“Ora, antes da Festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim.”(João 13.1)
Este verso é uma espécie de prefácio à história do lava-pés, e é um prefácio maravilhoso de fato, quando vinculado aos versos três a cinco do mesmo capítulo: “sabendo Jesus que o Pai tudo confiara às suas mãos, e que ele viera de Deus, e voltava para Deus, levantou-se da ceia, tirou a vestimenta de cima e, tomando uma toalha, cingiu-se com ela. Depois, deitou água na bacia e passou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido.” Este é o marco do quadro que nos é apresentado aqui. O que poderia ser comparado a ele? É como uma porta de entrada para a cidade de ouro onde cada uma das portas é uma pérola e, de fato, este versículo é uma joia de valor inestimável. O quadro do lava-pés é inserido neste marco precioso.
Este ato simbólico e memorável aconteceu no final da vida de nosso Senhor aqui embaixo. A Paixão foi o fim de sua vida, e podemos considerar que a Paixão estava prestes a começar. Naquela mesma noite, iria para o Getsêmani, e em menos de 24 horas, as amadas mãos que lavaram os pés dos discípulos, seriam cravadas no maldito madeiro, e Aquele que falou com tanta ternura para seu pequeno grupo de seguidores, iria experimentar as agonias da sua morte .
É importante saber como um homem se sente quando confrontado com a crise real de sua vida. Ele tem cultivado uma ampla gama de sentimentos ao longo de sua carreira, mas qual tem sido a sua paixão dominante? Vocês a verão naquele momento. Tornou-se um provérbio que “a paixão dominante é forte na morte”, e há uma grande verdade nesse dito. À luz da partida do homem, veremos qual era o poder que realmente o governou.
Foi precisamente assim com o nosso divino Senhor. Ele havia quase chegado ao fim da sua vida terrena. Se aproximava um período de terrível agonia. Estava prestes a suportar a grande e terrível morte na cruz, pela qual ele iria comprar a redenção eterna para todo o Seu povo. O que prevalecia em sua mente naquele momento? O que pensaria de seus discípulos, agora em que teria tantas outras coisas para pensar, agora que lhe vinha o pensamento de sua morte se aproximando, agora que a agonia e suor de sangue do Getsêmani estavam tão perto? O que Jesus pensaria de Seus discípulos num momento como esse, e sob tais circunstâncias? Nosso texto é a resposta para estas perguntas: “sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim.” Na Ceia da Páscoa seu amor ardeu com a mesma intensidade de sempre. Ah, e daria a impressão de que nessa maravilhosa oração que está registrada no capítulo dezessete de João, e o maravilhoso discurso que a acompanhou, o amor de Jesus brilhou mais claramente do que nunca! Então foram acesas as chamas do grande farol, alimentadas pelos ventos impetuosos soprando ao redor do Salvador, e adquiriram a força de uma fogueira. Agora eles podem dizer de Jesus: “Eis como ele amava os seus discípulos!” Porque até o final de sua vida, ele amou a quem havia amado desde o princípio.
Com esse pensamento em suas mentes, eu lhes peço que me sigam enquanto esmiúço o texto, enfatizando cada uma de suas palavras.
I. Primeiro, então, em relação ao nosso bendito Senhor, consideremos com quem se associava, e quem fala este versículo agora. Eles são chamados de “seus”. É uma breve descrição, porém maravilhosamente completa: “Como havia amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.”
“Os seus”. Havia um círculo e, por vezes, um grande círculo em torno do Salvador, composto de publicanos e pecadores, e Ele tinha uma medida de amor para todos eles, um desejo benevolente para lhes abençoar. Mas havia um círculo íntimo, constituído pelos doze apóstolos e algumas mulheres piedosas, que se lhe haviam unido. Estes eram “os seus”. Muitas vezes, lhes explicou o significado oculto de uma parábola, que permaneceu fechado para a multidão. Frequentemente lhes apresentava pratos requintados especialmente reservados para a sua mesa, e que não foram destinados para a multidão. Pão e peixes foram suficientes para a multidão, mas Jesus tinha melhores iguarias para “os seus”. Eles eram um povo especial. Muitos os conheciam, muitos os desprezavam, mas Jesus lhes amava, e esta era a principal razão que os converteu em “os seus”.
Vocês sabem como chegaram a ser “os seus”. Ele os escolheu antes da fundação do mundo. Um homem pode certamente escolher a sua própria esposa, e Cristo escolheu a Sua própria esposa, sua própria igreja, e enquanto a Escritura permanecer, essa doutrina não poderá nunca ser erradicada. Antes de que a estrela da manhã conhecesse o seu lugar, e que os planetas girassem em suas órbitas, Cristo escolheu, e, o havendo feito, manteve a sua escolha. Ele os elegeu por Seu amor, e lhes amou por sua eleição.
