Tradução e adaptação elaboradas pelo Pr Silvio Dutra, de citações extraídas do comentário de autoria de Thomas Manton, sobre o segundo capítulo da epístola de Tiago.
“Porque o juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o juízo.” (Tiago 2.13)
Tiago disse no versículo anterior: “Falai de tal maneira e de tal maneira procedei como aqueles que hão de ser julgados pela lei da liberdade”. Ele lembra ao cristão que ele deveria proceder como quem não está debaixo do rigor da aliança das obras; porque se você se permitir qualquer pecado ou fazer qualquer coisa contra qualquer parte da lei régia, você nada pode esperar além de juízo sem misericórdia. Ser cruel em não prover os seus irmãos e não ter misericórdia para com eles é um pecado que vai colocá-lo nesta condição, não somente por ser isto uma transgressão da lei, mas um pecado especial, que parece requerer tal julgamento.
“Porque o juízo será sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia”
Nesta expressão Tiago se reporta ao efeito do pacto de obras, que é o julgamento, sem qualquer mistura de misericórdia, a lei do pacto feito com Adão e sua descendência, nada faz para diminuir a transgressão, como também implica a retaliação de Deus: homens duros acharão justamente uma dura recompensa.
(A aliança feita por Deus com Adão para que em tudo fosse obedecido, e que a menor transgressão de Sua vontade seria punida com a morte (física, espiritual e eterna) permanece em pleno vigor. Daí decorre que todos morrem à semelhança de Adão, porque todos são pecadores. A força do argumento do apóstolo Tiago neste texto de Tg 2.13, para os cristãos, é que, apesar de não estarem debaixo do juízo aqui referido no verso 13, deveriam ser cuidadosos no exercício da misericórdia, uma vez que há tal juízo terrível repousando sobre aqueles que estão debaixo da lei e não da graça, revelando o quanto desagrada à justiça de Deus não sermos misericordiosos. Com esta advertência, Tiago tencionava despertar para a verdade aqueles que havia repreendido anteriormente por estarem fazendo acepção de pessoas na reunião pública da igreja, por desprezarem os pobres e honrando os ricos, e que não demonstravam a evidência de uma fé viva, por negligenciarem as necessidades de seus irmãos na fé. Então a misericórdia é um dever, mesmo para os que estão debaixo da nova aliança com Cristo – nota do tradutor.)
“A misericórdia triunfa sobre o juízo” – A palavra é κατακαυχᾶται (glória, levantar a cabeça), como um homem fará quando algo é feito com glória e sucesso. Esta última parte do texto, tem sido interpretada por alguns como sendo a misericórdia de Deus, outros a entendem como se referindo à misericórdia do homem. Aqueles que se referem a Deus, pretendem expô-lo desta forma: Eles merecem um juízo severo, e se não for assim com todos, é apenas porque a misericórdia de Deus triunfou sobre a Sua justiça. Os que se referem à misericórdia do homem o expõem deste modo: no conflito e competição entre os atributos relativos aos pecadores, a misericórdia adquire a vitória e a superioridade, e assim se alegra, como quando os homens repartem os despojos.
O apóstolo fala aqui da misericórdia que o homem mostrou ao homem: porque no texto parece haver uma tese e uma antítese, uma posição e uma oposição. Na posição, o apóstolo afirmou que o impiedoso não deve encontrar qualquer misericórdia; na oposição, que a misericórdia achou o juízo vencido; isto é, aquele que se compadece não está em perigo de condenação, pois Deus não vai condenar aqueles que imitam a sua própria bondade, e, portanto, ele pode se regozijar quanto a seus temores, como quem tem escapado. Agora, o ortodóxo, que vai por este caminho de aplicar isto à misericórdia do homem, não faça dessa aplicação uma causa da nossa aceitação por Deus, mas uma evidência; a misericórdia mostrada aos homens, sendo um seguro penhor daquela misericórdia que ele deve obter com Deus. Confesso que tudo isso é racional; mas olhe para a frase do texto, e você vai encontrar alguns inconvenientes no presente parecer, pois será uma fala de um som e uma construção mais ásperos afirmar que a nossa misericórdia deve triunfar sobre o juízo de Deus; porque, então, o homem parece ter algum tipo de glória diante de Deus, que é o contrário do que Davi afirmou, e que nega que qualquer obra nossa possa ser justificável à Sua visão:
“Não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não há justo nenhum vivente.” ( Sl 143.2), ou ser capaz de segurar a cabeça ou o pescoço contra o Seu juízo, contrariando a Cristo, que proíbe esta alegria contra o julgamento divino, embora estejamos conscientes de nós mesmos quanto à realização do nosso dever, Lucas 17.10, e contrariamente a Paulo que diz não haver qualquer glória nossa diante de Deus (Rm 4.2).
