Coisa espantosa e horrenda se anda fazendo na terra: os profetas profetizam falsamente, e os sacerdotes dominam de mãos dadas com eles; e é o que deseja o meu povo. Porém que fareis quando estas coisas chegarem ao seu fim? – Jeremias 5:30/31.
Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça. – João 7:24
Ou não sabeis que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deverá ser julgado por vós, sois, acaso, indignos de julgar as coisas mínimas? Não sabeis que havemos de julgar os próprios anjos? Quanto mais as coisas desta vida! Entretanto, vós, quando tendes a julgar negócios terrenos, constituís um tribunal daqueles que não têm nenhuma aceitação na igreja. Para vergonha vo-lo digo. Não há, porventura, nem ao menos um sábio entre vós, que possa julgar no meio da irmandade? I Coríntios 6:2/5
Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti -lhe face a face, porque se tornara repreensível. Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim, veio a apartar -se, temendo os da circuncisão. E também os demais judeus dissimularam com ele, a ponto de o próprio Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles. Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de todos… Gálatas 2:11/14.
INTRODUÇÃO
O cristão pode julgar? Esta é uma pergunta que poderia ser irrelevante. Poderia não fosse a impressionante realidade que estamos vivenciando nos dias de hoje. Este autor tem escritos diversos artigos publicados no jesussite.org (2) os quais têm motivado alguns leitores a lhe escreverem mensagens eletrônicas. Alguns escrevem para agradecer, outros apenas para elogiar e outros para expressar sentimentos que variam de frustração à ira. Entres este último grupo as críticas podem ser facilmente classificadas em quatro categorias, a saber:
1) Em primeiro lugar, o campeão disparado, é a citação de alguns versículos bíblicos, com especial ênfase nas passagens de Mateus 7:1/5 e Romanos 14:4/10 visando mostrar quão errado, impróprio e até anti-cristão é o ato de julgar.
2) Em segundo lugar estão aqueles que sugerem que não é possível julgar a ninguém porque somente Deus sabe os verdadeiros motivos das pessoas. Estes sugerem que devemos deixar tudo correr como tem que correr e aguardar o juízo final de Deus.
3) Em terceiro lugar está a turma do “deixa disso” alegando que toda crítica é perniciosa e causa divisões no corpo de Cristo. “Irmão Alex”, me escrevem “temos que manter a unidade a qualquer custo”.
4) Em quarto lugar estão aqueles que pedem para que nomes não sejam mencionados porque este ato prejudica demais aos citados. Neste último lote se encontram muitos pastores que consideram um sinal de maturidade e maior espiritualidade não citarem nomes quando querem fazer uma crítica.
O autor não consegue evitar a profunda tristeza que experimenta ao perceber nestas mensagens eletrônicas o nível em que se encontram os cristãos em geral e a cristandade (3) em particular. Um velho professor e amigo costumava dizer o seguinte: “Alex, a ignorância é o paraíso”. E hoje, 25 anos depois, sou obrigado a concordar absolutamente com ele.
Sinto-me motivado a escrever este artigo porque observo que muito desta ignorância é alimentada pelos próprios indivíduos que gostam de se intitular “Pastores, Reverendos, Mestres, Doutores, Bispos” e, ultimamente, “Apóstolos”. Em vez de ensinarem o que a Bíblia diz acerca da responsabilidade cristã de julgar preferem alimentar a ignorância do povo. Este ato, o de alimentar a ignorância, visa à auto defesa que procura colocar estes indivíduos acima e fora do alcance de qualquer admoestação, censura ou repreensão.
E infelizmente, para complicar ainda mais a situação, os crentes em geral se submetem a este tipo de abuso espiritual, fazendo-o, a grande maioria, de boa vontade. Este problema, a associação daqueles que têm a responsabilidade de guiar com aqueles que são guiados, para perverter a Palavra de Deus, não é novo. O profeta Jeremias enfrentou situação semelhante e se não soubéssemos que o mesmo profetizou entre 627 a 580 a.C. teríamos a impressão que ele estava se referindo aos nossos dias tamanha a atualidade de suas palavras. O profeta Jeremias diz o seguinte: Coisa espantosa e horrenda se anda fazendo na terra: os profetas profetizam falsamente, e os sacerdotes dominam de mãos dadas com eles; e é o que deseja o meu povo. Porém que fareis quando estas coisas chegarem ao seu fim? – ver Jeremias 5:30/31. Para entendermos de forma mais precisa estas palavras de Jeremias é necessário compreendermos o contexto em que elas foram ditas. A semelhança com os nossos dias, como se verá, é inescapável!
