(Nota Introdutória: Quando lemos esta tradução e adaptação feitas pelo Pr Silvio Dutra, de um texto de William Bates, em domínio público, podemos entender quanto o verdadeiro evangelho exposto nas Escrituras, tem sido obscurecido e desviado do seu principal significado em nossos dias presentes, especialmente por influência do consumismo desenfreado e da busca de prosperidade material ao custo da negligência das necessidades do espírito, que têm moldado uma mentalidade que vislumbra prioritariamente as coisas temporais e não o reino de Deus e a sua justiça.
Não é surpreendente portanto que a própria igreja cristã, esteja, em grande parte, aprisionada pelos ditames da mídia secular, quando cristãos se empenham na mesma busca daquelas os gentios procuram, e fazem da fé para alcançar objetivos o grande alvo da pregação do evangelho.
Daí decorrem os ensinos focados em prosperidade material, ministração de psicologia aplicada, e tantos outros, em substituição ao puro evangelho de Cristo, em muitas igrejas ditas cristãs.
Não são poucos os cristãos que não possuem um conhecimento adequado do que seja o evangelho, ou a sã doutrina bíblica, e que têm feito uma aplicação do conteúdo das promessas de salvação pela fé em Cristo, pelo perdão dos nossos pecados, pela fé nele, a um mero diagnóstico e busca de soluções para problemas temporais, relativos à esfera financeira, sentimental, emocional, e a outros interesses diferentes daquilo para o que a fé foi designada, conforme o dizer do apóstolo: “obtendo o fim da vossa fé: a salvação da vossa alma.” (I Pe 1.9).
Seguramente, a produção das Escrituras e o envio do Filho de Deus a este mundo para salvar pecadores, não consistiu na elaboração de um manual de auto-ajuda para descobrirmos um meio de tirar o melhor desta vida que temos aqui neste mundo.
Temos assim nas sábias palavras de William Bates, um resumo daquilo que é o evangelho verdadeiro, tal e qual ele foi planejado e revelado por Deus na pessoa e obra de nosso Jesus Cristo.)
O Perdão de Pecados
“Mas contigo está o perdão, para que sejas temido.” (Salmo 130.4)
O salmista, no primeiro e segundo versos, se dirige a Deus com os desejos sinceros de suas misericórdias salvíficas: “Das profundezas clamo a ti, Senhor. Escuta, Senhor, a minha voz; estejam abertos os teus ouvidos às minhas súplicas.”
Ele humildemente deplora a severa inquirição da justiça divina; “Se observares, Senhor, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá?” (verso 3). Se Deus observasse nossos pecados com um olho preciso, e nos chamasse para um ajuste de contas, quem poderia estar de pé em juízo? Quem poderia suportar esta prova de fogo? Os melhores santos, embora nunca sejam tão inocentes e irrepreensíveis aos olhos dos homens, embora nunca sejam tão vigilantes e atentos sobre seus corações e caminhos, não estão isentos dos pontos de fragilidade humana, que de acordo com o rigor da lei, iria expô-los a uma sentença condenatória.
Ele encontra alívio se apoiando sob esta apreensão temível com as esperanças de misericórdia: “Mas contigo está o perdão, para que sejas temido.” É o teu poder e a tua vontade, perdoar os pecadores arrependidos que retornam, “para que sejas temido”. O temor de Deus nas Escrituras significa a santa reverência humilde a ele, como nosso Pai celestial e Soberano, que nos faz cautelosos para que não o ofendamos, e tenhamos cuidado em agradá-lo. Por isso, o temor de Deus é abrangente em todas as religiões, “o dever de todo homem”, para o qual isto é uma introdução, e é o principal ingrediente da mesma. A compaixão e a misericórdia de Deus é a causa de um temor filial, misturado com amor e compromisso dos homens. Outros atributos, sua Santidade que emoldurou a lei, a justiça que ordenou o castigo do pecado, o poder que o inflige, torna sua majestade terrível, e causa uma fuga dele como um inimigo. Se tudo deve perecer por seus pecados, nenhuma oração ou louvor os levará ao céu, toda a adoração religiosa cessará para sempre, mas sua terna misericórdia prontamente recebe os humildes suplicantes, e os restaura em seu favor, e isto nos leva a amá-lo e admirá-lo, e também nos conduz para perto dele.
Há duas proposições a serem considerados no versículo do nosso texto:
I. Que o perdão pertence a Deus.
II. Que o perdão misericordioso de Deus é um poderoso motivo de adoração e obediência a ele.
Quanto à primeira proposição é necessário considerar,
1. O que está contido no perdão.
2. Os argumentos que demonstram que o perdão pertence a Deus.
1. O que está contido no perdão.
Isto supõe necessariamente pecado, e o pecado supõe uma lei que é violada por ele: a lei implica um legislador soberano, a cuja vontade declarada a sujeição é devida, e que exigirá uma prestação de contas no julgamento da obediência ou desobediência dos homens à sua lei, e que atribuirá recompensas e punições conforme for o caso.
