Por Ricardo Gondim
Não perdi o juízo. Minha espiritualidade não foi a pique. Minhas muitas tarefas não me esgotaram. Entendo que meu texto, “Já sei por onde não ir”, causou espécie . Para alguns pareceu vago, para outros, inconsistente. Várias pessoas me avisaram que intercediam diante de Deus pedindo que Ele me acudisse nesse momento delicado de minha vida. Calma! Não há motivos para espantos!
Minha peregrinação cristã está, há muito, marcada por rompimentos. O primeiro, deu-se com a igreja católica, onde nasci, fui batizado e fiz a primeira comunhão. Em minhas premonitórias inquietações com os dogmas religiosos, pedi explicações a um padre sobre algumas práticas que não faziam muito sentido para mim: a veneração dos santos, as rezas diante de imagens de escultura e, principalmente, a transubstanciação da eucaristia, na missa. O sacerdote deu-me as costas, mas advertiu: “Meu filho, afaste-se dos protestantes, eles são um problema!”.
Lendo a Bíblia, decidi sair do catolicismo; um escândalo para uma família que tinha padres e freiras na árvore genealogia e nenhum “crente”. Acabei participando da Igreja Presbiteriana Central de Fortaleza porque meus únicos amigos crentes eram de lá. Enfronhei-me totalmente como membro atuante: freqüentei sua escola dominical, trabalhei com outros jovens na impressão dos boletins, organizei retiros e acampamentos, tentei cantar no coral, liderei a União de Mocidade; enfim, fiz tudo o que podia dentro daquela estrutura. Fui calvinista e acreditei, por muito tempo, que Deus, ao criar todas as coisas, ordenou que o universo inteiro se movesse de acordo com sua presciência e soberania, inclusive as pessoas que vão para o céu e para o inferno. Essa doutrina fazia muito sentido para mim, até porque acreditava ser um dos eleitos. Numa situação bem confortável, podia descansar: minha salvação estava segura. Mesmo que caísse na gandaia, no último dia, de um jeito ou de outro, a graça me resgataria. O propósito de Deus para minha vida nunca seria frustrado, me garantiam.
Mas, numa determinada noite, o Espírito Santo visitou-me com sua ternura. Senti-me imerso no amor de Deus e causei escândalo em nossa comunidade reverente e bem comportada. Sob o impacto daquele batismo, fui intimado a comparecer a uma versão moderna da Inquisição. Numa minúscula sala, pastores e presbíteros exigiram que eu negasse minha experiência, sob pena de ser estigmatizado como pentecostal e sofrer o primeiro processo de expulsão da igreja desde seu estabelecimento, no século XIX. Ainda adolescente e debaixo daquele escrutínio opressivo, ouvi um xeque mate pouco misericordioso: “Peça para sair, evite o trauma de um julgamento sumário. Poupe-nos de nos transformarmos em algozes”. Às duas da madrugada, capitulei e pedi minha saída. A partir daquele momento, não seria mais presbiteriano.
De novo, encontrava-me no exílio. Meu melhor amigo, presidente da Aliança Bíblica Universitária, pertencia a Assembléia de Deus e desembarquei lá. Em meu êxodo, procurava abrigo, sequioso por uma comunidade onde desenvolvesse minha fé. Cedo, vi que a Assembléia de Deus estava engessada. Sobravam legalismo, politicagem interna e ânsia de poder temporal. Não custou reparar que a instituição se achava acorrentada por uma tradição farisaica e, pior, iludia-se com sua grandeza numérica. Já pastor da Betesda, atentei que eu me tornava um estorvo para os processos que mantinham um espírito de boiada. Eu denunciava a gerontocracia assembleiana que amordaçava os crentes e inibia o senso crítico, produzindo uma geração de pastores parecidos com vaquinhas de presépio: sempre a balançar a cabeça em aprovação aos desmandos dos que se encastelavam no poder. Mais uma vez, encontrava-me numa sinuca e precisei romper com a maior denominação pentecostal do Brasil. Dessa vez, caminhei na companhia de minha querida Betesda.
Agora, que sinto necessidade de me distanciar do movimento evangélico, já não tenho tanto medo. Minhas rupturas anteriores não foram suficientes para azedar minha alma e nem tão fortes que me roubassem a fé – “Seja Deus verdadeiro e todo homem mentiroso”.
