Imaginemos um debate sobre os limites da liberdade humana em um auditório lotado. De um lado os deterministas insistem que a cultura, a genética e as forças econômicas não deixam ninguém ser livre. À esquerda, os existencialistas balançam a cabeça repetindo chavões sartreanos e dizendo que não existe essência humana. No centro, os teólogos agostinianos, dedo em riste, negam o livre arbítrio. No fundo, alguns niilistas gritam que humanidade só pode ser construída com mulheres e homens donos de seu destino. Aí, no meio desse bate-boca, um suicida se levanta, põe o cano de um revólver na boca e puxa o gatilho.
Naquele instante em que o maluco escolhesse acabar com a própria vida, alguns debatedores, perplexos, apenas se olhariam sem saber o que dizer.
De olhos esbugalhados, deixariam algumas perguntas sem resposta. O acontecido foi “escrito e determinado” por Deus quando o sujeito ainda era tecido no ventre de sua mãe? Deus teria predestinado aquela morte na eternidade passada? Havia outra mão cobrindo a que executou o gesto, ajudando ou, pior, empurrando o suicida para o abismo final? Quais forças sociais, genéticas ou instintivas o levaram ao tresloucado ato?
Camus estava certo. O suicídio é o nó górdio da teologia e da filosofia. Ele é o mais radical e mais completo exemplo do livre arbítrio, da não interferência divina nas escolhas individuais e, repetindo Sartre, de “estarmos condenados à liberdade”.
Se para Aristóteles, mulheres e homens se diferenciam dos animais por serem racionais, se para Descartes os humanos são mais excelentes por terem sentimentos, foi Rousseau quem fez da liberdade o componente determinante da humanidade que, na expressão que ele gostava de usar, também pode ser chamado de “perfectibilidade”.
Isso mesmo. Somos livres porque dispomos dessa capacidade de nos aperfeiçoar, ou nos destruir, ao longo da vida.
Somente os humanos conseguem se libertar dos instintos naturais para construírem a história como um projeto em aberto.
Um cachorro que carinhosamente lambe a mão do seu dono não age por virtude, aquele gesto acontece sem que ele tenha qualquer noção de que poderia “preferir” mordê-lo. Contudo, quando um torturador arranca as unhas de um preso ou quando um marido espanca sua companheira, ele poderia, sim, “preferir” o contrário. Caso tivesse sido programado para agir, o crime seria inimputável, da mesma forma que um pit-bull que destroça uma criança não pode ser levado a um tribunal.
Liberdade significa agir sem ser empurrado, coagido, manipulado; uma ação só possui virtude ou perversidade se, na hora da escolha, também houver a possibilidade de se optar pelo seu oposto.
Teologicamente é possível afirmar que liberdade foi a maior dádiva que os humanos receberam de Deus. Com a liberdade, vem embutida a noção de que os humanos agem com virtude ou com vício. Existem fatos, eventos, designios, que não são coercitivos ou irresistíveis.
E mais, Deus só escolheu criar o mundo assim porque o propósito último da criação é o amor. Deus não criou por qualquer carência, ele não optou rodear-se de pessoas que pensam, criam, sentem e decidem porque obedecesse a alguém ou a alguma lei, ele criou na mais formidável de todas as gratuidades.
Ao criar seres com o objetivo relacional, Deus se expôs ao que jamais experimentaria caso nunca tivesse criado: dor e frustração. A liberdade humana é o limite (também o preço) que Deus se auto-impôs para concretizar seu amor nas mulheres e nos homens.
Esta fragilidade do amor divino pode ser bem compreendida tanto na história do profeta Oséias como na Parábola do Filho Pródigo. Nos dois exemplos, os amantes se vêem numa situação embaraçosa pelas opções tanto da mulher como do filho. Na parábola, o filho mais novo partiu e o pai nada pôde fazer a não ser esperar. Já o profeta foi obrigado a engolir seco a desdita de ter se casado com uma mulher leviana, que se prostituia com qualquer um. Mas como ele a amava, só lhe restava perdoar, esperando que a decisão de voltar fosse dela.
A liberdade humana também pode ser bem entendida se compararmos Deus a um imperador. Suponhamos que esse rei possuísse um harém com muitas mulheres, podendo dispor de qualquer uma. Contudo, imaginemos que um dia ele se apaixone por uma Sulamita.
Caso desejasse, bastaria uma ordem para ela ser trazida como objeto de prazer sexual. Mas esse monarca não deseja que seja assim, pois quer amá-la de verdade. Ele precisa conquistar seu coração para também ser dela. Assim, ao buscar amar, por mais poderoso e majestoso que seja, sua paixão o deixa vulnerável e indefeso.
Deus quer cativar seus filhos para querer bem e ser deles, eis a razão porque ele jamais forçaria que alguém o escolhesse – forçar e amar não combinam.
Para que dizer que Deus é frágil? Simplesmente porque ao insistir na fragilidade divina, entende-se melhor o seu amor; aprende-se a abrir mão da onipotência idólatra, para abraçar o Pai de Jesus Cristo. Falar da fragilidade divina significa buscar entender a força mais maravilhosa do universo que é o Agápe.
Não consigo acreditar numa divindade que tudo ordena, que tudo dispõe e que tudo orquestra. Realmente, eu não saberia amar um Deus que planejou, determinou e ajudou meu amigo Gustavo a se suicidar. Eu não conseguiria amar um Deus que, para promover sua própria glória, intencionou coisas horrendas como Aushwitz, Ruanda e Iraque. Não,
Deus não guia a bala perdida que mata crianças nas favelas.
Não creio que ele tenha uma “vontade permissiva” que deixa que horrores se alastrarem para subrepiticiamente cumprir uma “vontade soberana”. Não o percebo com começo, meio e fim da história prontos; ou que no presente esteja contente em administrar cada nano evento preordenado em sua providência.
Por isso, prefiro crer na fragilidade de um Deus que é amor. Prefiro aceitar que o mal não fez parte de seu projeto inicial e que Deus sofreu, e ainda sofre, com a morte de inocentes, com a injustiça econômica global e com as guerras mais estúpidas.
Não acho certo que confundam Jesus de Nazaré com o deus frio e distante dos gregos e dos deterministas, eis porque escrevo sobre sua fragilidade.
Soli Deo Gloria.
Autor: Pastor Ricardo Gondim