“Porque cada um será salgado com fogo. Bom é o sal; mas, se o sal vier a tornar-se insípido, como lhe restaurar o sabor? Tende sal em vós mesmos e paz uns com os outros.” (Marcos 9.49,50)
Para entender este assunto corretamente, devemos levar em consideração todo o contexto. Os discípulos haviam disputado entre si sobre a precedência no Reino de seu Mestre, que eles supunham que fosse de natureza temporal; cada um deles cobiçava para si o mais alto posto de dignidade e poder. Eles tinham também, por meio de inveja e estreiteza de mente, proibido uma pessoa de expulsar demônios, apenas porque não exercia esse poder em concerto com eles, e em subserviência a eles, Mc 9.38-41.
Estas más disposições nosso Senhor tinha reprovado, por apropriadas e sérias observações; e, então, ele passou a lhes declarar que o exercício de tais sentimentos corrompidos iriam resultar na destruição eterna de todo aquele que os abrigasse, lhes mergulharia no “fogo do inferno que nunca se apagará”. Depois de repetir, nada menos que cinco vezes, que “o fogo em que eles seriam lançados nunca se apagará”, ele lhes disse que esperava um comportamento muito diferente deles. Os termos que ele usou nesta ocasião, que você acabou de ler; contêm uma advertência solene, e um aconselhamento adequado; cada um dos quais vamos considerar em sua ordem. Vamos notar, então,
I. Sua admoestação solene
Isto é um pouco difícil de ser entendido. Comentaristas supõem que a palavra “porque” com a qual o meu texto é introduzido, é para ser entendida como termo de ligação com as palavras imediatamente anteriores, explicando a primeira cláusula do nosso texto da seguinte forma: O fogo, em que as pessoas antes mencionadas serão lançadas, nunca se apaga, nem serão as pessoas que são nele lançadas consumidas; porque cada um deles será salgado com fogo, e, como o sal conserva de putrefação as coisas que estão impregnadas com ele, assim também o fogo preserva de dissolução aqueles que devem ser submetidos ao seu poder.
Esta interpretação está longe de ser satisfatória; porque coloca duas expressões perfeitamente semelhantes, que eu li, e que se lhe segue, em oposição direta uma à outra, (uma se referindo à destruição da alma, e a outro para a sua preservação), quando são, evidentemente, destinadas a transmitir a mesma verdade sob duas figuras diferentes.
Para se livrar dessa dificuldade, um comentarista traduziria a palavra assim: “Cada um será salgado para o fogo”. Mas qualquer um, que olhar o original, verá que essa tradução é totalmente inadmissível.
O texto deve ser entendido no seu contexto. O conjunto pode ser explicado da seguinte forma: Eu espero de vocês, no futuro, um estado de mente diferente daquele que vocês têm mostrado até recentemente. Vocês são oferecidos como sacrifício vivo para Deus; e, como tal, deve ser santo e sem defeito, e como os sacrifícios sob a lei foram oferecidos através da instrumentalidade do fogo, e sempre com o acompanhamento de sal, por isso vocês devem ser salgados com fogo, e salgados com sal, para que seu sabor possa ser aceitável a Deus.
Se for dito que o termo “salgar com fogo” é uma expressão estranha, eu respondo: não é mais estranha se aplicada para a preservação da alma do pecado, do que aplicada à conservação do corpo da destruição. Pelo contrário, é expressamente sancionado pelas Sagradas Escrituras, no sentido agora colocado sobre isto; considerando que em nenhum lugar é sancionada no sentido que estou agora refutando. João Batista diz: “Cristo vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”? E não é mais estranho ser “salgado com fogo”, do que ser “batizado com fogo”. Se é dito que “batizar com fogo”, significa apenas ser dotado com graça, que deve purificar como fogo, eu respondo: este é o significado preciso de “salgar com fogo”, ou seja, o cobrir com a graça, que purificará como fogo. As duas expressões são precisamente paralelas, e, esta interpretação traz unidade ao tema em vez de discórdia, e simplicidade no lugar de confusão inexplicável.
Tendo, eu espero, lançado a verdadeira luz sobre esta passagem difícil, eu agora avançarei para comentá-la como uma ordenança de nosso bendito Senhor.
Sob a Lei Mosaica, isto foi ordenado por Deus: “Toda oferta dos teus manjares temperarás com sal; à tua oferta de manjares não deixarás faltar o sal da aliança do teu Deus; em todas as tuas ofertas aplicarás sal.” (Lev 2.13). Nosso Senhor se refere a esta ordenança, quando diz: “Cada um será salgado com fogo; e cada um será salgado com sal”. Mas, como o sal pode, contudo, perder eventualmente o seu sabor, ou seja, a sua propriedade de salgar, de modo a se tornar impróprio para o serviço de Deus, por isso as almas imortais podem perder o sabor divino, que é agradável a Deus, e, como o sal nesse caso, para nada serve, senão para ser lançado no monturo. Por isso os mestres do evangelho que perdem a espiritualidade de suas mentes, devem ser considerados como os mais inúteis e desprezíveis da humanidade.
