“Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer.” (Lc 17:10).
Este é o veredicto da auto-humilhação dado de coração pelos servos que haviam laboriosamente cumprido completamente o seu dever diário.
Este é o propósito da parábola proferida pelo Senhor Jesus para repreender todas as noções de auto-importância e mérito humano.
Quando um servo tem lavrado ou apascentado o rebanho, seu senhor não lhe diz: “Sente-se e eu vou esperar por você, porque eu estou profundamente em débito contigo.” Não, seu senhor lhe pede para preparar a refeição da noite e esperar por ele. Seus serviços são devidos e, assim, o seu senhor não o elogia como se ele fosse uma maravilha ou um herói. Ele só está fazendo o seu dever se ele persevera desde a luz da manhã até o por do sol, e nem por isso espera ter seu trabalho realizado para ser admirado ou recompensado com pagamento extra e humildes agradecimentos. Nem devemos nos orgulhar de nossos serviços, mas confessar que somos servos inúteis.
Quando eu estive muito doente no sul da França e profundamente deprimido em espírito, que eu mal sabia como conviver com uma daquelas pessoas maliciosas que comumente assombram todos os homens públicos e, especialmente, ministros, me enviaram anonimamente uma carta aberta dirigida a “Esse servo inútil, C.H. Spurgeon”.
Esta carta continha folhetos dirigidos pelos inimigos do Senhor Jesus, com passagens marcadas e sublinhadas – com notas aplicativas a mim. Quantos Rabsaqués* existem, nestes dias, que têm escrito a mim! Normalmente eu os leio com a paciência. Eu não procuro por isenção de julgamento a partir desta contrariedade, nem costumo sentir que seja difícil de suportar, mas na hora em que meu espírito estava deprimido e eu estava com uma dor terrível, esta carta injuriosa me feriu rapidamente. Virei-me na minha cama e me perguntei – eu sou, então, um servo inútil? Eu sofria muito e não podia levantar a minha cabeça ou encontrar descanso.
Revi minha vida e vi suas fraquezas e imperfeições, mas não sabia como colocar meu caso até que este texto de Lucas 17.10 veio para meu alívio e respondeu como um veredicto ao meu coração ferido. Eu disse a mim mesmo: “Eu espero que eu não seja um servo inútil, no sentido em que esta pessoa tem a intenção de me chamar assim, mas eu sou seguramente isto em outro sentido.” Eu me lancei ao meu Senhor e Mestre, mais uma vez com um senso mais profundo do significado do texto do que eu tinha antes – Seu sacrifício expiatório me reviveu e em humilde fé eu encontrei descanso. A propósito, eu me pergunto se qualquer ser humano deveria encontrar prazer na tentativa de infligir dor àqueles que estão doentes e deprimidos, mas ainda existem pessoas que se deleitam em fazê-lo. Certamente, se não há espíritos malignos abaixo, há alguns lá em cima e os servos do Senhor Jesus receberão as provas dolorosas da sua atividade!
Nosso texto é para nos repreender se pensamos que fizemos o suficiente, que suportamos a fadiga e o calor do dia por um longo tempo. Se concluirmos que temos realizado um bom e útil trabalho e que devemos ser convidados para ir para casa para descansar, o texto nos repreende. Se sentimos uma cobiça incomum por conforto e desejo que o Senhor nos dê alguma recompensa presente e marcante para o que temos feito, o texto nos envergonha. Isto é próprio de um espírito orgulhoso, inservível, e deve ser abatido com uma mão firme.
Em primeiro lugar, de que forma podemos ser úteis para Deus? Elifaz disse muito bem: “Porventura, será o homem de algum proveito a Deus? Antes, o sábio é só útil a si mesmo. Ou tem o Todo-Poderoso interesse em que sejas justo ou algum lucro em que faças perfeitos os teus caminhos?”, Jó 22.2-3. Se temos dado a Deus de nossa substância, é Ele nosso devedor? De que forma é que se enriquece Aquele a quem pertence toda a prata e todo o ouro? Se nós colocamos as nossas vidas com a devoção dos mártires e missionários por causa dele, o que é isto para Ele, cuja Glória enche os céus e a terra? Como podemos sonhar em colocar o Eterno em dívida conosco? Como pode um homem colocar no seu Criador uma obrigação para com ele? Que não cometamos tal blasfêmia!
Queridos irmãos e irmãs, devemos lembrar que qualquer serviço que temos sido capazes de prestar tem sido uma questão de dívida. Espero que nossa moralidade não tenha caído tão baixo que nos leve a dar o crédito a nós mesmos para o pagamento de nossas dívidas! Eu não acho os homens no mundo dos negócios orgulhando-se e dizendo: “Eu paguei mil libras esta manhã para o fulano!” “Bem, você deu isto a ele?” “Oh, não, era tudo devido a ele!” É isto alguma grande coisa? Já chegamos a um estado de tão baixa moral espiritual que pensamos que temos feito um grande negócio quando damos a Deus o que lhe é devido? “É Ele que nos fez, e não nós a nós mesmos.” Jesus Cristo nos resgatou, “não nós mesmos”, pois somos “comprados por preço”.
