E a lei não provém de fé (Gál 3.12,13). Indubitavelmente, a lei não conflita com a fé; do contrário, Deus seria inconsistente consigo mesmo. Mas devemos sempre volver-nos para o fato de que a linguagem de Paulo é adaptada a essas circunstâncias particulares. A contradição entre a lei e a fé está na causa da justificação. E mais fácil o leitor unir fogo e água do que conciliar as duas afirmações, ou seja: que os homens são justificados pela fé e pela lei. A lei não provém de fé, ou seja, a lei possui um método de justificar uma pessoa que é completamente estranho à fé.
Aquele que os pratica por eles viverá. A diferença está no fato de que, quando alguém cumpre a lei, ele é declarado justo por uma justiça legal. O apóstolo prova isso citando Moisés. Ora, qual é a justiça da fé? Ele a definiu em Romanos 10.9: “Se cremos que Cristo morreu por nossos pecados etc.”
E no entanto não se segue que a fé é ociosa ou que os crentes estejam isentos de boas obras. Pois a presente questão não é se os crentes devem cumprir a lei até onde o podem (o que é fora de toda dúvida), mas se obtêm justiça por praticar boas obras; tal coisa é impossível. Além do mais, caso alguém objete: “Visto que Deus promete vida aos praticantes da lei, por que Paulo nega que os mesmos são justos?” A resposta não é difícil. Ninguém é justo por meio das obras da lei, porque não existe alguém que as realize [perfeitamente]. Admitimos que os praticantes da lei, se porventura houvesse um, seriam justos. Mas, visto que há uma conformidade condicional, todos estão excluídos da vida, porque ninguém oferece a justiça que deve. Devemos ter em mente o que eu já disse, ou seja, que praticar a lei não é obedecê-la em parte, mas cumprir tudo o que pertence à justiça. E de tal perfeição todos estão longe demais.
Cristo nos redimiu. O apóstolo fez todos os que se encontram debaixo da lei sujeitos à maldição. Daí a grande dificuldade que os judeus encontravam em não poder livrar-se da maldição da lei. Ele soluciona a dificuldade apresentando o remédio. E isso confirma ainda mais o seu propósito. Pois se somos salvos em razão de termos sido isentados da maldição da lei, então a justiça não pode ser procedente da lei. Em seguida ele adiciona o modo como somos libertados.
Está escrito: maldito todo aquele que for pendurado em madeiro. Cristo foi pendurado. Com toda certeza, porém, ele não sofreu tal castigo por sua própria culpa. Segue-se, pois, ou que ele foi crucificado em vão, ou que a nossa maldição foi lançada sobre ele para que pudéssemos ficar livres dela. Ora, o apóstolo não diz que Cristo era maldito, porém algo mais, a saber: que ele se fez maldição, significando que a maldição de todos nós foi lançada sobre ele. Se isso parecer abrupto a alguém, que o tal também se envergonhe da cruz de Cristo, em cuja confissão nos gloriamos. Deus não ignorava o tipo de morte que seu Filho morreria, quando pronunciou: “Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro.”
Mas, como é possível, objetaria alguém, que o Bem-Amado Filho fosse amaldiçoado por seu Pai? Minha resposta é que há duas coisas que devem ser consideradas, não só na pessoa de Cristo, mas até mesmo em sua natureza humana. Uma, é que ele era o imaculado Cordeiro de Deus, cheio de bênção e de graça. A outra, é que ele assumiu o nosso lugar, e assim se tornou um pecador e sujeito à maldição, não em si mesmo, mas em nós; todavia, de tal maneira que lhe era indispensável agir em nosso nome. Ele não podia estar fora da graça de Deus, e no entanto suportou sua ira. Pois como poderia ele reconciliar-nos consigo se considerasse o Pai um inimigo e fosse odiado por ele? Portanto, a vontade do Pai sempre repousou sobre ele. Além disso, como poderia ele ter-nos livrado da ira de Deus se não a houvesse transferido para si próprio? Portanto, ele foi atingido por nossos pecados, e conheceu a Deus como um Juiz irado e inexorável. Eis a loucura da cruz e o espanto dos anjos, a qual não só excede, mas também traga toda a sabedoria do mundo.
Texto de João Calvino, traduzido por Silvio Dutra.
Nota do Pr Silvio Dutra: Sempre que a salvação da alma for por nós considerada, esta deve ser vista à luz da necessária compensação que foi feita em nosso favor por Jesus Cristo, para satisfazer a justiça divina.
Há na nossa salvação um alto e elevado preço que foi pago para que pudéssemos ser justificados. E isto foi feito para que honrássemos o pagamento desta dívida com a nossa obediência voluntária a Jesus e aos Seus mandamentos.
Erramos portanto, quando usamos a verdade, como muitos costumam fazer, de que de fato a salvação é sem o concurso de nossas obras, mas para justificar um comportamento desordenado e impiedoso, que não dê a devida consideração à vontade de Deus e a tudo o que se encontra relacionado à nossa salvação. Estes costumam alegar: “Afinal todos somos pecadores. Não há quem não erre. Portanto concluo que Deus há de me salvar como a qualquer outro pecador, independente daquilo em que eu creia ou que eu faça.” ERRADO. Quem assim pensa é porque nunca fora salvo realmente. Não experimentou o poder transformador da graça de Jesus Cristo que nos leva a odiar o pecado e a amar a santidade.