Muita coisa tem sido dita sobre deserto espiritual no nosso meio, mesmo assim fica a dúvida sobre o lugar dessa experiência na vida cristã. O deserto é uma exceção na vida com Deus ou algo que todos teremos de passar? Antes de responder esta pergunta, vamos olhar o deserto na Bíblia: não foram poucos os personagens bíblicos que passaram pela experiência de Deus no deserto, muitos homens e mulheres viveram a terrível sensação de ausência ou do silêncio de Deus: Elias viveu a amargura do medo e da frustração no deserto; Moisés passou 40 anos acreditando que nada mais iria acontecer na sua trajetória como libertador; Jó viveu na carne a experiência de se sentir abandonado por Deus; e Jesus, do alto da cruz, deu um brado: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. Além desses relatos, na nossa própria caminhada cristã, passamos, muitas vezes, por essa sensação de abandono, perdemos o sabor da vida, o que nos alegrava passa a não alegrar mais, a música, o sermão, a leitura da palavra e a oração, tudo parece sem sentido e estafante. Esses sintomas podem surgir em vários momentos da nossa vida, talvez por causa do cansaço físico e mental, uma doença, o fim de um relacionamento amoroso, estresse e tantos outros motivos. Mas o deserto espiritual tem algumas particularidades.
Na solidão do deserto o nosso coração de pedra se transforma em carne, o coração fechado se abre a todos os sofredores num gesto de amor e solidariedade . Mas, olhando de longe os inúmeros acontecimentos que atingem uma pessoa no deserto, sentimo-nos compelidos a fugir dele. Vivemos com se nenhum mal fosse nos atingir, e incorporamos palavras de ordem, que dizem: “somos filhos do Rei”, “ora que melhora”, e falamos com a força dos nossos pulmões: “tudo posso naquele que me fortalece”. Nada disso é mentira, no entanto, quando nos vemos em apuros, essas frases passam a não fazer mais sentido e algumas coisas acontecem: ou nos sentimos abandonados por Deus ou pensamos que os nossos pecados nos afastaram dele. Lembremos de Jó: não foi o seu pecado o responsável pelo seu sofrimento. Mas parece que a experiência do patriarca nos traz ainda mais angústias: não nos sentimos à altura dele e por isso achamos que todo o nosso sofrimento é resultado dos nossos pecados. Perguntamo-nos: onde eu errei? O que eu fiz para merecer tamanho castigo? Sentimo-nos abandonados. Achamos que nos perdemos de Deus e que já não somos mais objeto do seu amor.
Queremos viver somente alegrias, mas não podemos evitar, quando menos esperamos experimentamos uma aridez espiritual e concluímos que o que está nos acontecendo é o que muitos chamam de deserto. Os pais do deserto, pelo menos, fizeram esta escolha livremente, mas a nós parece que essa opção não é dada. Para os contemplativos, no entanto, a experiência do deserto deve ser recebida com agrado, do mesmo modo que uma pessoa enferma receberia com bons olhos a noticia de uma cirurgia que promete saúde e bem-estar . Isso não que dizer que o cristão deva ser alguém que sai pelo mundo em busca do desprazer e de desgraças, não é sobre isso que estamos falamos. O que queremos dizer é que na caminhada com Deus vamos experimentar sensações de abandono, dores e fracassos, e isso não tem nada a ver com os nossos pecados. Não foi assim com Ana, Jó, Paulo e tantos outros? Mas, como conciliar o deserto com um conceito de espiritualidade que não tem lugar para dor e o sofrimento? Como conciliar a imagem de uma vida próspera e abençoada com a experiência do silêncio de Deus?
Na vida contemplativa, o deserto sempre teve o seu lugar. Nos primeiros séculos da Era Cristã, muitos homens e mulheres foram literalmente para o deserto em busca de um encontro com Deus através da solidão, do silêncio e da oração. Antão, Agatão, Macário, Poemem, Teodora, Sara e Sinclética foram líderes espirituais no deserto . “Sem esse deserto, perdemos nossa alma enquanto pregamos o evangelho”. Todos os contemplativos viveram a realidade do Deus Absconditus*, mas foi João da Cruz, monge carmelita do século XVI, quem desenvolveu uma tradição contemplativa sobre a noite escura da alma, ou noite dos sentidos. Quando vires teus desejos apagados, tuas afeições na aridez e angústias, e tuas faculdades incapazes de qualquer exercício interior, não sofras por isso; considera-te feliz por estares assim. É Deus que te vai livrando de ti mesmo, e tirando-te das mãos todas as coisas que possuis.