Também entramos em aliança com Ele e nos entregamos a Ele voluntariamente. Não fomos batizados em seu nome e na sua morte? O que quer que possamos fazer é apenas o que Ele tem o direito de reclamar de nossas mãos por causa da nossa criação, redenção e professada entrega a ele. Quando temos perseverado no árduo trabalho de arar até que nenhum campo seja deixado sem ser arado, quando fizermos o agradável trabalho de alimentar as ovelhas e quando tivermos terminado, preparando a mesa de comunhão para o nosso Senhor – quando tivermos feito tudo que deveríamos ter feito – fizemos nada além do nosso dever! Por que se gloriar, então, ou chorar por uma recompensa, ou buscar um agradecimento?
Muito acima de tudo isto, há a triste reflexão de que, infelizmente, em tudo o que fizemos, temos sido inúteis por sermos imperfeitos.
Quanto a mim, sou obrigado a dizer com verdade solene que eu não estou contente com qualquer coisa que eu já tenha feito. O que quer que a Graça tem feito por mim eu reconheço com profunda gratidão, mas conquanto não tenha feito nada de mim mesmo, peço perdão por isso. Peço a Deus que perdoe minhas orações, pois elas estavam cheias de culpa. Rogo a Ele para perdoar até esta confissão, pois não é tão simples como deveria ser. Peço-lhe para lavar minhas lágrimas e limpar minhas devoções e batizar-me num verdadeiro sepultamento com meu Salvador para que eu possa esquecer completamente de mim e somente me lembrar dele. Ah, Senhor, Tu sabes o quanto estamos aquém da humildade que devemos sentir. Perdoe-nos esta coisa. Somos, todos nós, servos inúteis, e se o Senhor fosse nos julgar pela Lei, certamente deveríamos ser lançados fora.
Uma vez mais, não podemos nos congratular afinal, mesmo que tenhamos tido sucesso na obra de nosso Senhor, pois por tudo o que temos feito estamos em débito com a graça abundante do Senhor. Se tivéssemos feito todo o nosso dever, não poderíamos ter feito coisa alguma, se Sua Graça não nos permitisse fazê-lo! Se o nosso zelo não conhece pausa, é Ele que mantém o fogo aceso! Se as nossas lágrimas são de arrependimento, é Ele que atinge a rocha e busca as águas a partir dela! Se há alguma virtude, se há algum louvor, se há fé, se há qualquer fervor, se há alguma semelhança com Cristo, somos feitura dele, criados para Ele e, portanto, não devemos dar a nós mesmos, a mínima partícula de louvor!
O que lhe damos vem de ti mesmo, grande Deus! Portanto, os melhores de nós são ainda servos inúteis! Se tivermos um motivo especial para arrependimento por causa de algum erro evidente, devemos ser sábios e nos apresentarmos ao Senhor com um espírito humilde e confessar a culpa e, então, continuar a fazer o trabalho de cada dia com um espírito laborioso e esperançoso. Sempre que você estiver angustiado por não conseguir fazer o que deveria; sempre que perceber a imperfeição de seu próprio serviço e se condenar por isso, a melhor coisa é fazer algo mais na força do Senhor. Se você não tiver servido Jesus bem até agora, vá e faça melhor!
Se você cometer um erro, não diga a todo mundo e não diga que nunca irá tentar novamente, mas faça duas coisas boas para compensar a falha. Diga: “Meu amado Senhor e Mestre não deve ter mais um perdedor em mim. Eu não vou me preocupar tanto sobre o passado como alterar o presente e despertar para o futuro.” Irmãos e irmãs, tentem ser mais úteis e peçam mais Graça. O negócio do servo não é esconder-se num canto do campo e chorar, mas sair para arar. Você não deve balir com as ovelhas, mas alimentá-las e assim provar o seu amor a Jesus. Você não deve ficar na cabeceira da mesa e dizer: “Eu não aprontarei a mesa para o meu Mestre, assim como eu poderia ter desejado.” Não! Vá e prepare melhor!
Tenha coragem, você não está servindo um mestre severo e, embora você se chame muito adequadamente de servo inútil, tenha bom ânimo, porque um veredicto mais suave deve ser pronunciado sobre você antes do tempo. Você não é o seu próprio juiz, seja para o bem ou mal, outro juiz está à porta e quando Ele vier, Ele vai pensar melhor de você do que a sua auto-humilhação permite que você pense de si mesmo. Ele vai te julgar pela regra da Graça e não pela Lei e Ele porá um fim em tudo o que procede de um espírito legalista e que paira sobre você com asas de vampiro.
* emissário da Síria para intimidar com palavras o povo judeu nos dias do rei Ezequias.
Extraído de um texto de Charles Haddon Spurgeon, em domínio público, traduzido e adaptado pelo Pr Silvio Dutra. (2ª parte do sermão de nº 1541)