Havendo-lhes amado, e elegido, os desposou Consigo. “Eles serão meus”, ele disse ele, “Eu vou ser o seu marido, eu vou ser osso de seus ossos e carne de sua carne”. Portanto, quando chegou a plenitude dos tempos, Ele veio aqui, assumindo nossa humanidade, para que pudesse ser visto como o verdadeiro Esposo “dos seus”. “Seus” por eleição, “seus” por matrimônio.
Eram “os seus” também, pois seu Pai lhos deu a Ele. O Pai os entregou em Sua mão. “Eram teus”, disse Jesus, “tu mos deste”. O Pai amou o Filho e colocou todas as coisas na sua mão; todavia Ele fez uma entrega especial de seu próprio povo escolhido. Ele lhe deu esse povo, fazendo um pacto de fiança a favor deles, que estabelecia que como eram suas ovelhas, postas debaixo do seu cargo, Ele as devolveria e nenhuma delas deveria ser destruída pelo lobo, ou morrer pela geada ou calor, mas todas teriam que passar debaixo do Seu cajado para serem contadas. Esse grandioso Pastor das ovelhas cuidará de todo o rebanho que lhe foi encomendado; não perderá uma só de suas ovelhas ou cordeiros. No final, Jesus dirá: “Eis-me aqui, ó Pai, e os que me deste e nenhum deles perdi.” Assim, eles são “os seus” como um dom do Pai.
Mas aqueles a quem ele chamou de “os seus” em breve seriam seus por uma compra maravilhosa. Ele via a redenção deles como já realizada, pois ele diz a seu Pai em sua oração: “Tenho consumado a obra que me deste para fazer”. Amados amigos, vocês já pensaram o quão caros somos nós para Cristo por Sua redenção? “não sois de vós mesmos, fostes comprados por preço”. Já perceberam o preço que foi pago por vocês? Às vezes eu acho que se eu estivesse lá, lhe teria dito: “Oh, grande e glorioso Senhor, eu peço para que não pagues esse preço por mim, é um demasiado sacrifício que sejas feito pecado por mim para que eu possa ser feito justiça de Deus em Ti!” Mas ele quis fazê-lo. Ele nos amou mais do que a si mesmo. Ele queria fazê-lo, e pagou o preço da nossa compra, e nós somos seus; e não recuaremos da alegre confissão. Vocês têm todo o direito de serem chamados “os seus” por lhe ter custado tanto nos redimir.
Mas nós nos temos nos convertido em “os seus” por nos ter conquistado. Ele chamou os seus discípulos por sua graça; atraiu a cada um deles com laços de amor, e o seguiram: e o mesmo sucede com vocês e comigo. Lembram quando ele os atraiu? Nunca poderiam esquecer quando finalmente se submeteram ao poder do amor dessas cordas de amor, dessas cordas humanas. Muitas vezes, desde então têm cantado:
“Oh, feliz o dia, em que fixou a Tua eleição
Em mim, meu Salvador e meu Deus;
Bem pode se alegrar este coração radiante,
E pregar em todos os lugares seu arrebatamento.
Está feita! A grande transação foi feita;
Eu sou do Senhor, e Ele é meu;
Ele me atraiu, e eu o segui,
Encantado por confessar a voz divina.”
Amados, vocês são “os seus” agora, porque se têm submetido a Ele. Vocês se deleitam com o pensamento de que são Seus. Não há maior alegria para vocês do que sentirem que pertencem a Cristo. O fato de que são verdadeiramente de Cristo, é o fundamento de inúmeros prazeres e bênçãos para o seu coração. Jesus nos chama de “os seus”, suas ovelhas, seus discípulos, seus amigos, seus irmãos, membros do Seu corpo. Que belo título temos “os seus”! Tenho ouvido de alguns que consideram uma honra serem chamados de: “pertencentes ao Diabo”. Eu espero que vocês tenham escapado de um título como esse; e agora sejam propriedade de Cristo.
Agora eu espero que possa dizer que desejamos servir a Cristo em nossa vocação. Estou feliz por estar entre os poucos favorecidos cuja vocação é servir a Cristo, aqueles que estão autorizados a dar todo o seu tempo e todo o seu vigor a esse amado serviço. Nós somos “os seus”. Porém vocês também são “os seus” se creem nele. Pertencem a Cristo na cidade, ou no campo. Eu não estou perdendo o ponto quando eu digo isso, porque Cristo tem “os seus” em todas as classes. “Os seus” eram pescadores; “os seus” que lançavam a rede ao mar da Galiléia, “os seus” eram os pobres deste mundo. Eram homens iletrados e incultos, e ainda assim eles eram “os seus”. Por isso disse o apóstolo: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são.” Oh, a admirável soberania do amor divino!