Deus pelos mais claros títulos “é o nosso rei, nosso legislador e juiz”; porque ele é nosso criador e preservador, e conseqüentemente possui uma plena propriedade de nós, e autoridade absoluta sobre nós; e por sua soberana e singular perfeição está qualificado para nos governar. Um ser criado está necessariamente em um estado de dependência e sujeição. Todas as espécies de criaturas do mundo são ordenadas por seu Criador; seus “reino domina sobre tudo.”
Criaturas meramente instintivas são conduzidas pelos impulsos da natureza para suas ações, e não por terem qualquer luz para distinguir entre o bem e o mal moral, elas não têm escolha, e são incapazes de receber a lei, mas criaturas inteligentes são dotadas de faculdades judiciosas e livres, e têm entendimento para discernir entre o bem e o mal moral, e para escolher ou rejeitar o que lhes é proposto, e são capazes de ter uma lei para dirigir e regular a sua liberdade.
Para o homem, a lei foi dada pelo Criador, (a cópia de sua sabedoria e vontade) a qual possui todas as perfeições de uma regra. Ela é clara e completa, ordenando o que é essencialmente bom, e proibindo o que é essencialmente mau. Deus governa o homem em conformidade com a sua natureza, e nenhum serviço é agradável a ele, senão o quer for o resultado da nossa razão e escolha, a obediência dos nossos supremos poderes principais.
Desde a queda no pecado, a luz do entendimento comparada com a descoberta da gloriosa condição que havia em nosso estado original, ou é como o crepúsculo da noite, quando cai um véu escuro sobre o mundo, ou como a alva da manhã, quando o sol nascente começa a dispersar a escuridão da noite. Eu acho que esta última comparação é mais justa e regular; pois é dito que o Filho de Deus “ilumina todo homem que vem ao mundo.” A luz inata descobre que há uma linha reta da verdade para regular o nosso julgamento, e uma linha reta de virtude para regular nossas ações.
A consciência natural é um princípio de autoridade, dirigindo-nos a escolher e a praticar a virtude, e para evitar o vício. É pouco provável que qualquer um seja tão prodigiosamente ímpio, que não esteja convencido da retidão natural que há em todas as coisas criadas: eles podem distinguir entre o que é justo e o que é fraudulento nas relações, e reconhecem no geral, e no julgamento de outros, a equidade das coisas, embora se iludam com a força da convicção na sua aplicação para si mesmos. Agora, já que a razão comum descobre que há uma regra comum, deve haver um juiz comum perante o qual os homens são responsáveis pelo desvio ou conformidade de suas ações a essa regra. A lei de Deus é revelada em sua pureza e perfeição na Escritura.
A lei obriga primeiro à obediência, e na sua negligência, à punição. O pecado é definido pelo apóstolo João como sendo “a transgressão da lei.” A omissão daquilo que é ordenado, ou fazer o que é proibido, é pecado. Não somente as cobiças que irrompem em ações e evidências, mas inclinações interiores, contrárias à lei, são pecado. Daqui resulta uma culpa sobre cada pecador, que inclui a imputação da culpa e a obrigação de punição. Há uma conexão natural entre o mal da ação, e o mal do sofrimento: a violação da lei é justamente vingada pela punição da pessoa que a quebra. É uma imaginação impossível, que Deus deveria dar uma lei não executada com uma sanção. Isso seria lançar uma mancha sobre a sua sabedoria, pois a lei tornaria nula a si mesma, e derrotaria os fins pelos quais fora dada; seria imputar uma alta desonra à sua santa majestade, como se fosse indiferente com relação à virtude ou ao vício, e desconsideração da nossa irreverência ou rebelião contra a sua autoridade.
O apóstolo declara que “todo o mundo tornou-se culpado diante de Deus,” o que torna imputável os seus crimes e sujeito ao julgamento de Deus. O ato do pecado é transitório, e o prazer desaparece, mas a culpa, se não perdoada e purgada, permanece para sempre nos registros da consciência. “O pecado de Judá está escrito com um ponteiro de ferro e com a ponta de diamante, está esculpido nas tábuas do coração.” Quando os livros da vida eterna e da morte forem abertos no último dia, todos os pecados não perdoados dos homens, com suas agravantes mortais, serão registrados por escrito em caracteres indeléveis, e serão colocados em ordem diante de seus olhos, para a sua confusão: “o justo Juiz jurou que ele não esquecerá nenhuma das suas obras.” De acordo com o número e a atrocidade de seus pecados, a sentença deve passar sobre eles: não haverá desculpas que possam suspender o juízo, nem mitigar a execução imediata do mesmo.