Todo o triunfo que temos contra a justiça de Deus é a vitória da sua misericórdia, por isso eu creio que esses dois sentidos podem ser bem ajustados e modificados cada pelo outro, assim: É a misericórdia de Deus que se regozija sobre a sua justiça, e é a misericórdia no homem que nos possibilita regozijarmo-nos na misericórdia de Deus, e, portanto, a sabedoria do apóstolo Tiago deve ser observada na elaboração do texto de modo que pode ser indiferentemente compatível com ambos os sentidos. Sim, sobre uma consideração mais precisa e íntima das palavras, eu acho que a oposição no texto do apóstolo não pode repousar tanto entre falta de misericórdia e misericórdia, quanto entre o juízo sem misericórdia e o juízo vencido por misericórdia.
O homem misericordioso se gloria como aquele que se compadece recebeu, pela misericórdia de Deus, regozijar-se com a justiça de Deus em seu nome; ele pode se regozijar sobre Satanás, sobre o pecado, a morte, o inferno, e sobre sua própria consciência. No tribunal do céu a misericórdia de Deus se alegra, no tribunal da consciência, a misericórdia do homem.
A condição dos homens sob o pacto das obras (diferente do pacto da graça em Jesus) é muito miserável. Eles se encontram com a justiça, sem qualquer misericórdia.
A palavra de Deus não fala de qualquer consolo para eles. Ou dever exato, ou miséria extrema, eram os termos desse pacto das obras. “Cumpra e viverás” e “Não cumpra e morrerás”, é a única voz que você deve ouvir enquanto você estiver debaixo daquele mandamento dado a Adão e à sua descendência. Deus perguntou a Adão: Que fizeste? Não tens te arrependido? Adão havia morrido espiritualmente em razão da desobediência e necessitava do arrependimento que é para a vida, para si mesmo, e isto se aplica, individualmente, a cada pessoa da sua descendência.
Por isso, se lê em Ezequiel 18, “A alma que pecar essa morrerá”. A mínima violação é fatal. Ao homem caído o dever daquela aliança é impossível, a sua pena é intolerável. Pecados de omissão não podem ser expiados por deveres subsequentes. Pagamento de novos débitos não quitarão os antigos. Você teria esperança na misericórdia de Deus? Um atributo não é exercido para prejudicar um outro. Naquele pacto Deus tencionou glorificar a justiça, e você está compromissado com uma lei justa, e tanto a lei e a justiça devem ser satisfeitas. Como a palavra não fala de qualquer conforto, assim não há qualquer providência. Todas as dispensações de Deus são judiciais: “Assim diz o SENHOR Deus: Mal após mal, eis que vêm” (Ez 7.5) . Suas cruzes são completamente maldições.
Não há nada que lhes sucedeu que estejam sob o pacto da graça, mas há algo bom nisto; algo para convidar a esperança, ou para aliviar a tristeza: “Na ira Deus se lembra da misericórdia” (Hab 3.2). A vara não é transformada numa serpente, e, portanto, consola (Sl 23.5).
Considerando que, todos estas consolações são salgadas com uma maldição, e em seus desconfortos não há nada, senão um rosto e uma aparência de ira. Mas o pior da aliança das obras é daqui em diante. Quando ele tratou com seu povo, tudo em misericórdia, ele lidará com todos eles em julgamento: , “…também esse beberá do vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da sua ira,”, ou seja, somente o ingrediente da ira (Ap 14.10).