Eu confio que há alguns hoje que Cristo chama de “os seus”, embora eles ainda não saibam que é assim. Eles foram comprados com Seu sangue, e não estão conscientes disso? Eles foram escolhidos antes da fundação do mundo, e todavia ainda não o descobriram? Que o Senhor lhes revele o Seu amor eterno, e lhes ajude a fazer firme a sua vocação e eleição a partir de agora!
II . Agora, em segundo lugar, têm uma descrição completa do que Jesus tinha sentido por eles até esse momento: “Tendo amado os seus”.
Muito pode ser feito com uma pincelada! Às vezes me maravilho ao ver tudo o que pode fazer um grande artista com um simples retoque; sua obra parecia inacabada, mas tendo tomado um pincel, e tendo dado algumas pinceladas, a tela que estava morta voltou à vida diante do espectador. Agora, o apóstolo João é um grande mestre na arte de pintar com palavras, e nos dá a história completa do relacionamento de Cristo com seus discípulos, nestas poucas palavras: “Tendo amado os seus”.
Pois, recordem que foi assim que começou com eles. Eram pobres e insignificantes, porém, lhes amou, e mostrou o seu amor por eles chamando-lhes para serem Seus discípulos. Esse amor operou em seus corações, e lhes fez obedientes ao seu chamado. Ele começou lhes amando. Isaías diz: “agradou a ti livrar a minha vida da cova da corrupção.” Não conheço uma descrição mais bela da conversão e da salvação. O amor de Deus nos eleva amorosamente do inferno, e amorosamente nos entrega a Cristo. Assim também Cristo amou Seu povo desde o início, e demonstrou o seu amor atraindo-o para si, e as cordas que usou para atraí-lo foram as cordas de Seu amor.
Tendo começado com o amor, continuou ensinando, mas todo o seu ensino era amor, porque eles não eram bons estudantes, tão propensos a esquecer, tão lentos para lembrar, que teria que continuar lhes amando, caso contrário, teria cansado de lhes ensinar. “Estou há tanto tempo convosco, e tu não me conheces, Felipe?” Há muito amor nessa pergunta. O mesmo aconteceu quando estava lidando com Tomé, em sua ternura, se submeteu sem pedir prova de Seu discípulo incrédulo. Ele disse: “Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos; chega também a mão e põe-na no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente.” Todo o seu ensino foi exposto com lábios de amor, e toda a sua instrução consistia em lições de amor.
O Senhor sempre amou os Seus discípulos, embora suas naturezas fossem surpreendentemente imperfeitas, em todos eles. Nenhum deles tinha o que se poderia chamar de um caráter maduro, com exceção, talvez, de João, e ainda que era de temperamento precipitado, pois queria mandar descer fogo do céu sobre alguns samaritanos. No entanto, o Senhor sempre manteve seu amor. Ele tinha decidido amá-los, e nunca deixou de amá-los, enquanto ele esteve com eles, e tem continuado a lhes amar desde então. Na época, em que iria passar deste mundo para o Pai, eles precisavam que seus pés fossem lavados, e Ele os amava o suficiente para prestar-lhes um serviço, ainda que humilde. Todas as fraquezas, imperfeições, carnalidade , torpeza, a lentidão de suas naturezas, que ele via muito mais claramente do que eles, não lhe induziram a deixar de amá-los: “Como havia amado os seus que estavam no mundo, os amou até o fim.”
O mais estranho de tudo foi que, quando ele abriu seus olhos e contemplou o futuro, viu que em breve seriam covardes , incrédulos, porém continuou a amá-los da mesma maneira. Ele disse: “Todos vós vos escandalizareis em mim esta noite”, e assim ocorreu, pois “Então todos os discípulos o abandonaram e fugiram.” Ele disse a Pedro que ele o negaria três vezes, e assim foi, porém foi certo todo o tempo que “Como havia amado os seus que estavam no mundo, os amou até o fim.” Isso resume tudo. Nunca houve uma pitada de ódio, nunca houve qualquer raiva, nunca houve qualquer fadiga em Jesus em relação aos seus discípulos, mas o tempo todo foi: “Como havia amado os seus que estavam no mundo, os amou até o fim.”
Parte inicial de um texto de Charles Haddon Spurgeon, em domínio público, traduzido e adaptado pelo Pr Silvio Dutra.