O Evangelho desta manhã fala-nos do primeiro milagre de nosso Senhor Jesus Cristo.
Não deixa de ser estranho que o Evangelho de João, que conta apenas sete milagres do Senhor, dê tanta atenção a este milagre que, à primeira vista, parece ter até muito pouco valor. Faltava vinho num casamento e Jesus fê-lo aparecer, transformando em vinho a água destinada às lavagens religiosas. Uma pessoa, como eu, por exemplo, que bebe um copo de vinho às refeições mas se for preciso passa bem sem vinho, pode mesmo dizer: “É pena que Jesus tenha usado o seu dom divino, tão precioso, para fazer um milagre tão pouco útil”.
Outros lamentarão mesmo que se leia e comente este milagre, pois pode dar boa consciência aos alcoólicos, e nós sabemos que um dos maiores problemas que temos em Portugal é o alcoolismo.
1. Uma história, dois sentidos
Mas há um ponto que não podemos ignorar: é que no Evangelho de João as histórias contadas têm sempre dois sentidos. O primeiro é o dos factos em si. Neste caso, houve mesmo um casamento e Jesus, sua Mãe e seus apóstolos estavam lá, como convidados. Nesse casamento Jesus fez a transformação da água em vinho. Estes são os factos simples e em si mesmo de pouco valor. Se Jesus tivesse vindo à terra apenas para fazer destes prodígios não lucraríamos muito com isso.
Mas há também nas narrativas de João um segundo sentido. É o sentido secreto, espiritual, se assim o quisermos chamar. E esse é infinitamente mais importante.
Alguém disse que o Evangelho de João é como um ananás. É um fruto com uma aparência interessante, embora estranha. Mas o importante não é a parte de fora. É preciso tirar-lhe a casca e depois então é que descobrimos um fruto de sabor delicioso.
Lembremo-nos que na Bíblia o casamento humano serve várias vezes para ilustrar a relação que há entre Deus e o Seu povo. O livro “Cântico dos Cânticos” é um poema muito belo sobre o amor de um homem e uma mulher, mas foi colocado na Bíblia como livro canónico porque ele, esse amor, é também uma parábola sobre o amor de Deus por Israel, a sua amada, e do amor que Deus quer receber da sua amada. Há muitas passagens do Antigo Testamento que nos falam de Deus como o marido de Israel, mas citarei apenas um texto, muito poético de Ezequiel. Diz Deus: Passando por ti, vi-te, e eis que o teu tempo era de amores: e estendi sobre ti a auréola do meu manto, e cobri a tua nudez; e dei-te juramento, e entrei em concerto contigo, diz o Senhor Jeová, e tu ficaste sendo minha. Ezequiel 16:8.
Deus quer que Israel – e o mesmo podemos dizer da Nova Israel, que é a Igreja – quer que o Seu povo viva numa perfeita união e fidelidade com Ele, como idealmente uma esposa vive unida ao seu marido. Se quisermos dizer isto em termos individuais, diremos: Deus quer que vivas a tua vida, que eu viva a minha vida, num relacionamento de comunhão e fidelidade a Ele, nessa unidade feliz que um casamento puro deve ser. A religião que Deus quer que tenhamos, ou melhor: a vida que Deus quer que tenhamos, se for vivida nessa união com Ele, será uma religião, será uma vida, de alegria.
2. A palavra-chave
A palavra-chave de uma vida de autêntica união com Deus é a alegria. E a alegria, na Bíblia, sabeis como é representada? É pelo vinho!
A Bíblia não propõe, obviamente, o alcoolismo – antes pelo contrário! – mas é um facto fácil de constatar é que se há alguma coisa que possa servir bem para ilustrar a alegria é o vinho. Quando estamos a comer com um amigo e esse amigo começa a beber mais do que seria aconselhável, o sintoma que logo percebemos é que os olhos dele começam a brilhar muito. E o que é que acontece quando uma pessoa recebe uma notícia que lhe dá muita felicidade? Os olhos começam a brilhar muito também, não é? Há dias vi uma pequenita de seis anos a saltar muito feliz por qualquer motivo. Cambaleava e quase caía, na verdade como se tivesse bebido vinho! Até dizemos: “Aquela rapariga está embriaga de felicidade!”
A esta luz já podemos perceber o que é que a mãe de Jesus quer dizer nesta passagem quando, olhando para aquele banquete, disse ao filho:…. Não têm vinho João 2:3.
A simples observação constata que falta alegria neste estilo de vida que os homens criaram, afastados de Deus.