O perdão dos pecados contém a abolição de sua culpa e a liberdade da destruição consequente merecida por eles. Isto é expressado por vários termos na Escritura. O perdão se relaciona com algum dano e ofensa nos quais a parte ofendida pode severamente reivindicar o seu direito. Agora, embora o bendito Deus, falando estritamente, não possa receber qualquer dano por criaturas rebeldes, sendo infinitamente superior à impressão do mal, ainda que, como diz o nosso Salvador de alguém que olha para uma mulher com desejo impuro, que cometeu adultério com ela em seu coração, embora a inocência da mulher seja imaculada, de modo que os pecados dos homens, sendo atos de ingratidão contra a sua bondade, e notória injustiça contra a sua autoridade, são em um certo sentido prejudiciais a ele, e assim pode exercer justamente vingança sobre eles, mas a sua misericórdia os poupa.
O “não imputar o pecado” é apagado das contas dos servidores com seus mestres, e implica a conta que somos obrigados a saldar com o supremo Senhor por todos os benefícios dos quais temos tão miseravelmente abusado. Ele pode justamente exigir de nós os dez mil talentos que lhes são devidos, mas ele, graciosa e prazerosamente risca a nossa dívida em seu livro, e livremente nos desobriga da dívida que temos para com ele. A “purificação do pecado”, implica que ele é muito odioso e ofensivo aos olhos de Deus, e tem uma relação especial com os sacrifícios expiatórios, dos quais se diz, que “sem sangue não há remissão.” Isso era típico do precioso sangue do Filho de Deus que purifica a consciência “de obras mortas”; da culpa do pecado mortal que crava a consciência do pecador. Através da aplicação do seu sangue a culpa carmesim é lavada, e o pecador perdoado é aceito como alguém puro e inocente.
2. Vou demonstrar a seguir, que o perdão pertence a Deus. Isso será evidente pelas seguintes considerações.
1. É a elevada e peculiar prerrogativa de Deus perdoar o pecado. Sua autoridade fez a lei, e dá vida e vigor a ela, portanto, ele pode remir a punição do ofensor. Isto é evidente a partir da proporção das leis humanas, pois, embora os juízes subordinados tenham apenas um poder limitado, e devam absolver ou condenar de acordo com a lei, contudo, o juiz soberano pode revogar suas decisões. Isto é declarado nas Escrituras pelo próprio Deus: “Eu, eu sou aquele, que apago as tuas transgressões por amor do meu nome”, Isa 43. Ele repete isto com ênfase. Ele é proclamado com este título real, “o Senhor clemente e misericordioso, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado.” É uma dispensação da soberania divina perdoar o culpado.
Isto é verdade – o perdão a Deus como um pai, de acordo com a promessa graciosa: “poupá-los-ei como um homem poupa a seu filho que o serve.”, Malaquias 3.17, mas isto é feito com a dignidade da sua soberania. Nosso Salvador nos dirige, na perfeita forma de oração ensinada aos seus discípulos a orarem a Deus para o perdão dos nossos pecados, como “nosso Pai que está no céu” em um trono elevad, de onde ele pronuncia o nosso perdão. Sua majestade é gloriosa com sua misericórdia nessa bendita dispensação. Sua supremacia real é mais visível no exercício da misericórdia para com os pecadores arrependidos, do que em atos de juízos sobre criminosos obstinados.
Como um rei é mais um rei por perdoar os suplicantes humildes pela operação de seu cetro, do que subjugar os rebeldes pelo poder da espada; porque nos atos de graça, ele está acima da lei, e anula o seu rigor, e nos atos de vingança ele somente está acima dos seus inimigos.
É prerrogativa peculiar de Deus perdoar o pecado. O profeta reputa todas as divindades criadas pelos pagãos como defeituosas quanto a este poder real: “Quem é Deus semelhante a ti, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado?”, Miqueias 7. O que os fariseus disseram é verdade, “Quem pode perdoar pecados senão Deus?”. Porque isto é uma prerrogativa de um imperador absoluto, como somente Deus o é. O poder judicial para o perdão é uma flor inseparável da coroa, porque está fundado numa superioridade à lei, portanto, incompatível com uma autoridade subordinada.
