“Que eu morra a morte dos justos , e seja o meu fim como o deles! – (Números 23.10)
O falso profeta Balaão saiu para amaldiçoar aquilo que Deus tinha abençoado.
Mas Deus revela suas maravilhas nos seus santos, por livrá-los disso, e por guardá-los de perigos, que eles sequer nunca imaginaram. Eles nunca pensaram que teriam um inimigo como Balaão. A igreja de Deus é uma glorioso ajuntamento. Enquanto eles se mantêm perto de Deus, seu estado é inexpugnável, como podemos ler neste relato do livro de Números.
Nem Balaque, príncipe dos midianitas, nem Balaão, que foi contratado para amaldiçoá-los, poderiam prevalecer, mas a maldição retornaria sobre as suas próprias cabeças.
As palavra do título do nosso texto foram proferidas por Balaão, e expressam o seu desejo.
E quanto às mesmas podemos dizer o seguinte:
Primeiro, que os homens justos morrem, e têm um fim, assim como os demais.
Segundo, que o estado da alma continua após a morte. Seria vão que ele desejasse ter “a morte dos justos”, caso a alma não subsistisse depois da morte.
Em terceiro lugar, que o estado dos homens justos em seu final é um estado abençoado, porque isto era o desejo de Balaão, “Que eu morra a morte dos justos, e seja o meu fim como o deles!”
Em quarto lugar, há um excelente estado do povo de Deus, e eles desejam isto: “Que eu morra a morte dos justos, e seja o meu fim como o deles!”
Cristo, em sua primeira vinda, não veio para redimir nossos corpos da morte física, mas as nossas almas da condenação. A sua segunda vinda será para redimir nossos corpos da corrupção para a “gloriosa liberdade” da ressurreição. Por conseguinte, tanto os sábios quanto os tolos morrem. Aqueles cujos olhos e mãos se levantaram a Deus em oração, e cujos pés os levavam para o santo lugar de culto e oração; bem como aqueles cujos olhos estão cheios de adultério, e cujas mãos estão cheias de sangue, morrem todos igualmente, de forma semelhante. Frequentemente isto é considerado o mesmo aos olhos do mundo.
A morte vem para o bem, e para o bem em sua maior glória, pois a concha deve ser quebrada antes que se possa chegar à pérola. Assim a morte nos prepara para uma vida abençoada depois que o corpo é deitado na sepultura, e a alma volta às mãos de Deus. E a morte agora dá um fim ao pecado, que deu causa à mesma, e isso nos faz conformados ao Filho de Deus, nosso irmão mais velho, que morreu por nós.
Então considerando que não passaremos muito tempo aqui neste mundo, devemos nos empenhar na obra que Deus tem colocado em nossas mãos com toda a diligência e fielmente, com todas as nossas forças.
Também, a certeza da morte deve nos levar a usar com moderação todas as coisas terrenas (I Cor 7.29).
Balaão não desejou a morte dos justos porque haja qualquer excelência na morte, mas porque ela será uma bênção para a continuidade da alma, apenas dos justos.
A Escritura, a razão e a natureza demonstram isso, que a alma tem uma subsistência de si mesma, distinta da vida que existe no corpo.
Há uma vida dupla, a própria da alma (espírito), e a vida do corpo. Agora, quando a vida do corpo se for, a vida da alma terá a vida no céu. E isto é um fato quanto ao homem total, porque Abraão era Abraão quando ele morreu, quando sua alma estava no céu, e seu corpo no túmulo.
Nossas almas estão projetadas por Deus para serem capazes de coisas sobrenaturais e excelentes.
Elas são capazes de receber graça e glória, de ter comunhão com Deus, de ter o abençoado carimbo da imagem de Deus. Vamos então usá-las para finalidade que Deus lhes deu. Nossas almas não merecem que as tratemos tão mal, como que as traindo, lançando-as no pó da terra, e pisando na coroa que seria reservada para elas.
O que pode manter o nosso corpo irrepreensível, sem ser corrompido, se a alma for tirada?
Vivendo de modo santo podemos ter a certeza de sermos mais do que abençoados ao término da nossa jornada terrena.
A morte, para aqueles que viveram aqui na justiça de Cristo significa o fim de todos os pecados do corpo e da alma. É o começo da mais plena felicidade.
Eles são felizes em sua morte, porque “a sua morte é preciosa aos olhos de Deus.” Os anjos estão prontos para lhes servir, para levar suas almas para o lugar de felicidade eterna. Eles são felizes em sua morte, porque eles estão no Senhor. Quando a morte separa a alma do corpo, não obstante, nem a alma, nem o corpo são cortados de Cristo. “Eles morrem no Senhor”; portanto, ainda são felizes.