I – O EXEMPLO DO PROFETA JEREMIAS
O profeta Jeremias começou a profetizar nos dias do rei Josias, filho de Amon, que reinou (Josias) sobre o reino de Judá de 640 a 609 a.C. Nos dias de Josias uma cópia do “Livro da Lei” de Moisés foi encontrada na “Casa do SENHOR”, isto é, no templo em Jerusalém pelo sumo sacerdote Hílquias – ver II Reis 22:8/20 e II Reis 23:1/3. A leitura deste manuscrito descoberto no templo, causou profunda comoção no rei Josias que chegou até mesmo a rasgar suas roupas, o que era um ato externo que indicava como o rei estava se sentindo por dentro – ver II Reis 22:11. O rei sabia o valor do documento que acabava de ser lido para ele. Este era um livro, revelado por Deus, pelo qual, de forma padronizada e objetiva, todas as tradições podiam e deveriam ser julgadas.
Os sacerdotes e os príncipes do povo eram os que tinham mais a perder com esta descoberta, pois os privilégios que desfrutavam não eram sustentados pela Palavra de Deus. Para se protegerem contra a perda destes privilégios estes sacerdotes tinham o apoio de falsos profetas que vinham trazendo falsas revelações da parte de Deus. É contra este corporativismo que Jeremias se levanta. Os falsos profetas que segundo o texto profetizavam falsamente, isto é, falavam mentiras, estavam intimamente associados, de mãos dadas, com os sacerdotes para dominar sobre o povo de Deus. E o próprio povo de Deus aprovava tal dominação. Para Jeremias esta situação só podia ser descrita de uma maneira: era algo espantoso e horrendo.
O coração do problema, como entendido pelo profeta Jeremias, consistia em que havia uma aliança perversa entre os falsos profetas, os sacerdotes e o povo para prestarem um culto a Deus que fosse somente “da boca para fora”. Tal hipocrisia já havia sido denunciada pelo próprio Deus através do profeta Isaías – ver Isaías 29:13. E foi novamente denunciada pelo próprio Senhor Jesus em Seus dias – ver Mateus 15:7/9. Nos dias de Jeremias não havia interesse nem da parte dos falsos profetas, nem dos sacerdotes e nem do povo de reformar honesta e completamente seus caminhos. Para estes, uma vez mantidas as aparências estava tudo muito bom. Jeremias denuncia esta religiosidade falsa, superficial e pretensiosa.
A pergunta que ele faz é: que fareis quando estas coisas chegarem ao seu fim? Jeremias se refere ao julgamento de Deus em que todo o povo de Judá estava incorrendo por praticar uma religião que vivia somente de aparências. Para que possamos ter uma compreensão do estado moral (4) que existia em Judá nos dias do profeta Jeremias, nós temos que nos lembrar das palavras de Deus ditas através do profeta no início do capítulo 5: Dai voltas às ruas de Jerusalém; vede agora, procurai saber, buscai pelas suas praças a ver se achais alguém, se há um homem que pratique a justiça ou busque a verdade; e eu lhe perdoarei a ela – Jeremias 5:1. Que cena patética! A promessa de Deus era que se fosse possível achar uma pessoa somente que praticasse a justiça ou que buscasse a verdade em toda cidade de Jerusalém, Deus estava disposto a perdoar o pecado de toda a cidade. Agora imagine se Jeremias não tivesse se levantado e julgado (5) a situação.