A criatura é assim incapaz, e está muito longe de ter a supremacia de Deus para perdoar o pecado, bem como da Sua onipotência para criar o mundo, porque ambos são verdadeiramente infinitos. Além disso, o poder de perdoar pecados, implica necessariamente um conhecimento universal das mentes e dos corações dos homens, que são as fontes de suas ações, e conforme a inclinação deles para o bem ou para o mal moral aumenta. Quanto mais deliberada e intencionalmente um pecado é cometido, o pecador incorre numa maior culpa, e requer uma punição mais pesada. Agora, nenhuma criatura pode mergulhar no coração dos homens: “eles estão nus e abertos ao olhar penetrante de Deus.” Adicione ainda mais isto: o poder de autoridade para perdoar, tem, necessariamente anexada, a potência ativa de dispensar recompensas e punições. Agora, somente o Filho de Deus “tem as chaves da vida e da morte em suas mãos.”
Pode ser objetado que o nosso Salvador declara que “o Filho do Homem tem poder para perdoar pecados.” A resposta para isso ficará clara ao se considerar que há duas naturezas em Cristo, a natureza divina, que originalmente pertence a ele, e é própria à sua pessoa; e a natureza humana, que é como se fosse adotiva, e foi assumida voluntariamente. Agora, a pessoa divina é o único princípio e sujeito desta dignidade real, mas o perdão é exercido em sua conjunção com a natureza humana, e atribuído ao Filho do homem, com base na humilhação de Cristo, os princípios de seus sofrimentos, e os sofrimentos reais, que existem somente na natureza humana, mas por conta da união pessoal eles são atribuídos à pessoa divina, pos se diz: “o Senhor da glória foi crucificado”, e “o sangue de Deus” resgatou sua igreja.
A igreja de Roma, com alta presunção, arroga para seus sacerdotes um poder judicial de perdoar os pecados, e pela fácil insensatez e ingenuidade das pessoas, e o engano de seus instrutores, exerce uma jurisdição sobre a consciência. Para evitar a imputação de blasfêmia, eles afirmam que há um duplo poder de perdoar, um supremo e outro subordinado, o primeiro pertence a Deus, e o outro é delegado por comissão para os ministros do evangelho. Mas isso é uma contradição irreconciliável: o poder de perdoar é uno e flui de supremacia, e é incomunicável ao homem. Um príncipe que investe uma outra pessoa com um poder absoluto para perdoar, deve renunciar à sua soberania.
Nenhum homem tem recebido portanto, poder supremo de Deus para pronunciar e dispensar perdão, porque não têm nenhuma autoridade judicial, pois não é presumível que o Deus sábio invista homens com uma autoridade que eles são absolutamente incapazes de exercer.
(A concessão ou retenção de pecados que nosso Senhor atribuiu a toda a igreja, tem em vista tão somente a aplicação da disciplina para a recepção ou afastamento da comunhão dos santos, pelo arrependimento demonstrado, no primeiro caso, e pela obstinação por permanecer no pecado, para o segundo. (Mateus 18; João 20.23).
Evidentemente, está excluída disto a capacidade para absolvição do erro e para a remoção da culpa, até mesmo porque, não há quem não seja pecador aos olhos de Deus, e que não necessite também de ser perdoado por ele.
Isto é evidente para qualquer um que tenha o Espírito Santo habitando nele, para lhe instruir para discernir corretamente este assunto.
Mas quando não se tem o Espírito e não se é guiado por ele, qualquer um pode afirmar ter poderes que não possui e que são exclusivos de Deus.
E uma incorreta interpretação do significado das palavras de nosso Senhor atribuir a si mesmo a qualificação de mediador entre Deus e o pecador, quando na verdade é afirmado expressamente nas Escrituras que há somente um Mediador para reter ou perdoar pecados, que é nosso Senhor Jesus Cristo. (I Tim 2.5) Isto é prerrogativa exclusiva dEle, e assim, nem mesmo a Igreja como um todo a possui, e nem mesmo os seus prelados. Nenhum sacerdote, pastor, presbítero, diácono, profeta, mestre, possui a citada autoridade, nem isoladamente, e nem em grupo.
Isto não é sequer uma prerrogativa de lideranças da Igreja, porque quando nosso Senhor e os apóstolos se referem à Igreja, isto é sempre aplicado a todo o corpo de cristãos que se reúnem nas diversas congregações locais, e cabe a todos os que estão em comunhão deliberar quanto aos assuntos relativos à disciplina ou ao interesse de todo o corpo de Cristo, como vemos por exemplo em Atos 15.22 e Mateus 18.17.
Os que são constituídos como bispos (supervisores, líderes) sobre o rebanho do Senhor não devem deliberar qualquer assunto de interesse da igreja, aparte da participação e aprovação da mesma. – NOTA DO TRADUTOR)
william Bates