E no céu, aguardarão a ressurreição do corpo.
Existem três graus de vida:
A vida no útero, neste mundo, e no céu. A vida no útero é uma espécie de prisão, onde a criança vive por um tempo. A vida neste mundo, é uma espécie de alargamento, mas, ai de mim! Esta vida sempre será inferior à vida bendita e gloriosa no céu, a par de todos os doces confortos do mundo.
Os homens santos são abençoados e felizes, não somente antes da morte, no direito e título que eles têm para o céu, mas na morte, porque então eles são investidos na posse daquilo que os torna felizes em todos os sentidos. Portanto, isto pode nos ensinar que são verdadeiramente sábios.
Um homem sábio é aquele que tem um final melhor do que os demais, e que trabalha para esse fim. Um verdadeiro cristão tem um final melhor do que qualquer pessoa comum. Seu fim é estar seguro em outro mundo, e ele trabalha e emprega todas suas forças para este objetivo. “Que meu fim seja como o deles”, diz Balaão, insinuando que há um melhor final no que diz respeito à condição que ele havia considerado.
O objetivo de um homem santo não é o de ter a sua felicidade aqui na Terra, mas seu fim é provar a comunhão eterna com Deus no céu.
O mundano não tem tal fim. Ele tem um desejo natural de ser salvo, como veremos depois, mas não pode saber qual é o seu fim, pois ele não trabalha para isto. Ele nunca está satisfeito em vagar por este mundo, ele nunca está cansado de acumular ou procurar riquezas, ele nunca está satisfeito com o prazer, porque o seu objetivo está focada nas coisas desta vida, e elas não têm a capacidade de encher a alma de plenitude e satisfação, porque ela não pode ser enriquecida com as coisas que são terrenas, senão somente com as que são celestiais.
Como este tesouro celestial se encontra totalmente escondido na pessoa de Cristo, então devemos nos empenhar muito para sermos justos, e trabalhar para Cristo, e para que a justiça de Cristo seja nossa, e não vivermos pelo ego, mas deixar que Cristo viva em nós, nos instruindo e capacitando a viver esta vida rica e preciosa do céu.
Cristo se tornou da parte de Deus para nós a nossa justiça. Cristo é a nossa justiça aqui neste mundo e continuará sendo depois da nossa morte, e no dia do julgamento.
Como diz o apóstolo, “não tendo justiça própria”, Fp 3.9.
Fazendo assim teremos o mesmo fim que está reservado para todos os justos, na sua morte, pois é vivendo como um justo que se pode ter a morte de um justo, coisa da qual Balaão estava excluído porque não viveu como um justo aqui neste mundo.
Ele tinha apenas uma complacência e prazer em pensar na coisa desejada, mas nenhum desejo de trabalhar para este fim. Era um desejo de um fim sem os meios adequados. Assim foi um fraco desejo passageiro.
Onde existem os verdadeiros desejos, eles não são apenas constantes, como também nos levam a atender às condições necessárias para realizá-los.
O desejo de ser como um justo deve, portanto, nos levar a trabalhar com constância em tudo o que seja verdadeiro e justo e buscarmos pela justiça de Cristo, que é a única justiça permanente e inviolável.
Além disso, um verdadeiro desejo nos levará a remover tudo o que possa impedir a sua concretização, no caso da justiça do cristão, o grande impedimento é o pecado que deve ser perdoado para que sejamos justificados e para recebermos poder do Espírito para nos despojarmos dele progressivamente.
Quando o anjo apareceu a Balaão, com a sua espada desembainhada, para parar o seu caminho, não obstante ele estava tão entusiasmado com a cobiça, e tão cego, que nem o milagre do jumento que lhe repreendeu, nem o do anjo em seu caminho, nem mesmo Deus no caminho, poderia detê-lo. Ai! onde estava então esse desejo? Na glória das coisas terrenas, que ele receberia pelo espólio do povo de Deus. Portanto, vemos que ele agiu contra todos os meios que foram utilizados para detê-lo em sua jornada.
Se um homem desejar ser bom e justo, e desejar deixar os seus pecados, ele não vai lutar contra os meios.
E muitos desses meios são pessoas e circunstâncias que Deus levanta para nos alertar quanto ao nosso mau caminhar, e então, somos gratos a Deus por isso, porque serão os instrumentos que nos despertarão para o nosso arrependimento.
E portanto, não agiremos como Balaão que não atendeu à repreensão do anjo e não se desviou do mau caminho do seu coração.
E ainda, os verdadeiros desejos da graça crescem. Embora sejam pequenos no começo, como as fontes, no entanto, assim como as águas que vêm a partir delas, eles crescem mais e mais, até o ponto de termos um desejo de uma perfeita união e comunhão com Deus no céu. Os desejos de uma alma abençoada nunca serão satisfeitos plenamente enquanto não tiverem chegado ao céu.
