ibid. p. 147.
4 – João Calvino, Instrução na Fé: Princípios Para A Vida Cristã , (Goiânia: Logos, 2003), 23.
5 – J. P. Willes, Ensino Sobre O Cristianismo , (São Paulo: PES, 2002), 177.
Autor: Alan Rennê Alexandrino Lima