Ele faz parte de uma geração que produzia música evangélica com o objetivo de mudar o mundo e a própria Igreja. Coisa rara nos dias de hoje, em que estratégias de marketing já tem espaço garantido na produção de um novo disco. Guilherme Kerr começou sua caminhada na música evangélica ainda no anos 1970, em plena ditadura militar. Influenciado por poetas como Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes se sentiu desafiado a pensar no que Deus teria reservado para o Brasil. No entanto, mais mudanças aconteceram na produção musical cristã e, de repente, ele se viu cercado pela mercantilização da música evangélica. “Fui avisado explicitamente pelos ‘fundadores’ do movimento gospel que era hora de me tornar ‘gospel’ ou ‘morrer’ do ponto de vista comercial”, conta. Encurralado pelas circunstâncias — segundo ele, as portas para o seu ministério estavam fechadas no Brasil —, decidiu aceitar um convite da igreja Waterways Ministries, na cidade de Deerfield Beach, na Flórida, e mudou-se para os Estados Unidos. Assim, determinado, recomeçou sua carreira em terras estrangeiras já na casa dos 50 anos. A seguir, leia entrevista exclusiva concedida por e-mail à Revista VM.
Como um dos grandes expoentes do uso da musicalidade brasileira na adoração, por que você optou por morar nos EUA?
— Diversos fatores contribuíram. O primeiro é que sempre tive convicção de que um dia Deus me levaria a ministrar em outro país. Ele mesmo me equipou e preparou para isso e algumas vezes falou profeticamente que me levaria às nações. O segundo fator foi que as portas de um ministério para mim no Brasil começaram a se fechar — provavelmente por minha própria falta de determinação ou erros que cometi como pastor. Já o terceiro fator foi a oportunidade que se abriu com um convite de me mudar para os EUA e servir como pastor auxiliar.
A gente percebe atualmente que há muitos cristãos decepcionados com a Igreja institucionalizada. No Brasil, este é um fenômeno relativamente recente. Como você, que acompanhou de perto a evolução dos evangélicos no país, observa esse fenômeno?
— Vejo decepção e desapontamento com a igreja institucionalizada desde meus tempos de Vencedores Por Cristo, no início da década de 1970. Mas a linguagem musical começou a mudar e a maioria das igrejas resistiu por um tempo. Depois acabaram cedendo por que parecia ser o caminho possível de se manter os jovens nas igrejas. Minha percepção tem mais a ver com a função e a responsabilidade dos pastores — e quem sou eu para falar de qualquer um? Mas ainda creio que o rebanho reflete a visão e a direção dos líderes — e eles é que serão cobrados pelo Senhor no dia de passar a limpo todas as coisas.
Nas décadas de 1970 e 1980, bandas e grupos de louvor surgiam com uma proposta engajada de mudar o mundo e buscar aceitação dentro das igrejas, resistentes às mudanças. Hoje, há uma grande preocupação com marketing nesses grupos. Como você vê o panorâma atual da música evangélica?
— Vejo com muita tristeza e preocupação, mas era possível antever o que está acontecendo agora. Aliás, fui avisado explicitamente pelos “fundadores” do movimento gospel que era hora de me tornar “gospel” ou “morrer” do ponto de vista comercial. Mais que qualquer outra coisa, esta é uma visão puramente mercantilista, do tipo “vamos vender o nosso produto”. Aquele que um dia entrou no templo e colocou para fora os mercadores do templo, lembrando-os de que “a casa do Pai haveria de ser chamada casa de oração para todos os povos”, virá em breve.
Quais foram as suas principais influências musicais? E o que você está ouvindo hoje?
— No início de minha vida cristã ouvia muito as músicas do sul da Califórnia, dos grupos ligados à Maranatha Music. Pouco tempo depois também surgiu o ministério do John Wimber, que hoje é conhecido como Vineyard Music. Também ouvia MPB — a poesia e o desafio de Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes —, pois eram os anos de fim de ditadura militar. Esses poetas me desafiaram a pensar no que Deus teria para nós aqui no Brasil. Hoje continuo ouvindo João Alexandre, Nelson Bomilcar, Jorge Rehder, entre outros. Ouço também David Ruis, da Vineyard do Canadá; Rita Springer, que pude assistir ao vivo e gostei demais; e um grupo sensacional chamado Watermark, com um casal excepcionalmente ungido, muito musical e autêntico. Aqui nos EUA também têm muita música cristã que visa apenas o lado comercial.
Como se dá o seu processo de criação musical? Quais elementos são essenciais para um momento criativo?
— É essencial ter um amigo criador de boas melodias, a paz gostosa que o Senhor concede aos que são seus (mesmo em meio à adversidade), o “desligar” das outras coisas e preocupações do dia-a-dia, uma caneta e uma folha de papel. O processo segue sozinho a partir daí. Às vezes a gente ora, às vezes conversa, ou então a melodia já está pronta e a gente intui uma letra a partir do que ela comunica ao nosso espírito. Acontece também de a letra sair naturalmente. Eu anoto e depois encaixo a música. Outras vezes, letra e música nascem juntas como se já existissem na nossa alma e viessem à tona pelo toque de Deus. Como diz na Bíblia: “toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, que não muda como sombras inconstantes” (Tg. 1:17).
Quais são os fatores essenciais para a formação de um líder de louvor no século XXI?
— Oração, intimidade com Deus e com sua Palavra, comunhão com a igreja e submissão à autoridade espiritual.
E quais são as maiores preocupações que pastores devem ter na hora de formar esse líder?
— O difícil equilíbrio entre delegar autoridade e cobrar responsabilidade e testemunho de vida. Também o cuidado de ser mentor espiritual e verificar se o líder que está sendo treinado tem realmente vocação.
O louvor congregacional é o estilo mais cantado nas igrejas hoje e isto se reflete na vendagem de álbuns. Você já consegue ver um novo estilo surgindo com o mesmo potencial?
— Creio que o louvor — definido como linguagem vertical de adoração e gratidão a Deus — é o principal dos quatro possíveis caminhos da música na igreja. Os outros três são música de evangelismo, de instrução e de denúncia profética. Mas estes três derivam sua vida e sua autenticidade do primeiro. É possível que nos últimos dias, que já tem chegado sobre nós, uma música apocalíptica, definida como a experiência da igreja no final da história, ganhe também destaque. Mas isso só os próximos anos nos dirão.
Assim como a teologia, a música evangélica brasileira sofreu grande influência dos EUA. Como os dirigentes de louvor americanos vêem a música feita no Brasil? Ela é conhecida?
— Acho que eles ainda não conhecem a música mais brasileira e evangélica. Mas o Senhor, que levanta e engrandece aquilo que ele quer, ainda pode ter planos a este respeito. Afinal, Apocalipse 7 nos garante que ao redor do trono e do Cordeiro serão reconhecidas gente de toda tribo, povo, língua e nação, e que estarão louvando. Deve haver um espaço para a língua portuguesa e para a música brasileira no coração do Pai.
Entrevista retirada do site www.vineyardmusic.com.br