Directamente, esta história denuncia a religião judaica, tal como Jesus a encontrou nos seus dias. Era um casamento em que não havia alegria, não havia vinho. Naqueles dias e naquele país vinícola não havia forma mais grave de retratar o Judaísmo que dizer dele que era como um casamento em que não houvesse vinho.
3.Um fardo pesado
O Judaísmo daqueles dias era uma religião de rituais, de leis e mais leis. Um fardo pesado, como o Senhor o designou por várias vezes. Uma religião que os homens cumpriam como um carregador que leva sobre nos seus ombros um fardo pesado, que o esmaga.
Os judeus viviam oprimidos com a ideia do pecado. Tudo era pecado e os rabinos e todos os chefes religiosos pareciam apostados em tornar as coisas cada vez mais complicadas. Inventavam ritos e regras para explorarem os sentimentos de culpabilidade das pessoas. As lavagens de purificação são disso um exemplo. Purificavam continuamente as mãos, as louças, as roupas, a sua cama, a sua casa. Não lhe chamavam água – benta, mas havia água – benta por todos os lados…
Quando lemos esta passagem com atenção não podemos deixar de ficar admirados com a quantidade de talhas que estavam naquela casa e a quantidade de água que elas levavam. Água para as purificações, não para beber. Se fosse para beber, vá que não vá, mas para purificação, é muita água. Seiscentos litros de água que foram depois transformados em seiscentos litros do melhor vinho.
É muita água, sim. Mas é como nós exageramos quando dizemos : “Há séculos que estou à tua espera!” Foi meia hora, mas para quem tem pressa pareceu séculos. Do que João está a falar é da imensidade de regras, de leis, de prescrições, de rituais no meio dos quais o povo judeu se afogava.
Mas não falemos dos judeus antigos porque são passado. Nem falemos dos actuais. Falemos de nós, cristãos, e do modo como estamos a viver a nossa relação com Deus. Não é ela também, para muitos, um fardo pesado? Não há tantos para quem há também a opressão do pecado, o sentimento de que acabam por nunca agradar a Deus? Não será a vida de muitos homens e mulheres do nosso tempo também um casamento onde falta o vinho? Ou seja, onde falta a alegria? Essa agonia em que viveu o frade Martinho Lutero, que o levava a desesperar e a perguntar-se o que deveria fazer para encontrar a paz espiritual, não é ainda hoje o drama de muitas vidas? Ou então não há tantas vidas que vivem de um modo insípido, de que a água das talhas é bom símbolo? Não há vidas humanas que estão a ser vividas como se fossem um casamento sem vinho?
Conclusão
Mas como sair dessa situação?
É preciso convidar Jesus para a nossa vida, como aquela família o convidou para o casamento. Mas não basta dizer-lhe: “Entra, Senhor. A partir de agora tu estás em minha casa”. No livro de Apocalipse, Jesus diz: Eis que estou á porta e bato: se alguém ouve a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei e ele comigo. Apocalipse 3:20. Ele entra se lhe abrirmos a porta, mas há mais a fazer, e é Maria quem dá o conselho fundamental. Sua mãe disse aos serventes: Fazei tudo o que ele vos mandar. João 2:5. É preciso aceitar aquilo que ele diz, que ele manda fazer, que ele promete.
Há uma história engraçada, com que vou terminar, e que ilustra bem porque é que muitos são membros de igrejas e não sentem aquela alegria que a história de Caná promete. Era um homem que ia por uma estrada fora com um fardo às costas. Ia muito cansado, a ofegar por causa do peso do fardo e pela marcha. Nisto parou uma carrinha junto dele e o motorista perguntou pela vidraça: “O senhor vai para a cidade? Quer uma boleia?” O caminhante rejubilou: “Oh, sim, senhor. Agradeço muito!”. Como não havia lugar ao lado do motorista este disse ao caminhante para entrar pela porta de trás. O homem entrou, fechou a porta e sentou-se feliz num caixote que ali estava. Uns quilómetros depois, o motorista pelo espelho viu que o homem a quem dava boleia ainda estava com o fardo às costas e disse-lhe: “Ó senhor, ponha o fardo no chão, não vá carregado!”. Mas o homem respondeu: “Ora, já basta o favor que faz de me levar a mim, quanto mais levar também o meu fardo!”
Nós rimos deste homem. Mas quantos levam ainda sobre eles o fardo da religião e dos pecados em lugar de o deixar nas mãos de Jesus, que disse: Vinde a mim, vós todos que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Mateus 11:28!
Irmãos e irmãs, entreguemos tudo na nossa vida a Cristo. Amén.
Manuel Pedro Cardoso Pastor Presbiteriano