“E entraram a rogar-lhe que se retirasse da terra deles.” (Mc 5.17)
O texto de Marcos 5.1-20 faz parte de um conjunto de textos selecionados e redigido por marcos com o propósito de enfatizar o poder e autoridade de Jesus.
O capítulo 4.35-21 traz o relata do episódio onde Jesus acalma uma tempestade. Aqui Marcos ressalta a autoridade de Jesus sobre os elementos da natureza: vento e ondas do mar.
O capítulo 5.25-34 traz o relato da cura de uma mulher que há doze anos sofria de uma hemorragia. Aqui Marcos enfatiza a autoridade de Jesus sobre as doenças.
O capítulo 5.35-43 traz o relato da ressurreição da filha de Jairo, um dos chefes da sinagoga. Aqui Marcos ressalta a autoridade de Jesus sobre a morte.
O texto base desta reflexão (Mc 5.1-20) traz o relato da libertação de um homem atormentado por uma legião de demônios. Com isso Marcos enfatiza a autoridade de Jesus sobre os demônios e o império de Satanás.
Mesmo sendo este o principal objetivo do texto (enfatizar e revelar a autoridade de Jesus sobre os demônios) gostaria que refletíssemos acerca do que está registrado nos versículos 15 – 17.
Vejamos primeiramente a reação dos habitantes de Gerasa diante do glorioso milagre realizado por Jesus.
v.15 – Ao verem o que fora endemoninhado, liberto, eles temeram.
v.16, 17 – Ao ouvirem o relato do que acontecera ao endemoninhado e do que ocorrera aos porcos, pediram que Jesus se retirasse da terra deles.
Ou seja, os gerasenos passaram a ver Jesus como uma “persona non grata”. Ao ouvirem o relato do que ocorrera, a presença de Jesus naquela cidade passou a ser vista pelos gerasenos como uma presença indesejável. Mas, por que a presença de Jesus passou a ser considera uma presença indesejável?
Vamos atualizar essa pergunta fazendo uma mudança no tempo verbal e nos personagens. O que pode nos levar a considerar a presença de Jesus em nossas vidas como uma presença indesejável?
Em primeiro lugar, costumamos considerar a presença de Jesus em nossas vidas como uma presença indesejável….
1. Quando ele confronta a nossa inversão de valores. (v. 16,17)
Há quem diga que os gerasenos ficaram aterrorizados com o que aconteceu aos porcos por interpretarem o ocorrido como juízo divino, temendo que mais juízos caíssem sobre eles. Por esta razão, pediram que Jesus se retirasse.
Por serem gentios, e diferentemente dos judeus, os gerasenos criavam porcos para alimento e comercialização. Observamos no v.13 que a manada que se precipitara era cerca de 2.000 porcos.
Ao ouvirem o que acontecera ao homem e aos porcos, os gerasenos, se depararam com um enorme prejuízo financeiro. Daí, eles passaram a ver Jesus como uma ameaça à sua economia. Então, temendo mais prejuízos financeiros, os gerasenos solicitaram que Jesus se retirasse da sua terra.
Isso mostra que, para os gerasenos, porcos valiam mais que seres humanos, coisas valiam mais que gente, estabilidade financeira era mais importante que a dignidade humana.
Aquele homem possuído por espíritos malignos perdera toda a sua dignidade humana. Impelido pelos demônios ele trocara o aconchego de um lar por uma vivência entre sepulcros; tornara-se tão agressivo que passou a ser tratado como uma fera selvagem e indomável (muitas vezes fora preso com grilhões e cadeias); feria o seu próprio corpo com pedras mostrando completa perda de amor próprio.
Após o encontro com Jesus, aquele homem fora encontrado e visto pelos gerasenos “assentado, vestido e em perfeito juízo”. Ele teve a sua dignidade humana restaurada. Porém, mesmo diante desse glorioso fato, os gerasenos não permitiram que Jesus permanecesse entre eles. Por quê?
Porque para eles, porcos, coisas e recursos financeiros valiam mais que gente, portadora da imagem e semelhança de Deus. Ou seja, a presença de Jesus passou a ser considerada uma presença indesejável porque com a sua atitude Ele confrontou a inversão de valores do gerasenos.
Será que conhece algo parecido em nossa história recente?
– George Bush, ex-presidente dos EUA, homem de confissão de fé “evangélica”, se autodenominava agente de Deus para combater o mal. Através de suas decisões como chefe de Estado, mostrou que para ele “petróleo vale mais que gente”. Vale mais que a morte de americanos e iraquianos.
Jesus foi odiado durante sua vida por confrontar inversões de valores. Diante de uma religiosidade que valorizava o externo, os atos e atitudes visíveis, ele disse que a verdadeira religião é profunda, parte do coração e se mede pelas intenções e motivações interiores. Diante de uma sociedade que entendia que grandeza é ser servido por outros, ele declarou que a verdadeira grandeza se mostra na prestação de serviços aos outros.
Por estas e outras coisas, Jesus era tido como “persona non grata”; sua presença era considerada presença indesejável.
Em nossas vidas e em nosso meio, o Cristo venerado e adorado por católicos e por crentes torna-se “persona non grata”, presença indesejável quando mediante a sua palavra e através de seus pregadores Ele confronta a nossa inversão de valores; quando Ele chama de ruim aquilo que nos achamos que está bom; quando exige que removamos aquilo que insistimos em preservar; quando exige mudanças em atitudes que nós achamos naturais e normais; quando chama de libertinagem aquilo que nós temos a mais profunda certeza que é a liberdade de Cristo.
Portanto, Jesus se torna presença indesejável quando ele resolve confrontar a nossa inversão de valores.
