Na violência criativa do amor, você entra no passado inalterável e corta fora a ofensa da pessoa que o feriu, você apaga o machucado dos arquivos do coração. Quando consegue realmente fazer isso, você faz uma coisa, a única coisa, que pode solucionar a inevitabilidade da dor do seu passado. A graça para fazer isso vem de Deus. A decisão de fazê-lo é sua.
Dois anseios dominam a maior parte das nossas vidas. Ficamos ansiosos diante do passado inalterável; almejamos recriar segmentos das nossas histórias particulares, entretanto somos acorrentados a eles. Ficamos ansiosos, também, diante do futuro imprevisível; desejamos controlar nossos destinos, porém não conseguimos colocá-los sob a nossa gerência. Dessa forma, dois anseios básicos, que estão por trás de quase todos os demais, são frustrados: não somos capazes de alterar o passado doloroso nem controlar o futuro ameaçador.
Deus oferece duas respostas aos nossos anseios mais profundos. Ele recria nosso passado através de perdoá-lo. Ele controla nosso futuro através de fazer e cumprir promessas. Ao perdoar-nos, muda nosso passado. Ao dar-nos promessas, assegura o nosso futuro.
Por meio da graça de Deus, podemos partilhar do seu poder para mudar o passado e controlar o futuro. Nós, também, podemos e devemos perdoar. Nós, também, podemos fazer promessas e cumpri-las. Aliás, ao participarmos desses dois poderes divinos, tornamo-nos mais valentemente humanos e mais maravilhosamente livres.
O Que Fazemos Quando Perdoamos?
Vejo três estágios em todo ato de perdoar: sofrimento, cirurgia espiritual e recomeço. O primeiro estágio, sofrimento, cria as condições que requerem o perdão. No segundo estágio, executamos a ação essencial do perdão que consiste na cirurgia espiritual que o perdoador efetua em sua própria memória. Completamos a ação e a levamos à consumação no terceiro estágio, quando o perdoador recomeça o relacionamento com a pessoa perdoada.
1. Sofrimento
Ninguém pode realmente perdoar se não foi ferido. Reduzimos o milagre a uma indulgência barata quando dizemos que estamos perdoando pessoas que não chegaram a realmente nos ferir. Ademais, nem todas as injúrias precisam ser perdoadas. Há algumas feridas que podemos engolir, desprezar ou atribuir ao simples risco de sermos vasos de barro num mundo turbulento. Não devemos procurar aplicar o perdão quando o que é necessário é apenas um pouco de generosidade espiritual. Considere os seguintes exemplos:
Irritações. As pessoas nos irritam quando chegam atrasadas aos compromissos, quando contam casos entediantes no almoço ou quando cortam a fila à nossa frente no caixa do supermercado.
Derrotas. Algumas pessoas se saem bem em situações em que nós falhamos; conseguem promoções quando somos ignorados; ganham os prêmios cobiçados por nós; sempre parecem estar ali à nossa frente – e para piorar ainda mais, são justamente os nossos amigos.
Desfeitas. As pessoas que são importantes para nós nos ignoram; professores que adorávamos esquecem os nossos nomes dois anos depois da nossa formatura; pastores que amamos nunca nos convidam para seu círculo íntimo; o patrão nem nos convida para o casamento da filha.
Todos esses exemplos podem constituir feridas, mas não são do tipo que requer perdão. Tais porções e fragmentos de sofrimento demandam tolerância, magnanimidade, indulgência, humildade – mas não perdão!
As feridas que requerem perdão são aquelas que são, ao mesmo tempo, profundas e morais. São profundas porque retalham a fibra que nos mantém unidos em relacionamentos humanos. São morais porque são erradas, injustas, intoleráveis. Não podemos passar por cima ou ignorá-las; não podem ser desprezadas, como se fossem insignificantes. Não podemos simplesmente escusá-las como resultado da condição humana.
Há duas espécies de ferida que precisam ser tratadas com o milagre do perdão. São atos de deslealdade e atos de traição. Pode ser que haja outros tipos de ferida que requeiram perdão e que não se enquadrem nessas categorias, mas a maioria se enquadra.