Se ele não tivesse exercido o ato de julgamento acerca da situação em que a nação de Judá se encontrava ele jamais poderia ter proferido as palavras que proferiu. Nos dias de hoje vivemos uma situação semelhante. A Cristandade está satisfeita em manter as aparências. Em prestar um culto apenas de lábios ao Senhor. Em pretender ser aquilo que realmente não é. As insidiosas infiltrações da chamada “Teologia do Domínio” que visam à criação de um verdadeiro exército de “vencedores” liderados por uma nova casta de “profetas e apóstolos” e que irão pavimentar o caminho para a volta do Senhor Jesus têm criado um afastamento da verdadeira fé que não está sendo devidamente avaliada. Os dois exemplos mais clamorosos são os representados pelo pastor colombiano César Castellanos com suas teorias mirabolantes de “sonha e ganharás o mundo” e do americano norte estadunidense Rick Warren que recentemente anunciou a criação de um “exército” de um bilhão (6) de homens que irão implementar de fato aquilo que ele tem chamado de “a segunda reforma”.
Segundo Rick Warren, depois de transformar as igrejas em “igrejas com propósitos”, depois de transformar as vidas das pessoas em “vidas com propósitos”, agora chegou a hora de transformar os países em “países com propósito”, preparando, desta maneira, o mundo para o segundo advento do Senhor Jesus. Além de tudo isto, a Cristandade não aceita nenhum tipo de crítica ou chamado ao arrependimento. Estão tão cheios de si mesmos que precisamos repetir a pergunta de Jeremias: Que fareis quando estas coisas chegarem ao seu fim?.
II – O CONCEITO DE JULGAR NA LÓGICA E NA PSICOLOGIA
Quando nos referimos no estudo da Lógica, seja ela na tradição clássica (aristotélica-tomista), seja na tradição moderna (dialética hegeliana), ao ato de julgar, estamos apenas afirmando que é nosso desejo estabelecer uma relação mental entre dois ou mais conceitos onde o julgamento em si não passa de uma simples proposição que afirma ou nega a conexão existente entre estes mesmos conceitos (7).
Já na Psicologia o ato de julgar não passa de uma outra expressão para caracterizar a perspicácia ou sagacidade que são qualidades de todas as pessoas que possuem a habilidade de discernir ou avaliar de maneira equilibrada uma determinada situação, fato ou evento. A verdade que precisa ser dita aqui é que praticamente todas as pessoas, com exceção daquelas que são mentalmente incapazes de raciocinar, possuem esta capacidade de julgar, de avaliar, de discernir. É exatamente neste sentido que o salmista pede a Deus que: Ensina-me bom juízo e conhecimento, pois creio nos teus mandamentos – Salmos 119:66 .
Assim podemos avaliar de maneira equilibrada que é apenas lógico o que o dicionário Aurélio Século XXI nos informa ser o escopo alcançado pelo verbo “julgar” no nosso idioma português do Brasil. O Aurélio nos diz que o escopo vai muito além dos atos executados por um juiz propriamente dito. O termo também descreve as ações genéricas atribuídas a todas as pessoas sem distinção. Entre estas ações podemos citar: supor, imaginar, conjeturar, formar opinião sobre, avaliar, formar juízo crítico e apreciar.
Mas muito além das definições filosóficas e psicológicas e mesmo morfológicas queremos saber como o Antigo Testamento e o Novo Testamento definem o ato de julgar. O que queremos aprender, caso a ilustração de Jeremias fornecida acima não tenha sido suficiente, diz respeito ao fato se é ou não lícito o crente julgar. Bem vejamos os que os dicionários de Hebraico e Grego nos dizem acerca do ato de julgar.
III – OS CONCEITOS BÍBLICOS DE JULGAR
A – No Hebraico
Na língua hebraica a palavra mais comum usada para expressar o ato de julgar é o verbo fpv – shapat (8) – que é traduzido, basicamente, por julgar, governar. Deste verbo derivam os substantivos fpv – shepet – julgamento, fopv – shepot – juízo e fpvm – mishpat – justiça ou ordenança. De acordo com a concordância de James Strong (9) a palavra fpv – shapat ocorre cerca de 125 vezes no Antigo Testamento, enquanto que o termo fpvm – mishpat ocorre cerca de 420 vezes no mesmo texto hebraico.
