Existem certas narrativas bíblicas que me fazem pensar num Deus alegre e “brincalhão”. Narrativas estas que devem fazer Deus dar “boas risadas” com o incômodo que elas provocam nos homens por ocasião do afrontamento dos seus paradigmas e preconceitos.
Por isso é preciso que entendamos que a literatura bíblica, tendo a sua narrativa atrelada ao contexto cultural da época em que foi escrita apresenta, por vezes vocabulário limitado, cujas palavras não conseguem retratar a intensidade e plenitude dos acontecimentos ali contidos.
Creio que a história de Débora, Juízes 4.4-5.32, tipifica bem essa situação. Embora tivesse todas as características de uma “pastora”, o texto não a apresenta como tal, e sim como juíza e profetisa (aliás, diga-se de passagem, com a noção de juiz e profeta, só e Samuel). Isto se explica por dois fatores principais:
* A idéia de “pastorado” quando aplicado à condução de pessoas, só tomou forma na época de Ezequiel e Jeremias, passando ao homem uma noção até então atrelada à Pessoa de Iavé, Gênesis 49.24; Salmos 23.1. Dessa forma extingue-se a possibilidade de o escritor, na época em que o livro foi escrito, referenciá-la como tal.
* A palavra mais próxima do vocábulo “pastor” no Antigo Testamento, tendo em vista as atribuições e funções que exerce era “sacerdote”. Só que esta ocupação na época de Débora estava em descrédito, em virtude da falta de preparo, espiritualidade e seriedade dos sacerdotes de então.
Afinal de contas, por que não pastoras?
Nesse período havia um descaso e banalização do sacerdócio (exemplificado por Mica, Juízes 17-18, tão grande que praticamente não dava para conceber a idéia da existência de uma pessoa que falasse e oficiasse em nome de Deus e fosse conhecida como sacerdote. Ser sacerdote era sinônimo de estar com o “filme queimado”, de pessoa sem palavra e sem caráter. Para falar de Débora, o escritor precisava usar uma terminologia que, ao mesmo tempo, fosse conhecida e não provocasse uma distorção da imagem que queria retratar. Daí as palavras juíza e profeta, Juízes.
O texto porém conta a vida de Débora que, conquanto tenha sido qualificada como juíza e profeta, realmente agiu como “pastora”.
Senão vejamos: diante de um povo em sofrimento por causa da opressão externa, Juízes 4.3, ela certamente, falando em nome do Senhor como profetisa (a profecia é uma característica fundamental na vida de um pastor) teve também a sensibilidade e o discernimento para ouvir a voz do Senhor e a sua convocação para reviravolta, Juízes 4.6; como alguém que conhecia o seu rebanho, sabia exatamente quem convocar para liderar o povo nessa empreitada, Juízes 4.6; como líder, e cheia de fé no cumprimento da Palavra divina, soube encorajar Baraque para que assumisse tal tarefa, Juízes 4.6,7.; como exemplo que era e diante da insegurança do mesmo Baraque, acompanhou a expedição, Juízes 4.9; na integridade que possuía, “abriu o jogo” e sinceramente revelou de antemão para Baraque que a glória da vitória não caberia a ele, em decorrência da sua insegurança e incredulidade, Juízes 4.9; na sua humildade elevou um cântico ao Senhor pela vitória conquistada, Juízes 5.1-4,13; na sua sabedoria, conduziu o povo que por quarenta anos esteve em sossego e em paz, Juízes 5.32; no referencial de vida e fé que era, contaminou Israel de uma forma que só após esse período é que o povo voltou a pecar contra o Senhor, Juízes 6.1.
Quem não sonha com um pastor que transmita a mensagem de Deus, caráter profético, que tenha uma palavra de alento oriunda do Alto para o seu coração sofrido por esse sistema desumanizante nos quais estamos inseridos? Quem não quer um pastor sensível à voz do Senhor com discernimento, qualidade ímpar de um juiz, para ministrar à vida das pessoas e da igreja com visão do micro e do macrocosmo? O que não pensar do pastor que, além de tudo, seja humilde, dependente do Pai, líder capaz (não só para conduzir, mas também para incentivar), sincero e com uma integridade que inspire a todas as suas ovelhas? E se esse “sonho de pastor”, com todas essas qualidades fosse do sexo feminino? Por que não a acolheríamos como pastora?
E o que não dizer de Débora? Será que nós aceitaríamos hoje como profetisa e juíza, isto é, como pastora? Será que teríamos coragem de perder uma pessoa com esse potencial em nome de um paradigma que não acredita na existência de pastores (as) desse nível? Para aqueles que ainda teimam em alimentar esses sonhos inversos, o Livro de Juízes revela uma “pastora” que, com todas as falhas que deveria possuir enquanto pessoa, nos legou um exemplo de vida, ministério e condução do rebanho num momento complicado da história de Israel. Penso que exemplos como o de Débora estão contidos na Bíblia para nos mostrar que, sendo as diferenças e os preconceitos do homem criações do pecado, e não de Deus, Gênesis 1.27; Mateus 19.8, faz-se necessária uma criteriosa reavaliação de alguns conceitos, como a questão do critério “sexo” para o exercício do ministério pastoral. Precisamos de uma vez por todas entender que o ministério na ótica do Senhor está calcado em valores sublimes, em uma conduta ética aprovada. De fato, não daria para entender a grandiosidade de um Deus, assim qualificado na Sua Palavra, que vinculasse o ministério pastoral à sexualidade de seus filhos.
AFINAL DE CONTAS, POR QUE NÃO PASTORAS?
Autor: Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek
Bacharel em Teologia e Mestrado em Filosofia
Fonte: Texto extraído da revista Mulher Cristã