O que é um ato desleal? Uma pessoa é desleal se tratar você como um estranho quando, na verdade, pertence a você como amigo ou parceiro. Todos nós somos ligados a algumas pessoas especiais por meio das fibras invisíveis de lealdade. Os vínculos que possuímos nos dão a nossa identidade: somos o que somos, no sentido mais profundo, por causa das pessoas às quais pertencemos. É por isso que a deslealdade é tão séria. Quando alguém que nos pertence nos trata como estranho, ele cava uma fossa ou edifica uma muralha entre nós dois e, ao mesmo tempo, agride nossa própria identidade. Palavras como “abandonar”, “desamparar” ou “deixar na mão” vêm à mente:
O marido tem um caso com a melhor amiga da sua esposa.
Um parceiro que prometeu ajudar com um empréstimo volta atrás no último momento por causa da chance de obter maior lucro com seu dinheiro em outro lugar.
Seu pai não comparece na cerimônia em que você será premiado por uma realização muito importante.
Todos esses exemplos têm a mesma característica injuriosa em comum: alguém que lhe pertence por alguma promessa declarada ou não declarada o trata como se fosse um estranho.
Aperte o parafuso mais um pouquinho, e a deslealdade torna-se traição. Assim como a deslealdade transforma pessoas que pertencem uma à outra em estranhas, a traição as transforma em inimigas. Somos desleais quando deixamos alguém na mão. Somos traidores quando o retalhamos em pedaços.
Pedro foi desleal quando negou que conhecesse o Senhor.
Judas foi traidor quando entregou Jesus aos seus inimigos.
Você me trai quando pega um segredo que lhe confiei e o revela a alguém que pode usá-lo contra mim.
Você me trai quando, como meu irmão, me envergonha diante de pessoas de destaque, sem que eu tenha qualquer chance de defesa própria.
Esses exemplos têm a mesma característica injuriosa em comum: alguém que tem compromisso de estar ao seu lado age contra você como um inimigo.
2. Cirurgia Espiritual
O segundo estágio do perdão envolve a resposta interior da pessoa ferida àquele que a feriu. Embora ocorra na mente e no coração do perdoador, pode nem ser percebida pela pessoa perdoada – pelo menos, não imediatamente. Consiste na operação espiritual que o perdoador precisa executar dentro de sua própria memória.
Quando você perdoa alguém, você recorta o ato danoso, separando-o da pessoa que o praticou. Você desprende a pessoa do seu ato ofensivo. Você a recria. Em um instante, você a identifica, de forma irreversível, como a pessoa que lhe fez o mal. No instante seguinte, você muda essa identidade. Ela é recriada em sua memória.
Você passa a pensar nela, agora, não como a pessoa que lhe causou a ferida, mas como uma pessoa que precisa de você. Você a sente agora, não como a pessoa que o fez sentir rejeitado, mas como alguém que lhe pertence. Antes, você a tachava como uma pessoa extremamente maldosa; agora a vê como alguém que sofre de fraquezas e necessidades. Você recria seu passado através de recriar a pessoa cujo erro lhe causou a dor.
Você não tem o poder para recriar a pessoa lá fora, no seu ser, no mundo exterior. O que ela fez está vinculada àquilo que ela é. A ofensa que cometeu está acorrentada à pessoa dela. Contudo, quando você a recria em sua memória, ali, no seu interior, ela foi alterada por meio de cirurgia espiritual.
Deus perdoa dessa mesma forma. Ele nos liberta do pecado assim como uma mãe lava a sujeira do rosto de uma criança, ou como uma pessoa remove um fardo das suas costas, coloca-o sobre um bode
e manda o bode correndo para longe, no deserto. As metáforas que a Bíblia usa apontam para uma cirurgia na memória de Deus, que muda o que ele pensa a nosso respeito.
Às vezes, este segundo estágio é o máximo que se pode alcançar. Às vezes, temos de perdoar a pessoas que já faleceram e se foram. Às vezes, precisamos perdoar a pessoas que não querem ou não aceitam nosso perdão. Às vezes, nosso perdão não consegue ir além dessa etapa de realizar uma cirurgia espiritual na nossa memória.
3. Começando de Novo
O milagre do perdão começa quando duas pessoas distanciadas recomeçam seu relacionamento. Um homem estende a mão para a filha alijada e diz: “Quero ser seu pai outra vez”. Uma mulher estende sua mão e diz: “Quero ser sua esposa, sua companheira outra vez. Vamos nos reconciliar, vamos pertencer um ao outro novamente”.