Agora, a indulgência concedida a tais sentimentos, assim como os apóstolos tinham recentemente manifestado em seu comportamento era incompatível com uma mente espiritual, e portanto, nosso Senhor lhes advertiu que, se eles desejassem ser úteis como ministros, ou serem aceitos como homens, eles deveriam mortificar todos os seus afetos corruptos, e mostrarem estar sob a influência de um princípio mais puro. E a mesma advertência é adequada para nós também, pois que é para ser temido, que somos em nossa maior parte, mundanos e carnais tal como eles. Olhe para o estado do mundo cristão: veja como os homens estão prontos, sim, mesmo bons homens, para contender e discutir sobre tudo o que diz respeito a seus interesses no mundo. Veja, também, quão prontos estão os cristãos para condenar e desencorajar aqueles que não se movem em sua esfera, e não pertencem ao seu partido. Deixe o espírito dos cristãos, tanto dos indivíduos e das comunidades, ser visto no dia de hoje, e será reconhecido que a admoestação no meu texto não tem perdido em nenhum grau a sua força, ou sua aplicabilidade para as almas dos homens.
Em conexão com esta advertência solene, devemos considerar,
II. Seu conselho adequado.
O conselho dado aqui, evidentemente, se refere a todo o contexto, e, a este respeito, confirma a interpretação que demos às cláusulas anteriores do nosso texto.
Os discípulos tinham dado lugar a um comportamento e disposição muito maus, e, para neutralizar tais propensões corruptas no futuro, nosso Senhor disse-lhes: “Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os outros”, v.50. O mesmo conselho é bom para nós também:
1. Tende sal em vós mesmos.
Nós, seja como ministros ou como cristãos particulares, devemos ser “o sal da terra”, Mat 5.13, não somente ricamente revestidos da graça em nossas próprias almas, mas operando, todos nós, em nossas respectivas esferas, para preservar o mundo ao redor de nós, de corrupção. Mas como é que podemos cumprir o nosso ofício para o benefício dos outros, ou como podemos responder ao nosso próprio caráter como verdadeiros crentes, se não houver um sabor da graça divina habitando em nós, e se irradiando ao nosso redor? Em todo o nosso relacionamento com Deus, devemos exercer uma espiritualidade de mente, porque o que é a oração sem devoção? ou o que é o louvor sem amor fervoroso e grata adoração?
Na verdade, o que são os serviços, sejam quais forem, se o pecado não for mortificado e a corrupção não for submetida? Se mantivermos qualquer iniquidade em nosso coração, o Senhor não nos ouvirá. O sacrifício dos ímpios é abominável ao Senhor; é a oração do justo que é todo o seu prazer. O mesmo pode ser dito de todas as nossas relações com os homens. A direção de Deus para nós é que a nossa palavra seja sempre com graça, sempre temperada com sal. Isto não significa que estejamos sempre conversando sobre religião; mas que é necessário que seja sempre encontrado em nós um estado de espírito religioso, e que nenhuma palavra escape dos nossos lábios que não seja compatível com isto. Como filhos de Deus, devemos ser irrepreensíveis e inofensivos, sem repreensão, no meio de uma geração corrompida e perversa, brilhando entre eles como luzeiros no mundo; e se não atingirmos este caráter, todo o trabalho que foi concedido a nós será em vão.
Mas, para que possamos entrar mais diretamente no ponto que nosso Senhor tinha principalmente em vista, eu adiciono,
2. Tenham paz uns com os outros.
O amor deve ser o hábito da mente do cristão, e o próprio elemento em que ele se move. É uma vergonha para ele, trair, cobiçar, invejar, ter disposições contenciosas; ou valorizar seu irmão menor por conta de algumas pequenas diferenças, quando ele está, evidentemente, em sua própria esfera, fazendo o trabalho do Senhor.
Estas, e outras disposições semelhantes, são as fontes frutíferas de contenda e ódio, como Tiago disse: “De onde vêm as guerras e contendas entre vós? Porventura não vêm disto, dos vossos deleites, que nos vossos membros guerreiam?” Agora, o mundo cristão precisa ser muito instruído sobre este ponto.
Todos admitem que precisam “ter sal em si mesmos” enquanto eles ainda imaginam que isso será adquirido com fanatismo e contendas. Mas devo dizer a todas essas pessoas: “Se tendes amargo ciúme e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, e nem mintais contra a verdade. Esta sabedoria não vem do alto; mas é terrena, animal e diabólica”, Tg 3.14,15. Se desejamos nos apresentar aprovados diante de Deus, devemos “andar de maneira digna da vocação com o qual somos chamados, com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando uns aos outros em amor , esforçando-nos para manter a unidade do Espírito no vínculo da paz.”, Ef 4.1-3.
Isso é necessário para o gozo da presença de Deus aqui; porque somente então, quando somos de uma só mente, e vivemos em paz, que o Deus de amor e de paz estará conosco. É necessário, também, para a nossa aceitação com ele em um mundo melhor; de acordo com o que está escrito: “segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor”, Heb 12.14. Lembrem-se, porém, irmãos, que isto é essencial para o seu caráter como “sacrifícios vivos” e sem isto será em vão esperar serem “ofertas aceitáveis diante de Deus”. Aquilo que Deus uniu, que nenhum homem o separe, mas busquem primeiro ter sal em vós mesmos, e então vivam em paz e amor uns com os outros.
Texto de Charles Simeon, em domínio público, traduzido e adaptado pelo Pr Silvio Dutra.