Outro grupo de palavras no Hebraico que também expressam o ato de julgar é representado pela expressão /yD – din – julgar, contender, suplicar e pleitear. Desta palavra surgem os derivados /yD – din – julgamento, /yD – dayyan – juiz, /odm – madon – luta ou contenda e hnydm – medinah – província. Ainda de acordo com a concordância de James Strong (10) a palavra /yD – din ocorre, em todas as suas formas somente 23 vezes no Antigo Testamento.
Para os autores do Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento (11) o termo /yD – din possui uma gama de significados que é exatamente a mesma do termo fpv – shapat apesar de os mesmos serem usados de maneira tão desproporcional. Entres estes significados encontramos: governar, em todo o elenco de atividades de governo: legislativa, executiva, judiciária ou ainda outra. Ainda seguindo o mesmo dicionário a diferença entre os termos é simplesmente que /yD – din é poético e provavelmente também arcaico e mais elegante do que fpv – shapat.
Em resumo podemos dizer que existe um consenso entre os estudiosos de que os dois termos, fpv – shapat e /yD – din bem como os termos deles derivados, se referem às ações relacionadas à execução dos processos de governo. Estes termos não possuem nenhuma conotação aos atos de julgar, avaliar ou discernir que são comuns a todas as pessoas e se restringem à área do governo seja ele Divino ou humano. Desta maneira podemos dizer, com certo grau de segurança, que no que diz respeito à nossa questão se o crente pode julgar, o ensino do Antigo Testamento cai na categoria expressa pela assim chamada “Lei do Silêncio”.
Esta “Lei” é uma norma estabelecida pelos intérpretes (exegetas), e diz que quando um determinado assunto não for claro em um texto ou série de textos analisados estes mesmos textos não poderão ser usados nem para apoiar a idéia nem para condená-la. Este é exatamente o caso que temos diante de nós. O estudo dos termos em hebraico relacionados ao ato de julgar não podem ser utilizados nem para apoiar nem para condenar o ato de julgar como atribuição a todos os seres humanos em geral. É óbvio que a ilustração de Jeremias citada acima ainda é muito sugestiva. E o mesmo é verdadeiro com inúmeras outras passagens do Antigo Testamento.
Para aqueles interessados em aprofundar este estudo o autor sugere uma leitura do “Apêndice A” onde poderá encontrar uma lista de todos os significados dos termos fpv – shapat e /yD – din, bem como do termo fpvm – mishpat como apresentados pela concordância exaustiva de James Strong. Poderá também procurar ler as definições contidas no Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento nas páginas 309 e 310 e nas páginas 1602 a 1606.
IV – JESUS REALMENTE ENSINOU QUE TODO E QUALQUER TIPO DE JULGAMENTO É ERRADO?
Para podermos responder a esta pergunta temos que analisar as palavras de Jesus como registradas em Mateus 7:1/ 6 e passagens paralelas como Lucas 6:37/38 e 41/42.
Apenas para facilitar o autor irá citar o texto completo de Mateus 7:1/6 conforme a tradução de Almeida Revista e Atualizada (ARA). Mateus 7:
1 Não julgueis (krinw – krino), para que não sejais julgados (krinw – krino).
2 Pois, com o critério com que julgardes (krinw – krino), sereis julgados (krinw – krino); e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também.
3 Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio?
4 Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu?
5 Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão.
6 Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem.
A primeira coisa que devemos notar no texto acima é que todas as formas do verbo julgar em português têm sua origem no verbo grego krinw – krino. Apenas para recordar o verbo grego krinw – krino possui os seguintes significados no Novo Testamento: julgar, passar julgamento, ser julgado, condenar, decidir, determinar, considerar, estimar, pensar e preferir.
Quando analisamos o verbo grego krinw – krino em seus contextos nas páginas do Novo Testamento encontramos algumas situações que valem à pena serem descritas, pois as mesmas irão nos ajudar a determinar o quê exatamente Jesus queria dizer quando proferiu as palavras acima. Por favor, note que todas as referências que se referem aos atos de juízo da parte de Deus e de Jesus foram propositadamente omitidas, pois as mesmas não estão em questão neste estudo. O mesmo acontece quando o verso descreve a ação de magistrados civis ou militares.