Reconciliação é o religamento entre pessoas que estavam rompidas, mas pertencem uma à outra. É o início de uma nova jornada juntas. Precisamos recomeçar do ponto em que estivermos não esperar por um ponto ideal para nos religarmos. Ainda não compreendemos bem o que aconteceu. Há pontas soltas que não foram amarradas. Perguntas embaraçosas e dolorosas ainda não foram respondidas. O futuro é incerto; sem dúvida, ainda causaremos dor uma à outra e precisaremos experimentar outras vezes o perdão. Mas temos de recomeçar no ponto onde estivermos.
Como Perdoamos?
Sinto-me na obrigação de dizer algo sobre como se perdoa – mas não posso; não sei como perdoar. Alguém disse que o perdão, como o amor, pertence-nos apenas de “mentirinha”; essencialmente não conseguimos praticá-los.
Talvez seja verdade. Entretanto, praticamo-los assim mesmo – às vezes! Como amadores desajeitados, com certeza, mas, apesar de tudo, amamos e perdoamos.
Quero apontar, apenas, três coisas que tenho notado a respeito das pessoas que perdoam:
1. Perdoam lentamente. Pode ser que existam alguns perdoadores instantâneos, mas são muito raros. Não devemos esperar a capacidade de perdoar feridas profundas muito rapidamente.
C. S. Lewis tinha um professor quando era menino que era um monstro. Ele guardou ódio contra aquele sadista acadêmico durante quase toda sua vida. Poucos meses antes do final de sua vida, Lewis escreveu para sua amiga americana: “Prezada Mary… Foi só há poucas semanas que descobri, de repente, que havia finalmente perdoado aquele professor cruel que lançou uma nuvem tão escura sobre minha infância. Fazia muitos anos que eu tentava fazer isso”.
Essencialmente, não somos capazes de perdoar; mas, depois de um tempo, torna-se possível. Deus leva muito tempo com tantas coisas. Por que não deveríamos ter paciência com nós mesmos quando se trata de um milagre tão imenso como o perdoar?
2. Perdoam em comunidade. Será que alguém consegue perdoar sozinho? Acho que eu não seria capaz. Preciso de pessoas que sentem a dor que eu sinto que odeiam como eu odeio. Preciso de pessoas que precisam lutar tanto quanto eu para alcançar a disposição de perdoar. Eu só conheço o processo coletivo para alcançar o perdão. Se você consegue chegar lá sozinho, ótimo; contudo, se não conseguir se livrar do videoteipe da dor do passado procure uma comunidade de perdoadores lentos. Eles vão saber ajudá-lo.
3. Eles perdoam à medida que são perdoados. Na prática, a pessoa que perdoa não consegue distinguir muito entre o sentimento de ser perdoado e de perdoar. Somos uma mistura tão grande de pecador e vítima de outros pecadores que é impossível perdoar as pessoas que nos ofendem sem sentir que nós também estamos sendo libertos.
Esperar para alguém se arrepender antes de lhe perdoarmos é entregar o nosso futuro à pessoa que nos feriu.
Perdoar é:
Colocar no chão uma mochila de 20 kg depois de subir 15 km numa encosta de montanha.
Libertar um prisioneiro e descobrir que o prisioneiro era você.
Dançar ao ritmo do coração perdoador de Deus.
Nosso único escape da injustiça cruel do passado e nossa única passagem às possibilidades criativas do futuro.
O poder mais criativo concedido ao espírito humano e o poder de curar as feridas de um passado que não se pode mudar.
Uma jornada: quanto mais profunda a ferida, mais longa ela será.
A cura da dor e não a tentativa de evitá-la.
PorLewis B. Smedes
Lewis Smedes (1921-2002) era professor de teologia e ética em Fulness Seminary, na Califórnia, EUA, e autor de vários livros, como “Forgive and Forget” (Perdoe e Esqueça) e “The Art of Forgiving” (A Arte de Perdoar). Este artigo apareceu originalmente na edição de 7 de janeiro de 1983, da revista “Christianity Today”. Traduzido e publicado com permissão de Christianity Today International, Carol Stream, IL, EUA.
Artigo extraído do site www.adorar.net