Mas, em segundo lugar, costumamos considerar a presença de Jesus em nossas vidas, como presença indesejável…
2. Quando ele resolve tocar, mexer com os nossos “demônios” de estimação.
A descrição feita pelos evangelistas acerca daquele homem passa uma imagem aterrorizante de sua pessoa: um homem violento, uma fera indomável, um desequilibrado mental (gritando pelos sepulcros e pelos montes); um homem que provocava medo e terror nas pessoas que transitavam naquela área; um homem que causava um desconforto à família e à sociedade.
Jesus transformou aquela imagem aterrorizante e desconfortável numa imagem sóbria, equilibrada e não mais ameaçadora: “Indo ter com Jesus, viram endemoninhado, o que tivera a legião, assentado, vestido, em perfeito juízo; e temeram.” (v.15).
Mesmo diante de tal imagem, os gerasenos deixaram de ver o milagre e concentraram-se no prejuízo econômico causado por Jesus. Ao pedirem que Jesus se retirasse da terra deles, deixaram claro que preferiam conviver com um homem endemoninhado e seus demônios do que terem perdido porcos.
A impressão que temos é que os gerasenos estavam tão acostumados com seu endemoninhado que a sua imagem já não era tão aterrorizante assim. Eles estavam tão acostumados com o seu endemoninhado que parece até que os seus gritos contínuos e incessantes haviam-se tornado música agradável aos ouvidos.
Ao pedirem que Jesus se retirasse eles estavam dizendo: Jesus, você mexeu onde não deveria ter mexido! Nós estávamos muito bem em nossa terra com os nossos porcos e o nosso endemoninhado. Nós não queremos você aqui porque você mexeu com os nossos “bichinhos” de estimação, com os nossos porcos e o nosso endemoninhado.
À semelhança do que ocorrera em Gerasa, a presença de Jesus em nossas vidas hoje, torna-se presença indesejável quando ele resolve mexer com os nossos “bichinhos”, com os nossos “demônios” de estimação.
Nossos “bichinhos”, nossos “demônios” de estimação são aqueles aspectos negativos e áreas tenebrosas das nossas vidas que não permitimos, não queremos, nem aceitamos que ninguém mexa. São aquelas deficiências ou deformidades de caráter com as quais já nos acostumamos; com as quais mantemos uma convivência amigável e não aceitamos que ninguém toque. Nossos “bichinhos” ou “demônios” de estimação podem ser também aqueles pecados cristalizados em nossas vidas que, com o passar dos anos, tornaram-se objeto de decoração e nós já não mais os encaramos como tão feios ou tão ruins assim.
É quando Jesus resolve mexer nessas áreas obscuras das nossas vidas; tocar naqueles aspectos que consideramos intocáveis, que passamos a considerá-lo como presença indesejável.
É quando Ele confronta a nossa supervalorização do ter, a maneira indigna com que tratamos os nossos semelhantes, a nossa insubmissão aos pais e aos nossos lideres, os nossos vícios, a nossa ingratidão,… é quando ele mexe com esses nossos “bichinhos” de estimação que passamos a vê-lo como “persona non grata”.
No entanto, ao contrário dos gerasenos, precisamos entender que o Senhor não nos confronta tão somente por confrontar; não inflama a ferida tão somente para vê-la inflamada. O seu propósito é nos restaurar, nos restabelecer, nos aperfeiçoar, nos recuperar; é nos ver aos seus pés assentados, vestidos e em perfeito juízo. Seu propósito é nos ver bem.
Para concluir chamo a atenção para os versículos 18, 19. Nestes versículos, o homem que fora liberto de uma legião de demônios suplica a Jesus que o deixasse ir com Ele. Para surpresa nossa, Jesus não o permite. Ao invés disso, confia-lhe a missão de anunciar o que Deus fizera por Ele.
Este drama relatado aqui pode ser facilmente interpretado como uma falta de sensibilidade da parte de Jesus. Talvez, hoje, diríamos pra Jesus: isso não é coisa que se faça! Este homem é um recém-convertido; acabara de entrar de entrar num processo de reabilitação ao convívio familiar e social; ele não dispõe de estrutura suficiente para suportar as pressões de uma sociedade hostil; diante de tamanha súplica de um menino na fé, o Senhor deveria tê-lo atendido. Sinceramente, Jesus, o senhor agiu com falta de sensibilidade.
Na verdade, essa atitude de Jesus não foi produto de um coração insensível, mas foi fruto de um coração apaixonado e preocupado até mesmo com aqueles que o rejeitara.
Se aquele homem fosse com Jesus, os gerasenos ficariam sem nenhum testemunho dos seus feitos poderosos. Por isso, ao invés de levá-lo, Ele disse: “Vai para tua casa, para os teus. Anuncia-lhes tudo o que o Senhor te fez e como teve compaixão de ti”. (v.19b).
Mesmo tendo sido rejeitado, Jesus mostrara compaixão para com os gerasenos deixando entre eles um missionário, um testemunho vivo de sua pessoa.
Jesus tornou presença indesejável para os gerasenos porque confrontou a sua inversão de valores e mexeu com os seus “bichinhos” ou “demônios” de estimação.
O nosso grande desafio é reagirmos, não como os gerasenos, mas, sim, como os samaritanos, que mesmo tendo Jesus confrontado a vida de pecado de uma mulher do seu convívio social, \”pediam-lhe que permanecesse com eles\” (Jo 4.40). Confronte o que confrontar, mexa no que mexer, a presença de Jesus precisa ser para nós presença desejável.
Pr. Paulo César Nunes do Nascimento