Dentro desta perspectiva podemos afirmar com certeza que não era a intenção de Jesus ensinar que todo e qualquer tipo de julgamento deve ser evitado quando proferiu as palavras registradas em Mateus 7:1/6. À luz de como os autores do Novo Testamento entenderam e usaram a palavra grega krinw – krino e baseados também no contexto de Mateus 7 podemos dizer com grande certeza que o que Jesus estava condenando era o julgamento superficial, desinformado, impulsivo, prematuro, partidário, apressado, impensado e abusivo. Este tipo de julgamento é proibido e completamente condenável. Jesus condena o julgamento pretensioso e hipócrita feito por uma pessoa que está cometendo os mesmos erros que está condenando. O leitor atento terá percebido que o autor citou Mateus 7:6 junto com os versículos que falam dos perigos do juízo temerário. Isto foi feito de propósito, pois como posso caracterizar alguém da maneira como descrita por Jesus se não exercitar minha capacidade de julgamento?
Neste momento gostaria de fazer uma pausa e abrir o espaço para que o médico e pastor, por mais de 30 anos, da Capela de Westminster em Londres na Inglaterra, o Dr. Martyn Lloyd-Jones, nos ensine acerca do que Jesus quis dizer em Mateus 7:1/6:
“Em Mateus 7 nós somos confrontados com uma declaração que, com freqüência, tem provocado intensa confusão. Deve-se admitir que está em pauta um assunto que facilmente pode ser mal compreendido quanto a dois aspectos opostos e extremos, e isso quase invariavelmente em casos verdadeiros. A pergunta que se faz necessária é a seguinte: Que quis dizer, precisamente, o Senhor Jesus, ao afirmar: “Não julgueis…”? Seria: “Não façam qualquer julgamento”? A melhor maneira de se dar resposta para esta indagação não consiste em folhear um dicionário. Meramente pesquisar sobre o significado do vocábulo “julgar” não nos pode satisfazer quanto a esse ponto. Essa é uma palavra que se reveste de muitas significações. Não se pode decidir a dúvida nesses moldes. Porém, é vitalmente importante que saibamos exatamente o que o Senhor Jesus quis dizer. Talvez nunca uma correta interpretação dessa injunção foi mais importante do que na época presente.
Diferentes períodos da História da Igreja têm requerido diferentes ênfases e se me fosse perguntado qual é a necessidade hoje, a minha resposta seria que é a consideração criteriosa desta afirmação específica. Assim sucede porque a atmosfera inteira da vida moderna, especialmente nos círculos religioso, é de natureza tal que se tornou vital uma correta interpretação dessa asserção de Jesus. Estamos vivendo em uma época em que as definições não estão sendo levadas a sério, em uma época em que os homens têm aversão pelo raciocínio e odeiam a teologia, a doutrina e o dogma. Estamos vivendo em uma época caracterizada pela apreciação ao lazer e à transigência – “paga-se qualquer preço por uma vida sem conflitos”, conforme alguns dizem.
Estamos em uma época de conciliações. Esse termo não é mais tão popular quanto já foi, no terreno da política internacional, mas a mentalidade que nele se deleita continua viva. Vivemos em uma época que não aprecia homens decididos, porquanto, segundo se costuma dizer, eles sempre causam dificuldades. Nossa época tem aversão por indivíduos que sabem no que acreditam, e que realmente acreditam em algo. Mas tais indivíduos são repelidos como pessoas difíceis, com as quais é “impossível a convivência”.
Tem havido épocas, dentro da História da Igreja, quando os homens foram elogiados por defenderem as suas idéias a todo custo. Mas isso já não acontece hoje em dia. Atualmente, homens assim são considerados difíceis, indivíduos que impõem aos outros a própria vontade, que não cooperam com seus companheiros e assim por diante. O tipo de homem que atualmente é elogiado é aquele que poderia ser descrito como “meio termo” ou “eqüidistante”, que jamais se coloca em qualquer extremo de uma posição. Pelo contrário, é um homem agradável a todos, que não cria dificuldades para ninguém, e nem é causador de problemas por causa de seus pontos de vista.