Assim, até que um cristão seja perfeito no corpo e na alma, ele terá desejo sobre de
sejo até que todos sejam realizados.
O apóstolo Pedro diz: “desejai ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação,” (I Pe 2.2).
Se os desejos pela graça forem fortes eles se tornarão mais fortes ainda. Eles crescem mais fortes e não ficarão satisfeitos com qualquer coisa deste mundo, mas removerão todos os impedimentos que se interponham na conquista de maiores graus de graça na comunhão com Deus.
Os desejos de um cristão crescem, e nunca estão satisfeitos até que ele tenha a felicidade perfeita e plena no céu.
Os desejos, eu confesso, são a melhor evidência para se conhecer um cristão; porque as obras podem ser hipócritas, mas os desejos são naturais. Portanto, devemos considerar nossos desejos, o que eles são, verdadeiros ou não, pois a primeira coisa que interessa à alma são desejos e pensamentos. Pensamentos despertam desejos.
Esta agitação interna imediata da alma descobre a verdade da alma melhor do que as coisas exteriores. Vamos, portanto, examinar frequentemente os nossos desejos.
Se desejamos santidade e a restauração da imagem de Deus, a nova criatura, e ter vitória contra nossas corrupções; estejamos num estado em que não possamos pecar contra Deus, para ter o Espírito, para ser regenerado e renovado.
Balaão desejou a felicidade eterna, mas ele não desejava a imagem de Deus sobre a sua alma, pois então ele não teria agido como um diabo avarento por toda a sua vida, até ser morto pela espada dos israelitas segundo o mandado de Deus.
O ímpio não pode desejar estar no céu com um desejo correto, porque como devemos desejar estar no céu?
Para sermos libertos do pecado, para que possamos louvar a Deus e amar a Deus, para que não possa haver qualquer luta entre a carne e o Espírito. O ímpio deseja isso? Não. Sua felicidade consiste em desfrutar de prazeres sensuais na carne que está em permanente estado de inimizade contra Deus.
Para que possamos ter desejos santos necessitamos de revelação.
Os desejos se seguem à descoberta, os desejos são o respiro da alma sobre a descoberta de uma excelência na qual ele crê. Portanto, vamos implorar a Deus por espírito de revelação, para descobrir a excelente condição que pode ser atingida pelo seu povo.
E porque isto é concedido através da utilização dos meios da graça, vamos nos apresentar com toda a diligência em tais meios, os quais são a oração, a meditação na Palavra, a prática das boas obras, o estar na companhia dos santos, e especialmente entre aqueles que são melhores em graça do que nós, porque isto pode provocar em nós desejos por maior santidade.
Podemos portanto conhecer a nossa condição espiritual pelo exame dos nossos desejos: se eles nos inclinam e elevam para as coisas celestiais e divinas ou se nos puxam para baixo, para as coisas que fazem provisão para a carne.
Pedro se refere ao “desejos que lutam contra as nossas almas” (I Pe 2.11).
Estes desejos são nossos inimigos mortais porque nos alijarão da vida do céu por toda a eternidade, se por causa deles não nos convertermos a Cristo, e podem também matar o crescimento da vida da graça que habita naqueles que são de Cristo.
Em breve “o céu e a terra passarão” (Mat 24.35), e o mundo com a sua concupiscência (desejos e paixões) passarão juntamente. Viveremos então na baixeza, inconstância e incerteza das coisas que nossas almas desejam, sabendo que isto será a causa da sua destruição e ruína?
Devemos portanto aprender como mortificar essas paixões terrenas, para que possamos ganhar as nossas almas na nossa perseverança nisto.
Alimentemos portanto nossas almas, continuamente, com melhores pensamentos. Façamos isto desde a mais tenra idade para que as cobiças e maus desejos não se instalem e se enraízem na alma, dificultando em muito o trabalho da sua remoção na época da maturidade.
Havendo ao contrário, bons pensamentos e desejos enraizados na alma, isto será um forte suporte para prevenir uma presente e futura entrada de pensamentos e desejos maus.
A constância deste exercício espiritual formará o hábito da santidade que nos levará a cumprir nossos deveres com alegria, amor a Deus e à Sua Palavra, e de modo voluntário.
NOTA: Este texto é uma releitura feita pelo Pr Silvio Dutra, com a tradução do original em inglês de um sermão, em domínio público, de autoria de Richard Sibbes.
De Sibbes é dito que tinha o céu estampado em sua face, e que antes de ter ido para o céu ele trouxe o céu à terra em sua própria vida. Assim, ao fazer esta releitura estamos procurando dar honra a quem é devido honra segundo a norma bíblica.