Numa recente palestra sobre a Cristologia, ministrada por um jovem teólogo brasileiro, autor de um livro que está chegando ao mercado evangélico e que aborda sobre a deidade de Cristo, no final da mesma, o autor fez uma menção sobre a salvação só pela graça divina. Até ai tudo bem, mas uma preocupação patenteou-se quando ele afirmou que as pessoas que não tiveram o privilégio de ouvir falar do Cristo histórico eram salvas pelo favor imerecido que Deus dispensado ao homem pecador (a graça de Deus). A afirmação do jovem teólogo foi objetada por um dos presentes, mas devido ao escasso tempo o assunto não pode ser tratado e concluído satisfatoriamente, pois já estávamos saindo da área da Cristologia para a área da Soteriologia (a doutrina da salvação), o que não era a proposta da palestra.
Como estávamos presente ao conclave, achamos por bem discorrer sobre o assunto devido à nuvem que pairou no ambiente com a afirmação do palestrante. Assim sendo, iremos enfocar o assunto, realçando-o conforme está intitulado acima.
Não restam dúvidas de que o tratamento de Deus com o homem em todas as eras sempre foi de forma graciosa, inclusive na área redentiva. O fato de Deus criar o homem parecido consigo mesmo, que nós chamamos em Teologia de Imago Dei, isso já nos mostra uma manifestação da Sua graça. De todos os seres que Deus criou o ser humano é o único que traz consigo a imagem de Deus. O jardim do Édem criado por Deus para ser o habitat do homem, foi também um ato gracioso de Deus. Quando surgiu o episódio da queda do homem Deus graciosamente o procurou e tratou do seu pecado, cobrindo a sua nudez com vestes que o próprio Deus confeccionara. Apesar do drama do pecado, o Criador continuou dispensando a sua graça fazendo com que a terra continuasse sendo a habitação do homem com tudo o necessário para a sua sobrevivência, em todos os tempos, o que se chama em Teologia de graça comum.
Tratando-se da questão redentiva que foi justamente a problemática surgida no final da palestra do ilustre teólogo, é de fundamental importância que entendamos que, em todas as épocas, a redenção sempre foi um ato gracioso de Deus com a definição de que esse ato só é manifestado graciosamente em Cristo, isto muito antes do Redentor surgir no cenário mundial como um personagem histórico. Quando o Todo-Poderoso instituiu os decretos relacionados à salvação, um deles definiu que a salvação do pecador seria através do Filho de Deus que encarnaria no futuro, e que morreria pelos pecados dos homens. Em apocalipse 13.8 encontramos que o cordeiro (Cristo) foi morto antes da fundação do mundo. (Veja ainda 1 Pe 1.19,20)
Na história, o assunto começou a ser revelado pela primeira vez ao homem por ocasião da sua queda, conforme encontrado em Gn 3.15. A promessa de que o descendente da mulher iria esmagar a cabeça da serpente, é considerada pelos teólogos como o proto-evangelho, ou seja, a primeira vez em que a mensagem do evangelho foi proclamada para reconciliar o homem com Deus e salvá-lo da perdição eterna provocada pelo pecado. Essa mensagem ganhou mais consistência quando o próprio Deus matou animais e da pele desses animais fez vestimentas para cobrir a nudez do primeiro casal. “E fez o SENHOR Deus a Adão e à sua mulher túnicas de peles, e os vestiu” Gn 3.21. É interessante observar que uma vítima teve de morrer, sangue teve que ser derramado para poder cobrir a nudez do homem. Essa mensagem de redenção através da semente da mulher, tipificada na morte daqueles animais, foi acreditada por Abel, filho de Adão e Eva, que quando cultuou a Deus o fez oferecendo um sacrifício cruento, ou seja, com sangue, que tanto agradou a Deus. “E Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o SENHOR para Abel e para a sua oferta” Gn 4.4. (Veja ainda Hb 11.4). Podemos observar nesses dois episódios e também no costume que os homens redimidos da antiguidade tinham de oferecer sacrifícios com derramamento de sangue no seu relacionamento cultual com Deus, que essa crença se popularizara. Era a poderosa mensagem da salvação graciosa de Deus através do seu Filho Jesus Cristo que, na época, estava sendo anunciada, sendo que Ele ainda não encarnara, mas que o plano redentor estava tendo o seu curso através da progressividade da revelação divina. Na época patriarcal nos é revelado na Bíblia que Abraão creu em Deus e que pela fé foi justificado. Qual foi a mensagem que alcançou Abraão? Em Gálatas 3.8, encontramos: “Ora, tendo a Escritura previsto que Deus havia de justificar pela fé os gentios, anunciou primeiro o evangelho a Abraão, dizendo: Todas as nações serão benditas em ti”. O apóstolo Paulo nos diz que foi a promessa do descendente da mulher que iria abençoar todas as famílias da terra e que essa descendência era Cristo “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo” Gl 3.16. Com o advento da lei mosaica o sistema sacrificial foi instituído por ordem de Deus como tipo do que iria acontecer quando o Verbo de Deus encarnasse, principalmente o sacrifício da Páscoa. Tanto é assim que o Senhor Jesus, o Redentor, foi identificado pelo seu precursor João Batista como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, fazendo alusão ao cordeiro que era sacrificado na festividade da Páscoa judaica (Jo 1.29). Lembremo-nos de que Paulo chamou de Jesus a nossa Páscoa, que fora sacrificado por nós (1 Co 5.7). Ainda sobre o assunto da progressividade da revelação e de que ela falava do Redentor que haveria de vir, o evangelista Lucas registrou o seguinte acerca da ministração que o Senhor fez ao coração dos dois discípulos a caminho da aldeia de Emaús: “E, começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a seu respeito em todas as Escrituras” Lc 24.27. O apóstolo Paulo quando tentava persuadir os judeus acerca da salvação, falava da exclusividade de Cristo constante da revelação até então conhecida: “Tendo marcado um dia, muitos foram encontrar-se com ele em sua casa. Desde a manhã até a noite, Paulo lhes explicava com bom testemunho o reino de Deus e procurava convencê-los acerca de Jesus, tanto pela Lei de Moisés como pelos Profetas” At 28.23 (A Lei de Moisés era uma expressão usada na época para fazer referência ao Pentateuco, inclusive o livro de Gênesis).