Dizem-nos que a vida diária já é suficientemente difícil e complicada sem que precisemos assumir posição firme no tocante a qualquer doutrina em particular. Com certeza essa é a mentalidade de hoje, não constituindo exagero afirmarmos que essa é a mentalidade controladora. Em certo sentido, essa é uma atitude perfeitamente natural, porquanto já experimentamos inúmeras dificuldades, problemas e desastres. Por semelhante modo, é atitude bastante natural que as pessoas evitem os indivíduos dotados de pontos de vista firmes, que sabem o que estão defendendo, porque todos preferem viver de maneira descontraída e pacífica.
Em uma época como a nossa, reveste-se da máxima importância que sejamos capazes de interpretar corretamente essa declaração acerca do ato de julgar, porquanto há muitos que asseveram que as palavras “não julgueis” precisam ser compreendidas simples e literalmente como elas estão, como se indicasse que o crente verdadeiro jamais expressa uma opinião sobre outra pessoa. Esses homens afirmam que não se deve exercer juízo algum porquanto deveríamos ser suaves, indulgentes, e tolerantes, permitindo quase qualquer coisa em troca da paz e da concórdia e, especialmente, da unidade. Essa não é a hora certa para juízos, dizem eles; o de que precisamos agora é de unidade e companheirismo. Todos deveríamos ser um.
Levanta-se, pois, a pergunta: é possível esta interpretação? Em primeiro lugar, sugiro que esta interpretação é impossível. Todavia, se nos alicerçarmos sobre os próprios ensinamentos bíblicos veremos que tal interpretação não tem razão de ser. Consideremos o próprio contexto dessa afirmação, e certamente veremos que esta interpretação das palavras “não julgueis” é inteiramente descabida. Leia Mateus 7:6 Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés, e, voltando-se vos dilacerem. Como poderia eu pôr em prática essa recomendação do Senhor se me fosse vedado exercer juízo?
Como eu poderia identificar o individuo do titulo descritivo cão se eu não pudesse fazer juízo nenhum a seu respeito? Em outras palavras, a injunção que se segue imediatamente após essa declaração sobre o não julgar de imediato me pede que exerça juízo e discriminação. Mas também poderíamos tomar um contexto mais remoto tal como Mateus 7:15 – Acautelai-vos dos falsos profetas que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores? Como poderíamos entender esta injunção? Como poderei acautelar-me dos falsos profetas se não puder pensar, se eu tiver tanto receio de fazer juízo critico que jamais possa fazer uma avaliação dos ensinamentos de alguém? Esses falsos profetas, além disso, se nos apresentam vestidos de em peles de ovelhas, o que equivale a dizer que são extremamente melífluos e empregam a terminologia cristã. Parecem pessoas inofensivas, honestas, e invariavelmente, mostram-se muito “gentis”.
Entretanto, não nos devemos deixar enganar pelas suas atitudes estudadas, acautelemo-nos diante de gente dessa ordem. Nosso Senhor também diz: Pelos seus frutos os conhecereis..” Mateus 7:16. Porém, se eu não puder usar qualquer critério, e nem exercer minha capacidade de discriminação, como poderei testar a autenticidade desses frutos e determinar entre o que é certo e o que é errado? Por conseguinte, sem necessidade de elaborarmos o nosso argumento, afirmamos a interpretação não pode ser verdadeira quando sugere que as palavras de Jesus não julgueis, recomendam que sejamos pessoas caracterizadas por uma atitude frouxa e indulgente, diante de qualquer indivíduo que use o nome de “cristão”. Tal interpretação é inteiramente impossível.
Temos nesse trecho bíblico o problema dos falsos profetas, para o qual o Senhor Jesus chamou a nossa atenção. Espera-se de nós que possamos detectá-los e evitá-los, porém, isso é impossível sem o conhecimento da doutrina, e sem o exercício desse conhecimento em juízo. (14)