“O pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e sim da graça” – (Rom 6.14)
Tanto o pecado quanto a graça são dois poderes antagônicos, e onde um se encontrar em prevalência, vencerá o outro. A graça aqui referida é a que habita no coração, e que é recebida de Deus por meio da nossa fé em Jesus Cristo. Por conseguinte, esta luta somente poderá existir nos que são de fato convertidos. Em Cristo, o cristão ganhou uma nova natureza que é de procedência divina, uma nova disposição e inclinação em sua mente (alma) e em seu espírito, que passa a influenciar também todos os sentidos do corpo físico.
Remanesce no entanto, na antiga natureza terrena, todas as inclinações e desejos do anterior modo de vida, ainda que tendo sido enfraquecidas, e decadentes, pela ação da graça. Deus permitiu que assim sucedesse, conforme havia planejado, para que pudéssemos ser exercitados no trabalho de vencer o pecado, sendo cada vez mais conscientizados que não é possível viver em plena santificação de vida caso não dependamos inteiramente da Sua graça, a qual é eficaz quando estamos em verdadeira comunhão espiritual com Cristo.
Deus poderia nos ter dado a plenitude de sua graça, como a teremos no céu, e assim, sequer poderíamos ser tentados pelo pecado, mas, como dissemos, em sua sabedoria e soberania lhe aprouve nos conduzir a maiores graus de obtenção da sua graça na medida proporcional da nossa obediência à Sua vontade.
A mera vontade humana não pode vencer o pecado, porque este é um poder superior à nossa própria vontade. Queremos fazer o bem que é segundo a vontade Deus, mas não há em nós o poder para realizá-lo.
Dependemos portanto, de um poder que nos capacite a isto, a saber, o da graça, que é o único poder maior do que o do pecado.
A libertação que Cristo nos dá em relação ao pecado é perfeita, ainda que o pecado remanesça nos crentes. E isto se dá em razão de que o pecado já não reina mais de modo absoluto como fazia antes de virmos a Cristo, e na verdade não possui nenhum tipo de governo sobre os cristãos, porque este pertence à graça, que é o poder reinante em nós.
Alguém dirá que isto é apenas conceitual e não real, porque é notório que os crentes estão ainda sujeitos a pecar. Todavia, isto não sucede por serem compelidos pelo pecado como se fossem seus escravos, mas por uma concessão que eles fazem a um antigo senhor que foi derrotado e destronado, por falta de vigilância ou da devida consagração de suas vidas a Deus. Tanto que, tão logo confessem o pecado, se arrependam e se voltem para Deus, o pecado é logo submetido em grilhões pelo poder da graça de Jesus Cristo.
A boa obra da graça que foi iniciada no cristão será completada, conforme a promessa de Deus, até que todos eles sejam conduzidos à perfeição no céu. A graça de Jesus se encontra assentada no trono da alma e jamais permitirá que haja ali qualquer outro governante, seja o da nossa vontade ou o do pecado.
É nisto que consiste a atração que os cristãos têm por Deus e se sentem mais inclinados a conhecer a sua vontade e obedecê-la do que tudo o mais em suas vidas. Eles não terão qualquer desejo voluntário de servir aos interesses do pecado ou do grande Inimigo de suas almas; porque estão profundamente afeiçoados a Deus e aos interesses do Seu reino eterno.
Todo o desígnio da alma que é conduzida pela graça está fixado em se viver para Deus, e ainda que ela encontre em seu caminho as tempestades produzidas pelas tentações do Inimigo e do pecado, e mesmo que seja derrubada, ela se levantará e continuará a sua caminhada na direção que é dada pela graça de Deus.
A graça quebrará todas as oposições que possam se levantar contra a vida do crente, e o conduzirá em segurança ao seu destino final, que é o de ser glorificado por Deus. E assim a graça revelará que é a ela que pertence o pleno domínio, que atua pelo amor, e que toda ação do pecado na alma é efetuada por um princípio de rebeldia.
Por isso diz o apóstolo que agora não estamos mais debaixo do domínio do pecado, mas sim sob o governo da graça, que é poder libertador que em nós opera, e que diferentemente da Lei, que não é um poder, mas sendo uma norma, não somente não pode nos livrar do pecado, como também nos condena. Amamos a Lei de Deus, mas quando o assunto é o da nossa libertação do domínio do pecado, ela nada pode fazer em nosso favor.
Mais do que ter os nossos pecados perdoados por Cristo, necessitamos da remoção do pecado, e por isso a alma nunca achará paz somente no perdão do pecado, porque este deve também ser mortificado.
Assim, se o pecado não for mortificado diariamente, ele, apesar de já não ter o domínio pleno sobre a alma, pode arruinar a sua comunhão com Deus, enquanto não for mortificado. Daí a grande importância de darmos a devida atenção ao pecado, tão logo ele comece a se instalar na alma, assim como quem combate uma infecção logo no seu princípio, para que ela não se alastre causando maiores danos e uma maior dificuldade para ser combatida.
Alguém dirá à luz de tudo isto: “É muito trabalhoso e cansativo ser um cristão, sempre ocupado em vencer o pecado. Melhor é viver livre de tudo isto, sem ter qualquer preocupação de vigilância em relação ao pecado.” Todavia, isto não é apenas um modo de pensar, mas uma atestação de se estar sendo enganado pelo pecado, em razão de se ter um coração incrédulo e endurecido, o que é o pior dos castigos da parte de Deus, a saber, o de deixar alguém entregue a si mesmo, sem a assistência da graça, que seria o único meio de se vencer a este inimigo tão perverso que é o pecado. Espera-se portanto, como de fato sucede, que não seja esta a fala de um cristão, porque este é da fé genuína, que não permite que o cristão venha a cair numa apostasia fatal e final.
“Tende cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de vós perverso coração de incredulidade que vos afaste do Deus vivo; pelo contrário, exortai-vos mutuamente cada dia, durante o tempo que se chama Hoje, a fim de que nenhum de vós seja endurecido pelo engano do pecado.” – Hebreus 3:12-13
Os que são de Cristo não são deixados entregues a si mesmos por Deus, porque o Espírito Santo lhes impele a lutarem contra o pecado, sujeitando-se ao trabalho da graça, de modo que todo aquele que é herdeiro do céu será achado lutando por ele, e a isto nosso Senhor se referiu quando disse que o reino dos céus é tomado por esforço; ou seja, a graça se mostra eficaz quando os cristãos são diligentes no cumprimento dos seus deveres espirituais, e dentre estes, encontra-se o de vigiarem contra o pecado.
Esta luta é portanto de caráter interno, para que a alma não seja vencida por pecados, e mesmo a luta que é feita contra as tentações externas não visa a terminar com as fontes de tentações, mas em se guardar o coração incontaminado por elas.
Assim, se algum cristão for achado com o seu coração endurecido, isto não será o resultado de uma ação direta de Deus, mas do próprio cristão ter interrompido a sua caminhada na obediência à Palavra, sobretudo no que se refere ao exercício do amor, da longanimidade e do perdão.
Todavia, deste mal ele poderá ser curado tão logo se arrependa e se volte para Deus, suplicando-lhe humildemente que lhe restaure àquela boa condição em que somos achados quando na comunhão com Cristo.