No entanto, é dito no Sl 75.8, “Porque na mão do SENHOR há um cálice cujo vinho espuma, cheio de mistura; dele dá a beber; sorvem-no, até às escórias, todos os ímpios da terra.”, cheio, misturado com todos os tipos de pragas, mas sem mistura, sem a menor gota de misericórdia.
Oh! como suportarão aqueles tormentos que estão sem misericórdia e sem fim?, “Eles serão lançados no lago que arde com fogo e enxofre, onde serão atormentados para todo o sempre” (Ap 20.7), nada há mais doloroso para o sentido do fogo, e tudo isso para todo o sempre. Há uma eternidade que é sem medida e sem fim, que é o inferno do inferno, que depois que mil anos tiverem passado, o verme não morre, e o fogo não se apaga.
Bem, então, o inferno deve despertar aqueles que estão sob o pacto de obras para virem sob a bandeira da graça. Aqueles que estão condenados naquela coorte têm liberdade de apelar (recorrer) a outra (a do evangelho), e quando você estiver morto e perdido debaixo da primeira lei, você pode estar vivo para Deus, Gál 2.19. Deixe que o inferno, o vingador do sangue – o Goel do Velho Testamento – faça você fugir para a cidade de refúgio, que é Cristo. Mas você vai dizer, que agora não está sob o pacto das obras? O pacto das obras não foi feito apenas com Adão, mas com toda a sua descendência. A condição daquela aliança feita por Deus com Adão e com a sua descendência era de obediência perfeita ou então a morte. E cada homem natural, enquanto naturais, enquanto apenas um filho de Adão, está obrigado ao teor da mesma. A forma desta lei corre universalmente, e por isso foi reafirmada no pacto da Lei, através de Moisés, pois se diz: “Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las.” (Gál 3.10).
É maldito todo aquele que quebrar um mandamento, sem exceção, senão aquele que estiver debaixo da graça de Jesus. Se a lei das obras tivesse sido revogada e colocada de lado hoje, desde a queda de Adão, Cristo não ter-se-ia feito maldição como nosso substituto e penhor, pois ele carregaria a nossa dívida com ele, ao submeter-se ao dever e à pena do nosso compromisso, por isso se diz que ele nasceu sob a lei, para remir os que estavam sob a lei, e assim também em Gál 3.13 “Cristo se fez maldição por nós”, isto é, no nosso lugar.
E, novamente, a lei do pacto de obras com Adão e com a sua descendência não é revogada, porque é uma regra imutável, segundo a qual Deus procede: “Nem um til da lei passará” ( Mt 5.18), até que tudo seja cumprido, tanto pela criatura, ou sobre a criatura. É o pacto de obras que condena todos os filhos de Adão. O rigor do que trouxe Cristo do céu para cumpri-lo para os crentes. Ou devemos ter Cristo para cumpri-lo por nós, ou pela nossa violação do mesmo, devemos morrer para sempre. E, portanto, o apóstolo Tiago diz que no dia do juízo Deus procederá com todos os homens de acordo com as duas alianças.
Alguns são julgados pela lei da liberdade, e alguns pelo juízo sem misericórdia, os dois pactos têm dois cabeças principais para os aliançados, para eles e seus herdeiros – Adão e Cristo, portanto, enquanto tu és herdeiro de Adão, tu tens o compromisso de Adão sobre ti. O pacto das obras foi feito com Adão e sua descendência, que eram todos homens naturais.
O pacto da graça com Cristo e sua descendência, que são os crentes, (que são julgados segundo a lei da liberdade que Ele conquistou para os que nele creem. Liberdade da condenação eterna, e de tudo o que se referia ao pacto das obras, cuja lei permanece sobre todos os descendentes de Adão que não estão em Cristo. Nos capítulos 4 e 5 de Romanos, o apóstolo Paulo faz referência a ambos os pactos e este compromisso com Adão e Cristo, quer para a morte no primeiro, quer para a vida, no segundo – nota do tradutor).