Na noite dos sentidos, somos convidados a sermos todos de Deus. Nesta vida, o homem não se une a Deus por meio daquilo que entende, goza ou imagina, nem por alguma coisa que os sentidos ofereçam; mas unicamente pela fé…. Somos chamados a experimentar o silêncio de amor, a nos calarmos diante do inefável, e a pormos a atenção amorosamente em Deus, sem ambição de querer sentir ou entender coisa alguma particular a seu respeito. Na noite escura dos sentidos, somos convidados à comunhão da dor de Cristo. De acordo com o teólogo alemão Jürgen Moltmann, no centro da fé cristã está a história da Paixão de Cristo. No centro dessa paixão está a experiência de Cristo abandonado por Deus. Pare ele, ou isso representa a ruína da fé humana no criador, ou o surgimento de uma Fé em Deus que não é possível de ser destruída por nada. Não mais uma fé que dependa de resultados, de sentir calafrios, que dependa da emoção, não mais uma fé que precisa de formulações inquestionáveis, mas uma fé descansada, porque o amor não cansa e nem se cansa. Uma fé que se abandona nas mãos de Deus e se deixa levar por ele. A experiência de Deus no deserto é a experiência do despojamento que nos leva a amar a Deus sobre todas as coisas, mesmo diante da dor e do sofrimento. Por que Deus permite o sofrimento não sabemos, mas, para Multmann, mesmo que soubéssemos isso não nos ajudaria a viver. Se descobrirmos, no entanto, onde está Deus e experimentarmos sua presença no nosso sofrer, encontrar-nos-emos na fonte de onde brota a vida novamente.
O sofrimento e a dor não devem ser entendidos, neste sentido, como resultado do nosso afastamento de Deus, muito pelo contrário, podemos nos sentir amados mesmo diante da dor e da aflição. Mas é muito difícil perceber o amor de Deus diante do sofrimento e da aridez espiritual, porque estamos comprometidos com uma falsa ilusão do que seja esse amor por nós. Coisificamos o nosso amor por Deus, só nos sentimos amados quando a nossa vontade é satisfeita. Se as nossas orações não são respondidas, pensamos que Deus não nos ama. Se não nos emocionamos no culto é porque falta unção, dependemos dos resultados para experimentamos Deus. No deserto, somos privados de tudo, dos resultados e da emoção, só restam dúvidas, é aí, que o conceito de Hebreus, começa a fazer sentido, a Fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem (Hebreus 11:1). Na noite escura, ficamos livres da nossa excessiva dependência de resultados interiores e exteriores, lá nada acontece, só Deus basta. Na noite escura, aprendemos a amar a Deus por ele mesmo, não por aquilo que ele pode fazer ou deixar de fazer por nós. Lá, nada faz sentido, e é no sem sentido que encontramos a verdadeira paz. Profunda é a luta na noite contemplativa, mas é igualmente muito profunda a paz que se espera. E, se a dor espiritual é intima e penetrante, o amor que se há de alcançar é também íntimo e puro.
Nesta noite escura, aprendemos a nos despojar de uma falsa imagem de Deus, o Deus que era o nosso provedor, passa ser também o consolador, o Deus que servia apenas de alívio para as nossas neuroses do cotidiano, passa ser o nosso companheiro de amor. Na noite escura, tudo muda. Aqui temos um verdadeiro encontro de amor, onde nada mais é importante. Se formos abandonados, amamos assim mesmo, se nossas orações não são respondidas, não deixamos de amar por causa disso.
Nesta noite dos sentidos, mesmo sem sentir, somos transformados. O progresso da pessoa é maior quando ela caminha às escuras e sem saber. Aprendemos a amar a Deus como ele deseja ser amado. É amar sem querer possuir o objeto do nosso amor, é amar sem reduzir a Deus a uma idéia ou a uma lâmpada de Aladim. É amar uma pessoa, que misteriosamente é três.
Sobre a pergunta: o Deserto é uma exceção na vida com Deus ou algo que todos teremos de passar? Podemos respondê-la da seguinte maneira: talvez, nem todos os cristãos passem pelo deserto, mas todos aqueles que passarem irão experimentar a purificação dos sentidos. Para a pessoa crescer na contemplação até chegar á união com Deus, deverão ficar de lado, em silêncio, todos os meios e exercícios sensíveis das faculdades humanas. Só assim poderá o Senhor infundir nelas o sobrenatural, pois a capacidade natural não consegue chegar tão alto. Aqui entendemos que só podemos encontrar Deus no silêncio, na solidão e na oração. O nosso objeto de desejo é livre para ir e vir, quando desejar. Não ficamos tão dependentes de sentir a sua presença. Já sabemos onde ele está.
Artigo extraído do site www.ejesus.com.br