Quem me conhece, principalmente os membros da Betesda, minha comunidade de fé, não precisa temer. Estou cada dia mais empolgado com as verdades bíblicas que revelam o Jesus de Nazaré; aumenta minha vontade de caminhar ao lado de gente humana que ama o próximo; sinto-me estranhamente atraído à beleza da vida. Procuro mentores, busco mais amigos que me inspirem a alma.
Então, por que uma ruptura radical se não quero nutrir a intolerância e evito tornar-me um casmurro rabugento? Não desejo ser um crítico que não cabe em lugar nenhum. Não me considero dono da verdade, nem palmatória do mundo. Pelo contrário,cresce minha consciência de como sou imperfeito. Luto para não deixar que minha covardia me afaste de confrontar meus próprios paradoxos. Não nego que sou incapaz de viver tudo o que prego – reconheço que a mensagem que anuncio é muito mais excelente do que minha vida. Sei que o modelo de igreja que pastoreio ainda tem grandes dificuldades. Contudo, insisto com a necessidade de rescindir, pelas seguintes razões:
1. Vejo-me incapaz de tolerar que o Evangelho se transforme em negócio e o nome de Deus vire uma marca que vende bem. Não posso aceitar passivamente que tentem converter os cristãos em consumidores e a igreja, num balcão de serviços religiosos. Entendo que o movimento evangélico nacional se apequenou e não consegue vencer a tentação de lucrar como empresa. Não vou continuar esmurrando pontas de facas.
2. Não consigo mais admirar a enorme maioria dos formadores de opinião dentro do movimento evangélico (principalmente os que usam da mídia). Conheço muitos deles fora dos palcos e dos púlpitos. Sei de histórias horrorosas, presenciei fatos inenarráveis e testemunhei decisões execráveis. Sei que muitas eleições nas altas cupulas denominacionais aconteceram com casuísmos eleitoreiros imorais. Estive em uma eleição para presidente de uma enorme denominação e vi quando dois zeladores do centro de convenção foram aliciados por dinheiro, receberam crachás, e votaram como pastores. Já ajudei em “cruzadas” evangelísticas cujo objetivo não passava de filmar a multidão para mostrar nos Estados Unidos, levantar dinheiro, e manter os evangelistas em luxos nababescos. Sou testemunha ocular de pastores que, depois de orarem por gente sofrida e miserável, debocharam, às gargalhadas, das mesmas pessoas. Horrorizei-me com o programa da CNN em que algumas das maiores lideranças do mundo evangélico americano apoiaram a guerra do Iraque. Naquela noite revirei na cama sem dormir. Parecia impossível acreditar que homens de Deus colocariam a mão no fogo por uma política beligerante e mentirosa de bombardear um país, principalmente porque ela vinha, satanicamente, apoiada pela indústria do petróleo.
3. Concordo que no momento em que o sal perde seu sabor, para nada presta senão para ser jogado fora e pisado pelos homens. Não desejo me sentir parte de uma igreja que perdeu sua credibilidade por centralizar sua mensagem na promessa irresponsável de prosperidade; que busca se especializar na mecânica de fazer preces poderosas; de ensinar a virtude como mero degrau para o sucesso. Não suporto conviver em ambientes onde se geram culpa e paranóia como pretexto de ajudar as pessoas a reconhecerem sua necessidade de Deus.
4. Não consigo identificar-me com o determinismo teológico que impera na maioria das igrejas evangélicas e que enxerga tudo como parte da providência. Há algum tempo, repenso algumas categorias teológicas que me serviram de óculos
para a leitura da Bíblia e entendo que esse meu exercício se tornou ameaçador para muitos. Portanto, preciso de lateralidade para contemplar as contribuições das ciências e de outros ângulos para ler as Escrituras. Não agüento cabrestos, patrulhamentos e cenhos franzidos. Desejo a companhia amiga de qualquer pessoa que molde sua vida, consciente ou inconsciente, pelos valores do Reino de Deus e não tenha medo de pensar, sonhar, sentir, rir e chorar. Desejo muito construir minha espiritualidade sem a canga pesada do legalismo, sem o hermetismo fundamentalista dos dogmáticos e sem a estreiteza ideológica de quem gosta de rótulos.
Não, não vou deixar de ser pastor, não abandonarei minha comunidade e nem desistirei de minha vocação missionária. Posso não saber ainda para onde vou, mas estou cada dia mais certo dos caminhos por onde não devo ir.
Soli Deo Gloria.
Artigo extraído do site www.vidaacademica.net