Queremos com isso afirmar que, mesmo antes da encarnação do Verbo de Deus ou da manifestação da Sua graça através do Cristo histórico, a salvação sempre foi um ato gracioso de Deus através daquele que haveria de vir na plenitude dos tempos, como disse Paulo em Gal 4.4,5. Nas épocas pré-patriarcal, patriarcal e pós-patriarcal sempre a salvação foi anunciada através das profecias diretas acerca de Cristo, o Redentor, através dos tipos e das figuras usadas por Deus como parte da revelação messiânica. Na carta aos Hebreus nos é dito, em seu início, que Deus sempre falou ao homem através dos seus servos e profetas de muitas maneiras (Hb 1.1). Nessa fala de Deus o plano redentor estava sendo anunciado através das profecias, dos tipos e das figuras ao longo da história mui especialmente depois da organização do estado israelita e da entrega da lei, da construção do tabernáculo, da instituição do sacerdócio, e da instituição do sistema sacrificial, sendo o povo israelita destinado por Deus para ser o agente propagador da mensagem redentora. “Cantai ao SENHOR, bendizei o seu nome: anunciai a sua salvação de dia em dia. Anunciai entre as nações a sua glória; entre todos os povos as suas maravilhas” Sl 96.2,3.
No Novo Testamento, quando o Verbo de Deus encarnou, essa exclusividade de Cristo como único Redentor, ficou mais patenteada como observamos nos textos que falam da anunciação do nascimento do Senhor (Mt 1.21; Lc 2.11), no testemunho do próprio Jesus no Evangelho de João 14.6; 11.25,26, no testemunho de Pedro em At 4.12 e nos escritos apostólicos de Paulo (1 Tm 2.5), Pedro (1 Pe 1.18-20) e João (Jo 3.16,17; 1 Jo 5.10-12; Ap 1.5; 5.9).
Num contexto missiológico, ninguém estar autorizado a declarar que Deus, por ser gracioso, salva as pessoas que não tiveram a oportunidade de ouvir o Evangelho, e que a salvação é pela graça de Deus sem complementar que essa graça se manifesta através de Cristo. O apóstolo Paulo escrevendo aos Romanos disse que o homem é indesculpável diante de Deus, pois ele tem ao seu dispor a revelação natural que testifica do Deus Criador (Rm 1.18-32). Paulo disse também nessa mesma carta que os que sem lei pecaram sem lei perecerão (Rm 2.12).
Se no plano eterno de Deus foi decretado que a salvação seria através do sacrifício do Filho de Deus, e que o Cordeiro (Cristo) na mente divina já tinha realizado o sacrifício pelos pecados antes que houvesse mundo (Ap 13.8), e que os eleitos que seriam alcançados também já tinham sido identificados e preordenados para a salvação antes que o mundo viesse a existir, e que os seus nomes já estão escritos no livro da Vida (Ap 17.8) não há dúvidas de que a exclusividade de Cristo como Redentor é definida, mesmo levando-se em consideração a progressividade da revelação desse assunto ao longo da história da redenção do homem, pois Deus nunca teve mais de uma maneira de tratar com o homem no seu plano redentor senão através de Cristo.
Resumindo queremos dizer que a salvação sempre foi um ato gracioso de Deus através de Cristo e que, antes da encarnação de Cristo, as pessoas para ser salvas deviam crer naquele que haveria de vir e depois dela elas são salvas crendo no Cristo que já veio.
“Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!” Rm 11.33.
João Pessoa, junho de 2009
Rev. Eudes Lopes Cavalcanti (Ministro Congregacional da ALIANÇA)